27.12.06

Minority Report


Um filme com Tom Cruise, bagagem de mais de 30 longas e bilheteria de US$ 2 bilhões, dirigido por Steven Spielberg, mais de 20 filmes e US$ 10 bilhões de bilheteria e roteiro baseado no autor de "Blade Runner" é garantia de um bom filme? Na minha opinião é garantia de dinheiro, bilheteria e muito marketing, mas não de um bom filme.

Por que tudo que Cruise faz tem que ser bom? "Vanilla Sky", refilmagem de “Abre Los Ojos” é um porre sem fim, preferível uma boa injeção na testa. Sua namorada, Penélope Cruz, está vergonhosamente apagada num filme pretensioso e chatíssimo.

Spielberg fez também recentemente um filme equivocado e malhado mundo afora. "A.I." herança de Stanley Kubrick, um grande prejuízo nas bilheterias, o que em si não significa que o filme é necessariamente ruim, mas não é bom também. Que quer: o nome Spielberg não é antônimo de fracasso. Esse seu Minority Report é um filme extremamente banal, com uma história muito pouco original e ee não fossem os quase 450 efeitos especiais seria apenas um filmezinho comum. Ainda tem uma montagem irregular, em alguns pontos ágeis e dinâmicas, em outros repetitivas e arrastadas, clichês em profusão, algo imperdoável, como o recurso exaurido de desmascarar o vilão em público e o final feliz do casal reconciliando-se.

Aqui estão alguns dos pontos especialmente fracos:

O personagem de Tom Cruise é totalmente dedicado ao trabalho porque tem problemas após perder o filho e se separar da mulher. Essa premissa é suficiente para que a gente saiba que ele vai se comportar no resto do filme, a gente já viu isso “até o nojo” em milhares de filmes de sessão da tarde. Só que não fosse bastante o diretor mostrar isso uma vez ou duas, ele fica entupindo nosso juízo com essas imagens do menino e da dor do pai. E tome-lhe imagem do menino e da dor do pai. E quando você pensa que ele vai parar, voltam as imagens do menino e da dor do pai....Viu como é chato uma coisa repetida desnecessariamente?

Syd Field, um dos maiores especialistas em roteiros, consultor da Tri-Star Pictures, lançou esse ano um volume que dá a exata dimensão do que pretendo explicar. O livro chama-se: “Como Resolver Problemas de Roteiro” e ele relata uma história de uma pessoa que escreveu um roteiro e não conseguia humanizar e solucionar uma cena de diálogo entre uma mulher e uma enfermeira. Syd Field ensina que na cena faltava uma carga dramática e uma motivação para o diálogo. E ele explica como resolver o problema. Ao que parece o roteirista desse Minority Report não aprendeu essas lições. A cena do diálogo entre Cruise e a veterana atriz Lois Smith, criadora do projeto dos precogs é fundamental para o desenrolar da história, mas o diálogo é inverossímil simplesmente porque não há motivação para que aconteça.

Outro diálogo que não há razão de ocorrer é o que têm a ex-esposa de Tom Cruise e o seu perseguidor Danny Witwer. Imprescindível para o desenvolvimento do filme mas completamente destituído de justificativa humana e psicológica. Não há porque ela contar tudo aquilo ao perseguidor do marido. Doc Comparato ensina na sua obra prima “Da Criação ao Roteiro”: Diálogo impossível é aquele que não tem credibilidade nem razão de existir; é formalmente correto, mas falta-lhe alguma coisa. Freqüentemente quando isso acontece, é porque existe uma falha na motivação e de intencionalidade por parte do personagem. Nesse caso é preciso rever a história e tratar de encontrar falhas da trama, uma vez que se trata de um erro de estrutura”

O filme tem problemas de concepção e lógica que Doc Comparato, consideraria problemas sérios. Diz ele na obra acima citada: “Todas as histórias têm uma lógica que não pode ser quebrada e que se baseia em como as coisas são na realidade. Todo roteiro deve conter esse sentido de credibilidade”. E a lógica que Comparato fala não é apenas a lógica comum, externa à obra, mas a lógica interna do filme. Se o filme quebra a própria lógica interna não há saída. É furo feio ou desrespeito ao expectador.

