Publiquei há alguns dias um texto apontando erros gramaticais em músicas conhecidas, lembrando que artistas e público costumam perdoar as falhas alegando “licença poética”.
Licença poética é legítima quando o “erro” é proposital e em função da
arte, mas não é aceitável quando é fruto do desconhecimento da norma,
principalmente em canções famosas. Então
qualquer um pode escrever uma pedrada e justificar o erro como “licença-poética”.
É perdoável o desvio gramatical nas falas coloquiais ou entre pessoas
humildes que não têm obrigação do uso da norma correta. O que me intriga é a
legião de politicamente corretos defensores da falha gramatical como em um
libelo pela liberdade de expressão.
Pois eu acho o politicamente correto uma das coisas mais chatas e
cansativas que existem.
Aqui continuo o primeiro texto apontando músicas com erros imperdoáveis.
Outras, têm erros que só embelezam as canções.
MULHER- ERASMO CARLOS
Essa letra tem dois erros gramaticais. O primeiro no verso (Do barro de que você foi gerada/Me veio inspiração/Pra decantar você nessa canção). Há uma repetição da palavra DO. O certo seria “Do barro que você foi gerada.”
Mas o erro mais gritante está no verso (Mas pra quem deu luz não tem mais jeito). O correto é deu à luz. Entendo que a correção feriria a métrica do verso de 10 para 11 sílabas, mas isso poderia ser corrigido com a construção: “Pra quem deu À luz não tem mais jeito”, que respeitaria a métrica e ainda deixaria elegantemente implícito — com uma elipse —, o “mas”, graças ao sentido adversativo da frase. (Quero uma mulher só minha/ “MAS” Pra quem deu À luz não tem mais jeito / Porque um filho quer seu peito.
ONDAS SONORAS- ED MOTTA
Há um erro de conjugação do verbo POR no subjuntivo no seguinte trecho
da letra desta canção: Ondas sonoras/ A banhar
as tardes, de sol/ E o que mais vier/ Quando
ele se por.
O certo seria: Quando
ele se puser
Tal erro fica mais evidenciado quando se vê que o lógico seria usar a
palavra puser, que rima com o verso anterior (E o que mais vier/ Quando ele se puser).
NÃO OLHE PRA TRÁS- CAPITAL INICIAL
Aqui há outro erro de conjugação do subjuntivo, mas do verbo VER.
“Nem tudo é como você quer/ Nem
tudo pode ser perfeito/ Pode ser fácil se você/ Ver o mundo de outro jeito”
O certo seria: “Pode ser fácil se
você/ VIR o mundo de outro jeito”
Tanto no caso de Ondas Sonoras quanto de Não Olhe Pra Trás a correção do tempo do verbo não geraria qualquer problema com a métrica das canções não sendo nada menos do que erro por descaso com a regra e não por licença poética.
COWBOY FORA DA LEI - RAUL SEIXAS
Essa música tem um erro de interpretação na sua letra. No trecho (Eu não preciso ler
jornais/ Mentir sozinho eu sou capaz/ Não
quero ir de encontro ao azar).
O autor queria dizer: não quero ir na direção do azar (Não quero IR AO
ENCONTRO do azar), mas o que escreveu foi o oposto (Não quero ir DE ENCONTRO ou
seja, na direção contrária ao azar).
DE encontro A significa o oposto de AO encontro DE.
ENTRE TAPAS E BEIJOS – LEANDRO E LEONARDO
Essa música tem um pleonasmo no trecho: Se me manda ir embora/ Eu saio
prá fora/Ela chama pra trás.
Reconhecendo o erro, um dos seus autores, o cantor Leonardo, passou a corrigir a frase nas suas apresentações ao vivo quando canta: Se me
manda ir embora/ Eu saio lá fora/Ela
chama pra trás.
NÃO DIGA NADA – PEDRO MARIANO
Essa música tem um erro na conjugação do imperativo: “Olha pra mim/não diga nada...Sonha pra
mim...Deixe o vento varrer as palavras).
Há um falar coloquial no Sudeste do Brasil em que se conjuga errado os
imperativos, o que não ocorre na Bahia por exemplo. O erro fica mais estranho quando notamos que o autor conjuga, na letra, alguns verbos corretamente e outros não.
Ele deveria unificar a conjugação seja usando o modo imperativo correto ou o incorreto. Então ficaria OLHE pra mim/ NÃO DIGA nada... SONHE pra mim...DEIXE o vento varrer as palavras)
Um exemplo do uso correto do imperativo está na canção TENTE OUTRA VEZ de Raul Seixas (Veja/ Não
diga que a canção está perdida/ Tenha
fé em Deus, tenha fé na vida/ Tente outra vez/ Beba/ Levante sua mão
sedenta e recomece a andar/Queira..)
ONDE VOCÊ MORA – CIDADE NEGRA
O título da canção está com uso correto do Onde, já que se refere ao verbo morar, que não indica movimento.
Mas há erros nos versos Aonde
você mora?/ Aonde você foi morar?/Aonde está você?
