26.11.08

Vicky Cristina Barcelona


O novo filme do diretor Woody Allen estreou com uma das maiores bilheterias da temporada, só perdendo para o arrasa-quarteirão 007 Quantum of Solace. Vicky Cristina Barcelona é uma daquelas comédias leves e divertidas que são como uma brisa num verão. Uma brisa passageira, talvez.

Mal comparando, um filme de Woody Allen é como um sapato ou uma bolsa de grifes Prada ou Louis Vuitton. Justiça se faça, isso serve para qualquer filme de um grande diretor, como Almodóvar, Hitchcock, Fellini...E, como em toda grife, há os que consomem somente pelo nome e aqueles que levam em conta a qualidade do produto. Nem sempre as duas coisas andam juntas.

No caso de Woody Allen costumam andar. Dá para assistir aos seus filmes sem pestanejar só pelo seu nome estampado nos créditos. Nem precisa ler sobre a história ou dar ouvidos a comentários. E a promessa é de qualidade, não ficando bem dizer que não se gostou do resultado ou que esperava mais.

Ok. Eu esperava mais. Estou sempre esperando que um produto de uma grife corresponda ao seu nome. E o nome de Woody Allen me acostumou mal. Ele fez obras primas boas demais para que eu me contente com menos. Listar todas seria redundância e escolher algumas, injustiça. Este é o seu quarto longa na Europa após deixar sua zona de conforto — Nova Yorque —, palco de dezenas de super-películas anteriores. Este filme se passa, pela primeira vez em sua filmografia, em Barcelona.

Depois de três filmes em Londres (Match Point, uma espécie de ápice radioso de uma carreira já brilhante e Scoop e Sonho de Cassandra, duas obras que mereciam mais elogios do que tiveram), o diretor resolveu fazer uma declaração de amor à sensual capital da Catalunha. Barcelona resplandece em uma verdadeira palheta de cores e uma partitura de sons (e quase uma orgia de aromas e sabores se o cinema permitisse tais recursos sensoriais). Quase dá vontade de sair correndo, pegar o passaporte e embarcar para a Espanha sem sequer lembrar que os brasileiros estão sendo deportados de Madri às pencas...Mas voltemos ao filme.

A bela e talentosa Scarlett Johansson retorna consagrada como musa do diretor após os citados Match Point e Scoop, mas agora temos dois queridinhos do cinema espanhol: Javier Bardem (ator de primeira, ganhador do Oscar por Onde os Fracos Não Têm Vez e atuações soberbas em Sombras de Goya, Carne Trêmula e Mar Adentro) e Penélope Cruz, uma das atrizes mais chatas e canastronas de toda a história do cinema mundial, uma atriz que deveria ser bolsista numa escolinha de interpretação de periferia. Discordo de absolutamente todas as matérias que dizem que ela, exuberantemente, rouba as cenas do filme. Observe bem e você verá que ela faz sempre o mesmo papel em todos os filmes. E todos mal.

Essa é a falta mais grave do filme, mas essa canastrona, que até ganhou uma Framboesa de Ouro de pior atriz por Profissão de Risco, enganou outros diretores e, atuando em Volver, de Almodóvar, foi até indicada ao Oscar. Mas há detalhes mais sutilmente incômodos do que Penélope Cruz em Vicky Cristina Barcelona.

O psicanalista Contardo Calligais defende em recente artigo na Folha de São Paulo que apesar de ser uma comédia leve sobre afetos e paixões, no fundo esse é um filme triste porque os personagens se apaixonam, vivem sentimentos fortes, mas, no fim, tudo isso não transforma ninguém. Vicky e Cristina vão embora iguais ao que eram no começo, como turistas americanos que viajam para a Europa, desfrutam dos excessos oferecidos pelo velho continente e retornam ao que eram sem serem modificados pelo vivido.

Afinal, para que serve algo assim? Se não somos atingidos profundamente por uma experiência como a paixão, o que resta? As fotografias, como as que Cristina tenta, desesperadamente, catalogar suas emoções e o abandono das relações desafiadoras que experimenta?

Há ainda outros aspectos do filme que me incomodam. O recurso de narrativa em off é um deles. Esse artifício é uma muleta que um diretor usa para dizer o que não conseguiu com suas imagens e diálogos. Uma banalização, como a que fizeram os produtores de Blade Runner ao obrigar o diretor Ridley Scott a empobrecer o filme inserindo narrativas em off com a voz de Harrison Ford para tornar a obra mais fácil e comercial.

Em Vicky Cristina Barcelona há um mal disfarçado deboche classista dos personagens que representam a busca de uma vida mais equilibrada, os que não são artistas. Seriam seres insossos, financistas excessivamente preocupados em ganhar dinheiro e consumir luxos. Os exóticos, hedonistas, charmosos e valorizados são os artistas, pintores, músicos, poetas, esses seres que vivem nos limites das paixões e criam novos sentido para o mundo.

Mas, ora bolas, se não houvesse gente com grana, disposta a pagar fortunas por uma meia dúzia de pinceladas dispersas em uma tela, como as que fazem os personagens Juan Antonio, de Bardem, e Maria Emília, de Penélope Cruz, quem iria sustentar os luxos dessa dupla? Se os dois não tivessem como pagar seus vinhos e jantares caros, como iriam ter tempo para se esfaquearam e viverem de arte? É fácil ridicularizar os executivos enquanto se glamouriza a vida dos artistas. Difícil seria fazer o oposto.