Exemplos: Quando Cruise escapa da divisão e é perseguido, uma coisa muito simples era descredenciá-lo para entrar novamente no prédio, mas ele retorna usando as suas próprias credenciais (os olhos), e os mesmos olhos são usados pela sua esposa para entrar na penitenciária quando ele já está preso. Como ele pode ter as credenciais se está preso? Um simples “delete” seria suficiente para desabilita-lo. E numa sociedade tão sofisticada tecnologicamente isso é um abuso na inteligência do espectador.

E se se sabe que é tão fácil trocar de olhos que em qualquer cacete armado ou muquifo de esquina se faz em 24 horas, porque não inventaram um sistema mais inteligente e seguro para proteger os prédios do governo? Tipo usando as impressões digitais? Você viu isso em “Missão Impossível” não viu? E você também viu que o mesmo Tom Cruise lá se disfarça muito bem com uma máscara. Porque diabos nesse filme ele precisa injetar uma droga dolorosa debaixo do queixo para deformar o rosto? Por que não bastaria uma máscara? E porque não fazem logo uma cirurgia plástica? Você viu isso em “Face Off” com John Travolta e Nicolas Cage trocando de rosto.

Se eles localizam todo mundo escaneando as íris como não descobriram o homem que raptou o filho de Tom Cruise? E se localizam Tom Cruise pelas íris escaneadas em todo lugar que ele vai, metrô ou shopping, como não o localizam dentro no próprio quartel general da polícia quando ele usa as próprias íris scaneadas para abrir a porta do Templo

E a chave do filme, a grande resposta do enigma, a explicação final é um primor de furos como uma peneira velha. A premissa básica de que o assassino, para escapar da prisão, contaria com uma interpretação, pelo técnico, de um “eco” da visão dos precogs, não se sustenta pois mesmo que o técnico confundisse a visão como um “eco”, ainda assim a bola com o nome do verdadeiro assassino seria criada e aí não haveria como esconder o crime. Se o assassino planejava matar e contratou alguém para fazer o serviço, antes de contratá-lo, pensou no crime e se pensou no crime era para os precogs registrarem o crime antes e não depois como um suposto “eco”.

A cena em que Cruise sai dirigindo um carro diretamente da linha de produção é hilária de tão ridícula, quer dizer que os carros já saem da gigantesca linha de produção diretamente para as auto estradas? Não há sequer um pátio para eles ficarem.

Uma ótima crítica publicada na Veja resume tudo: “Spielberg esqueceu de uma premissa básica do grande suspense, que é deixar o espectador descobrir aos poucos, por deduções lógicas, a chave do enigma. Não é o que acontece em Minority Report.

Primeiro porque o diretor gosta de facilitar o trabalho da platéia, repetindo, enfatizando ou dando de mão beijada todas as dicas. Segundo, porque, de certa forma, os próprios pre-cogs substituem a participação ativa de quem está na poltrona, fazendo com que cada revelação venha fria e sem vida. É certo que em sua fase kubrickiana, Steven Spielberg se mostra mais dark, cultiva humor negro e homenageia os filmes 2001 – uma odisseia no espaço e Laranja mecânica. Nada, contudo, que torne Minority Report a obra-prima que todo mundo vem apregoando.”

Ou seja, se você quiser ver esse filme deixe seus neurônios em casa. Pensar não é uma atividade para o qual Steven Spielberg é especialmente indicado. No final das contas um filme equívoco e um desperdício do talento do ótimo Max Von Sydow. Esqueça esse filme e veja o ator sueco excepcionalmente bem em “Pelle o Conquistador” e “O Sétimo Selo”.

Estrogênio e Morbidez


Uma das coisas mais tristes de ser fã de um diretor, de uma escritora e de uma atriz é ter uma grande expectativa num filme em que eles estejam reunidos e, no final, ter a sensação de que houve talvez desperdício de talento.

Assim é As Horas. Dói sentir que uma grande estrela como Nicole Kidman, vencedora do Globo de Ouro, só ganhou o Oscar pelo papel de Virgínia Wolf para corrigir a injustiça de no ano anterior ter perdido o merecido prêmio por Moulin Rouge para Halle Berry. E não é por falta de méritos de Kidman, que continua em boa forma, mas fica difícil gerar empatia em sua personagem uma vez que a atriz fica em cena míseros 35 minutos.