O advérbio/pronome interrogativo correto seria, como está no título: ONDE, já que não se refere a verbos de movimento.
ADMIRÁVEL CHIP NOVO - PITTY
O mesmo erro da música acima está no trecho dessa canção da cantora baiana nos versos: Pane no sistema, alguém me
desconfigurou /AONDE estão meus olhos de robô?
O certo seria o uso do pronome interrogativo ONDE pela mesma razão da música anterior: indica verbo estático.
ME CHAMA-LOBÃO
Essa música tem dois erros mas ambos podem ser perfeitamente aceitáveis por conta da licença-poética.
O primeiro erro está na falha à regra que diz que não se inicia uma oração com pronomes oblíquos. Porém, isso se tornou tão frequente que é já atribuído ao tom coloquial e regional adequado na canção. Isso se vê nos versos "Me dá vontade de saber/Me telefona/Me chama."
O outro erro está no uso do imperativo. O correto seria ME CHAME e ME TELEFONE, mas também aqui pode ser aceito por conta da coloquialidade.
Essa canção tem construção que é gramaticalmente desviante da norma, mas com versos muito sofisticados, bem construídos e respeitando a lógica interna da canção como Beija Eu/Molha Eu/Seca Eu/Deita e Aceita
Eu.
Caso a construção fosse alterada para a forma correta, a letra perderia o seu aspecto lindo do falar coloquial e também o seu impacto sonoro e estético.
PRINCIPIA – EMICIDA
Essa canção tem letra elaboradíssima, como é comum nas músicas de Emicida e o belo refrão: TUDO QUE NÓIS TEM É NÓIS. É, obviamente, uma fuga da norma padrão que pediria outra construção.
Mas a perfeição estilística da letra original é tão maravilhosa e reflete tão bem o linguajar das comunidades periféricas paulistanas, contrastando intensamente com a sofisticação do conteúdo dos versos, que tal "erro" embeleza mais ainda a ideia da canção.
DETALHES – Roberto Carlos
Aqui há uma frase interessante (Duvido
que ele tenha tanto amor e até os erros do meu Português ruim)
Já li pessoas apontando erro gramatical no uso do verbo duvidar, transitivo
indireto, pedindo assim um complemento e que o correto seria DUVIDO DE.
Há gente que diz que há um erro proposital no verso que se justifica no
verso seguinte: “Até os erros do meu
Português ruim” e que seria um recurso metalinguístico de intertextualidade
implícita (Por eu ter um Português ruim, uso o verbo duvidar errado).
Seria tudo lindo se não fosse uma bobagem. O verbo duvidar
pode sim ser transitivo indireto, mas também pode, noutro contexto, ser transitivo
direto e dispensar a preposição DE QUE.
É esse o caso citado: “Duvido que
ele tenha tanto amor”. O verbo está seguido
de uma oração completiva (oração que completa o sentido do verbo).
Não temos erro algum aqui e toda a análise poética metalinguística seria linda se não fosse uma viagem de quem interpreta a intenção do autor.
ANDAR COM FÉ- GILBERTO GIL
Aqui os versos: “Andá com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá” tem uma sonoridade interessante. O título da música é Andar com fé, mas o verso é andá, bastante regional e coloquial, fazendo uma rima com faiá.
O autor poderia optar pela construção
gramaticalmente correta: Andar com fé eu vou/Que a fé não costuma
falhar, mas convenhamos que não teria a mesma beleza.
Toda essa canção trás a carga do falar típico do homem nordestino pobre e pouco alfabetizado e isso é uma das coisas mais autênticas e belas da letra.
Não haveria o mesmo impacto se obedecesse às regras da
gramática como nos versos: “Quando OIEI a terra ardendo/QUÁ fogueira de São João/Eu PREGUNTEI a Deus
do céu / Nem um pé de PRANTAÇÃO/Por FARTA d'água, perdi meu gado/ INTÉ mesmo a asa branca/ ENTONCE eu disse: Adeus, Rosinha.”.
FLOR DA PELE E ALMA NOVA- ZECA BALEIRO
Essas duas canções têm casos interessantes.
Em
Flor da Pele o autor escreve (Ando
tão à flor da pele/ Qualquer beijo de novela me faz chorar... Às vezes me
preservo/ Noutras, suicido.
Há um suposto erro gramatical no uso do verbo
suicidar que pode ser escrito “eu suicido”
(a origem do verbo é do latim. Sui = a si e cídio = matar). Correta é a construção sem o pronome reflexivo se. Seu uso pode caracterizar
até mesmo uma redundância.
Sobre
a canção Alma Nova, alguns
implicantes apontam cacofonia na frase "Calma
alma minha/Calminha, ainda não é hora de partir" e "Calma alma minha/Calminha,
você tem muito que aprender"
Realmente, a sonoridade da frase “calma alma minha” parece feio, lembrando a palavra maminha, um clássico caso de cacófono. Pode até soar feio, mas nesse caso há o mérito louvável de brincar com as palavras .
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