31.8.18

Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios e Maurice


Finalizei, quase simultaneamente, dois excelentes livros que estavam, há tempos na fila, aguardando a leitura. Em comum, ambos terem sido adaptados para o cinema e contarem histórias de amores difíceis. O primeiro: Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios, do escritor brasileiro Marçal Aquino; o segundo: Maurice, do britânico E.M. Forster.

As semelhanças acabam aqui. Eu Receberia as Piores Notícias... foi adaptado para o cinema pelo brasileiro Beto Brandt; e Maurice, pelo diretor inglês James Ivory. Enquanto a primeira obra gira em torno de relações amorosas repletas de conflitos e tensões em um triângulo amoroso heterossexual com conclusões dramáticas, a obra britânica aborda o amor que não ousa dizer o nome (para citar o irlandês Oscar Wilde), com uma brisa de esperança.

Eu Receberia as Piores Notícias dos seus Lindos Lábios - Há uma dupla potente e premiadíssima por trás deste livro e da sua adaptação para a telona: o escritor e roteirista Marçal Aquino e o diretor Beto Brandt, ambos também responsáveis pelos livros/filmes Os Matadores, O Invasor e Ação Entre Amigos, todos com ótimas críticas.

Esse originalíssimo título, composto por simplesmente nove palavras, entrega aos leitores uma paixão visceral e asfixiante do casal Lavínia (Camila Pitanga, mais linda do que jamais esteve, na versão cinematográfica) e Cauby, fotógrafo paulista responsável por partes da narrativa.

A história se desenrola no interior do Pará, onde Cauby praticamente se isola após ter viajado pelo mundo. Ali, ele se dedica a plantar e fumar maconha, ouvir música clássica, cuidar de um tatu de estimação e fazer bicos como fotógrafo de um jornal local. Cauby rasga o peito como se usasse luvas: “Quando estou com você, eu me perdoo por todas as lutas que a vida venceu por pontos, e esqueço completamente que gente como eu, no fim, acaba saindo mais cedo de bares, de brigas e de amores para não pagar a conta. Isso eu poderia ter dito a ela. Mas não disse.”


Intercalando narrativas em flashbacks, mergulhamos raso na alma sem fundo da misteriosa Lavínia, uma personagem que fascina o fotógrafo Cauby pela sua beleza fora do comum, por sua forte temperatura sexual, além de um comportamento bipolar e seu estranho casamento com Ernani, pastor evangélico 40 anos mais velho.

As transbordantes cenas de paixão física — o inferno de um seduzido pelo inferno do outro — ao som de música erudita e poesia são emolduradas pelo calor asfixiante e pegajoso do ambiente ribeirinho paraense, o prenúncio do caos que por todo o ambiente paira, seja pela latente ameaça de um conflito armado entre pistoleiros de mineradoras, garimpeiros e sindicatos, seja pela insegurança trazida pela condição mentalmente precária de uma Lavínia ex-prostituta e ex-viciada.

O livro e também o filme têm uma construção minimalista, seja na descrição exterior da suja e ameaçadora paisagem, seja do caótico interior dos personagens. Somos testemunhas do desenrolar das consequências que até podem parecer previsíveis, mas jamais menos impactantes, sem abrir mão da poética, mas também sem fugir da angústia de um amor impossível: “Uma felicidade sem futuro, como qualquer felicidade que se preze”.


Maurice, ao contrário da obra acima comentada, não se passa no quente e úmido Pará contemporâneo, mas em uma fria Londres no início do século passado e também aborda as dificuldades do amor, mas desta vez entre jovens rapazes da aristocracia britânica. O livro de Edward Morgan Forster, de 1912, foi adaptado para o cinema pelo premiado diretor James Ivory, responsável por levar às telas dois outros livros de Forster (Retorno a Howards End e Uma Janela Para o Amor).

A adaptação de Maurice para as telas conquistou de cara três dos prêmios principais no Festival de Veneza em 1987: o Leão de Prata, para o diretor James Ivory; melhor trilha sonora e o troféu de melhor ator que foi dividido por James Wilby e Hugh Grant, este ainda no início da sua carreira de sucesso no cinema.

O livro trata de modo tipicamente britânico sobre as dificuldades de aceitação da homossexualidade na  aristocracia rural e acadêmica inglesa. Maurice e Clive (James Wilby e Hugh Grant, no cinema) se conhecem na universidade de Cambridge e após um período de intensa paixão juvenil e um cálido romance clandestino, Clive decide finalizar o idílio e viver uma farsa, casando-se com uma mulher e refreando qualquer relacionamento físico e afetivo com homens, sufocando o próprio desejo e legando ao apaixonado Maurice, por anos, uma vida de amor platônico e auto-repulsa por não conseguir debelar sua paixão, algo pouco viril numa sociedade rigidamente hierarquizada e machista.

A história, entretanto, revela uma esperança à altura do sofrimento suportado pelo gentil Maurice quando ele, rompendo as amarras da sua condição social, decide viver uma paixão por um rapaz de classe inferior, um duplo golpe na hierarquia e no machismo. Não há quem possa ter um coração de pedra para não torcer pelo amor desses dois rapazes tão diferentes e com tudo contra eles, que decidem enfrentar tantos dogmas da fria sociedade da época onde,  até 1967, a homossexualidade era um crime punido com prisão. 


Encerro com o trecho final do trabalho acadêmico "O Helenismo em Maurice", de José Ailson de Souza, doutor em literatura: "Muitas características apontadas pela crítica como defeitos do romance, são na verdade de onde a narrativa tira sua força. Refiro-me ao amplo emprego da sentimentalidade, na linguagem e na temática, para tratar do amor entre homens. É de certo modo óbvio que o autor procura abordar a questão de modo delicado, recorrendo a idealizações românticas, para valorizá-la, além de não ser acusado de promover pornografia, mesmo que postumamente – um receio expresso pelo autor. Em todo caso, considerando suas circunstâncias, e sua capacidade de reverberar entre nós, o romance de Forster é, assim como o seu protagonista, de uma coragem admirável, um feito intelectual e literário verdadeiramente heroico”.