Stephen Daldry, diretor do ótimo e sensível filme Billy Elliot, também foi preterido há três anos pela academia, injustiça que também pode ser estendida a Julianne Moore que já teve chances em Boogie Nights (para o qual foi apenas indicada para o Globo de Ouro e Oscar), Magnólia (onde estava soberba e pelo qual não ganhou prêmio algum) e Fim de Caso (impecável, mas apenas indicada). Se ganhassem as estatuetas, seriam reparações, mas as reparações não cheiram muito bem. Vide o questionamento do personagem de Ed Harris, indicado, merecidamente, para o Oscar, se o prêmio literário que ganhou (no filme) não foi apenas porque estava à beira da morte.

A música solene e minimalista de Philip Glass pode ter sido até premiada, mas — mais sombria, impossível — dá a exata dimensão da angústia com um som instrumental duro e quase sem vocais. Não digo que a música deveria ser alegre, mesmo porque isso não faria sentido algum nesse filme, mas junte-se mais ainda a dose de amargor (a música) a essa mistura áspera e tem-se como resultado mais morbidez.

As Horas é um filme que trata de morte todo o tempo com suicídios em altas doses, tristeza, solidão, desamparo e amargura. A morbidez permeia cada fotograma e não há muita explicação para isso a não ser a própria incontinência humana para o sofrimento.

Em um momento Virgínia diz: “É preciso que alguém morra para que os outros dêem valor à vida” mas, contraditoriamente, logo adiante se vê que a personagem de Julianne Moore sente extrema culpa por sobreviver a toda a família, onde se morre de câncer a rodo. A moral e a culpa judaico-cristãs estão onipresentes e os personagens, como rebotalhos humanos usando os afetos como muletas, não disfarçam o imenso tédio das próprias vidas enfadonhas. Isso não tem muito de revolucionário, sejamos justos.

Pessoas fracas e cujas vidas banais são disfarçadas de algum sentido, mulheres sem auto-estima, indefinidas sobre a própria sexualidade, transitando pelo lesbianismo com maior ou menor convicção, homens marcados pelos fantasmas de antigas relações destruidoras — a AIDS aparece como um flagelo auto imposto... É sintomático que a única personagem com alguma auto-estima seja a de Toni Collette (de O Casamento de Muriel e Sexto Sentido) e o autor, como para condená-la por não se enquadrar no perfil de morbidez, enfia-lhe um tumor no útero. Simbólico que seja no útero não? Nada mais feminino do que um tumor no útero.

Mrs.Dalloway, filme de 1997, com Vanessa Redgrave no papel principal, retrata mais fielmente o espírito da Inglaterra no tempo de Virgínia Wolf do que o 3x4 de As Horas, onde Wolf é mostrada como uma mulher aborrecida, amalucada e cheia de literatices e não a autora e crítica literária consagrada como uma das mais criativas da literatura do século 20 e precursoras do feminismo. Seu livro O Quarto de Jacob, por exemplo, é considerado ponto de transição da ficção tradicional para o impressionismo poético Além do mais, As Horas nem mesmo é fiel a Wolf. Mrs.Dalloway, seu romance mais famoso, foi iniciado em 1923 e ela morreu 18 anos depois do que aparenta no filme. Suas obras: Passeio do Farol, de 1927, Quarto Próprio, de 1929, As Ondas, de 1931 e Os Anos, de 1937 são todos posteriores a Mrs. Daloway.
É uma pena que essas atrizes interpretem personagens atreladas a uma morbidez angustiante, como satélites perdidas a procura de um eixo de luz ou calor. Essa dor onipresente e opressiva nas almas tem uma densidade por demais rarefeita para sustentar o filme.

As Horas tem boa direção, porém é acadêmico nos enquadramentos e nos planos, apesar de se resolver muito bem nas fusões temporais. Cenários e figurinos corretos e fotografia e trilha sonora adequadas para filmes de época. Tem, também o inegável mérito de mostrar 3 mulheres vivendo suas vidas em períodos históricos diferentes ligadas por um liame imaginário em torno de uma grande personagem literária.
Essa opção criativa, mas algo arriscada, reduz, porém, a substância do filme e fica claro que esse é o típico exemplo de que o todo pode ser inferior à soma das partes. Mostradas separadamente potencialmente seriam 3 ótimas histórias, unidas, perdem intensidade e sabor. Como acontece às suas personagens, o filme perde o vigor e a vida.

Madame Satã


Ele era órfão de pai. Aos oito anos a mãe o trocou por uma mula, aos nove, deixou Pernambuco para o Rio, onde morou com uma prostituta e adotou sete crianças. Preso inúmeras vezes, analfabeto, negro, nordestino, pobre, homossexual, tinha tudo para ser mais um excluído social, um excluído absoluto. Mas esse não era um homem comum. Era João Francisco dos Santos, ou melhor, Madame Satã. Um rebelde que não se conformava com a própria exclusão e lutou contra isso bravamente e por toda a vida. Um rebelde em toda a magnitude da palavra. Um mito que transcende seu nome de batismo.

E foi assim que o genial diretor Karim Aïnouz, no seu primeiro longa, nos presenteia com uma verdadeira obra prima que é seu filme Madame Satã que já chega nas telas brasileiras ovacionado com o premo de melhor direção no Festival de Biarritz na França, premiado também no Festival de Cinema de Chicago e melhor longa metragem (cólon de ouro), melhor ator (cólon de prata para Lázaro Ramos) e melhor fotografia (cólon de prata para Walter Carvalho) no Festival de Cine Iberoamericano de Huelva, na Espanha.

O uso da câmara desfocada e o enquadramento incompleto são das ótimas coisas do filme! Metáforas visuais perfeitas do interior dos personagens. Um filme permite que se conte uma história utilizando-se a câmara para retratar outros aspectos que não apenas o óbvio, o que o público vê de imediato. Há diversas camadas muito mais intensas do personagem que podem ser trazidas à luz e à tela com recursos sofisticados que nem sempre são tradicionalmente eleitos pelo público como aceitáveis, ou suportáveis. São apenas menos acessíveis, mas nem por isso uma disposição maior desse público e uma boa vontade podem inviabilizar uma apreciação desses recursos.

A câmara desfocada reflete a tensão dos sentimentos intensos daquelas pessoas, como se lutassem internamente para viver com os pés no chão. As emoções em luta com a razão fazem com que às vezes as coisas percam o foco, turvam o olhar. Se isso acontece conosco, pessoas privilegiadas, o que dirá daquelas pessoas, vivendo sob aquelas condições.

Os limites dos enquadramentos dos personagens são um achado, como que as personagens sendo grandes demais para caber no recorte que o diretor queria dar. É como uma homenagem do diretor, como se ele quisesse dizer: perdoe-me por querer limitá-lo a um quadro de cinema pois sei que vocês estão além desse corte que dou à sua trajetória na vida. A idéia de desmesura é clara. Satã era "um negro que não sabia o seu lugar", ou melhor, que não cabia nele. A imensa força desse filme vem dessa tensão para romper limites. É como se os limites de um fotograma fossem uma prisão a mais para os personagens e o diretor não quisesse se prestar a também essa violência. Muita gente julgou as duas escolhas quase insuportáveis, o foco e o enquadramento.

A mim causou-me extremo prazer estético, tinha uma simpatia muito grande com a história e com tudo que se passava ali na tela. Há gente que achou ruim a opção do diretor em retratar apenas uma parte da vida de Madame Satã. Se ele tivesse feito um filme falando do começo da vida dele quando era pequeno, passando pela adolescência até a morte seria mais como um desses filmes convencionais ou um documentário. O roteiro capta, com o retrato dessa fase da sua vida, a sua máxima densidade.

A fotografia premiada de Walter Carvalho e a mão precisa de Aïnouz reconstituíram notavelmente a Lapa dos anos 30 tanto na cenografia quanto no linguajar do elenco.

Satã sonha em meio ao rebotalho humano que habita o gueto pútrido e violento onde a escória transita como se estivesse na sua sala de visitas. Satã, violento e terno, perigoso e sensível, é feito todo de extremos, sonha em ser a estrela de um espetáculo ao mesmo tempo onírico e sórdido, festivo e tosco, mas inegavelmente extraordinário pela crueza do ambiente em que se desenvolve, surpreendentemente capaz se ser fonte de momentos de pura grandeza, fruto proibido da imaginação que somente poderosas almas profundamente artísticas seriam capazes de ter.

Madame Satã é um filme — perdão do termo desgastado, mas, sinceramente, não há outro, — político. Satã em nenhum momento se vitimiza, ele é vítima sim, inúmeras vezes vítima, mas se rebela a essa fôrma. Não cabe nela, ele se rebela e mostra, luta quase inglória de tão injusta, que pode ser o que ele quer e não o que querem que ele seja. Numa época em que marginal, brigão, cafajeste, boêmio e ladrão eram sinônimos de macheza, Satã mostrava, com seu auto proclamado orgulho homossexual, que era mais macho do que todos os malandros da Lapa juntos, mesmo quando rebolava num palco improvisado num cabaré e gritava: " A vida tem mais graça quando a gente dança".

O que nunca me deixa de espantar é a capacidade absolutamente inesgotável que o ser humano tem em superar a própria hipocrisia. Como diz a crítica Neuza Borges, que entrevistou o diretor logo após a apresentação do filme em Cannes: "Houve um escândalo durante o festival de Cannes por causa das cenas de sexo, várias pessoas deixaram as salas de exibição onde o filme foi mostrado. É difícil imaginar o que terá chocado tanto essa platéia experimentada e que já deve ter assistido a filmes muito mais diretos sobre a homossexualidade, como "Querelle", de Fassbinder, ou "O Último Tango em Paris", de Bertolucci. O diretor concorda e declarou: "Madame Satã terá cumprido, afinal, uma das vocações mais saudáveis do cinema, a de incomodar o que já estava adormecido, cutucar o que já estava acomodado, abrindo janelas para contemplar a diversidade do mundo. Alguns jornalistas saíram na sessão de imprensa. Na sessão de público, também saíram algumas pessoas. Não estamos no Afeganistão, com o Talebã. Mas sexo é uma coisa que incomoda. A intimidade também. Não é nem a questão da prática sexual, mas é a forma como você revela a intimidade entre duas pessoas. O que acho interessante é saber o que incomoda, o que é politicamente permitido ou não. Você tem os filmes do John Woo, em que se cortam não sei quantas cabeças por segundo. Isso, tudo bem! E aí quando você fala em intimidade, ainda se sente isso como perigoso.

Palmas para todos os rebeldes, os malditos, os que incomodam, os corajosos, os marginalizados. Não me surpreendo se esse filme tiver um centésimo do número de espectadores que teve o anti-ético Cidade de Deus. Em Madame Satã você não verá um videoclipe, mas puro e verdadeiro Cinema. Maiúsculo

9.12.06

Carta de Despedida em Tarde de Sol


Acabo de perceber a falta que você me faz. 

O momento exato em que esse vazio me assolou foi aquele no qual você cruzou o céu a bordo de um MD-11, deixando minha vida e minhas mãos pesando como chumbo. Tentei acenar um adeus, mas os ombros doíam por não conseguirem levantar as mãos para esse gesto inútil. Os pés pareciam não querer largar o chão do aeroporto como se estivessem certos da sua volta que quem sabe se haverá.

Volta! 

Se eu soubesse que você, no final, partiria, não teria aberto minhas comportas, não serviria para seu regalo as minhas carnes assim em postas, não teria exposto o meu coração retalhado em fatias, se soubesse que no fim você partiria. Se não fosse para me embriagar de você eu não teria ido até o fim da taça desse seu veneno, esse seu mel de especiarias.

Você que chegou na hora errada pondo uma luz estranha e intensa no fundo dos meus olhos cansados — e já era tão tarde para me fazer sentir aquilo,— então já que invadiu a casamata, derruba-me logo as barreiras; não foram capazes, quebra as correntes, as amarras, essas tenazes; suga meu sangue, seiva. Salva-me!

Pois pantanosos são esses lugares; de inexplorados, tão ermos, para caminhar em direção ao meu coração, perigosos esses trechos; calcinados, tanto já sofreram nas minhas mãos. Quem diria ser este, para um coração, um caminho?

Os desvios e os desvãos me atraíam para terrenos ainda mais árduos. Perder-me fora condição para buscar o desconhecido, esse misterioso espaço só meu. Nebulosas paragens desse habitat instável, fascinante terreno, todo o meu corpo, miragem delirante, a ocupar espaços baços. Olhos perdidos em qualquer direção — os meus —, traços de pés plantados num desvio do caminho, um aviso, uma pista falsa num chão movediço qualquer.

Talvez você arrancasse de mim um suspiro inaudível como uma gota de dor, ou um abraço, como uma sombra para descansar sob uma árvore de galhos ressecados e quebradiços. Mas lhe faltarão os meios para decifrar tantos enigmas do meu peito e você, então, ficará sem forças e sem coragem para percorrer esses pedregosos leitos onde eu me deito na busca do oblívio do sexo.

Se eu fosse algum tipo de deus, eu me faria inteiramente seu para que você nunca partisse e me deixasse...Uma noite dessas acordarei suando, olhos vermelhos, o corpo em fogo, a gritar o seu nome, chamando você aqui.

Nessa noite descobrirão que enlouqueci.