E que história é aquela do poeta que escreve poesias tão belas que prefere destruí-las para não vê-las publicadas e não referendar as leis do mercado capitalista? Essa é uma das maiores idiotices que já vi. E o tal homem é mostrado no filme como um gênio. Tenho várias palavras palavras alternativas para chamá-lo. Gênio não é uma delas.

Não há nada de especialmente radical ou corajoso em mostrar turistas curtindo dias de loucura antes de retomar sua vida cotidiana. Seria como uma versão mais chique e colorida de Curtindo a Vida Adoidado. Ou, como lembrou o jornalista Arthur Dapieve no Globo "jovens-americanas-vivem-aventura-amorosa-em-país-latino. Não é muito original, é? Lembra o plot de Orquídea Selvagem". E tudo continua igual e nada muda ninguém. No filme Três Formas de Amar, pelo menos os personagens saem profundamente mexidos da experiência.

Para um filme mais audacioso, recomendo Rumo ao Sul, de Laurent Cantet, com Charlotte Rampling que conta a história de três mulheres americanas que viajam até o Haiti e se envolvem com o mesmo homem, um jovem local cheio de sex appeal. Estou sendo um pouco injusto. Vicky e suas amigas tem seus méritos. Felizmente não sou pago para relacioná-los.

22.11.08

Última Parada 174


Filme de Bruno Barreto e que tive a sorte de assistir junto com o ator principal e depois participei de um debate com o diretor e seu ator, mediado pelo jornalista da Folha Gilberto Dimentein. O debate teve momentos de discussão acalorada, bate boca e baixaria mas essa é outra história. Indicado pelo Brasil para concorrer a uma vaga entre os indicados ao próximo Oscar. História conhecida do sequestrador do ônibus 174 que já foi objeto de um excelente documentário de José Padilha. Aqui uma leitura mais ficcional em que uma mãe busca um filho e um filho busca uma mãe. O final é genial.

Um Lugar Chamado Brick Lane


Um filme que se passa principalmente em Londres numa comunidade de imigrantes de Bangladesh. Não sabia que existia esse lugar em Londres e muito menos que havia tantos bengalis por lá. Uma fotografia belíssima de Bangladesh e que conta a história de Nazneen que se casa obrigada com um homem que ela nunca viu. Ela tem duas filhas com este homem que é um homem educado mas muito simplório. O filme mostra as insatisfações dessa mulher, suas saudades de casa, a descoberta de um amor novo com um compatriota sensivel e bonito, a busca da independencia financeira e finalmente o efeito do 11 de Setembro na perseguição aos imigrantes muçulmanos em Londres. Bonito e com um final não-hollywoodiano.

Três Dias de Chuva


Baseado nos contos do escritor russo Anton Chekov. Seis retratos de vidas contemporâneas no limite durante três dias de chuva em Cleveland. Um elenco excepcional sempre visto em filmes independentes. Tive a sorte de antes da projeção, no Cine Bombril ter a visita na sala simplesmente de Wim Wenders, produtor deste filme que contou aos expectadores como foi que travou conhecimento com o projeto independente e como se encantou com ele. A trilha sonora toda de jazz é excepcional. Um filme simples mas encantador.

Rockrolla-A Grande Roubada


Último filme do diretor Guy Ritchie, autor dos ótimos Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch – Porcos e Diamantes. O filme segue a mesma linha dos anteriores e envolve sexo, drogas e rock’n roll. Comédia de ação que se passa no submundo de luxo de uma Londres cheia de mafiosos, marginaizinhos e empresários ricos e grande especuladores imobiliários. Várias histórias paralelas que se encontram com montagem ágil e ótima trilha sonora de rock, típica dos filmes de Guy Ritchie.

Lições Particulares


Filme belga que me surpreendeu bastante pela coragem em expor sem julgamento moral questões sérias como a pedofilia. A história é difícil e ao final, na sala onde eu estava, uma mulher saiu gritando que era lixo disfarçado de cinema e que os pais deviam saber como defender seus filhos. É uma questão polêmica pois mostra um adolescente que tem problemas na escola e vive suas primeiras relações sexuais com a primeira namorada. É comum as primeiras relações não serem satisfatórias mas ao conhecer Pierre, um homem adulto amigo da sua mãe, ele passa a ficar sob os cuidados desse homem que o ajuda na difícil tarefa de ser aprovado em um difícil teste escolar. A ausência da mãe e do pai e a influência cada vez maior desse homem passa a representar um duro teste na vida do garoto. Esse homem e um casal amigo, além de ajudar o rapaz nas lições passa a usá-lo sexualmente. Forte e instigante mas o bom mesmo foi o diretor não carregar no julgamento moral deixando para a platéia a decisão do que pensar.

Como eu Festejei o Fim do Mundo


Premiado filme romeno em que o pequeno ator que interpreta o garotinho Lalalilu rouba cada cena. O filme mostra uma comunidade pequena nos meses que conduziram à deposição do ditador romeno Nicolau Ceausescu. Poético, sensível e bonito. Excelente.

21.11.08

Trato é Trato


Uma comédia britânica que recebeu na minha opinião uma atenção excessiva do público da Mostra. É um daqueles filmes ingleses que mostra como uma pessoa meio maluca pode mudar a vida de outra muito certinha. História de um condutor de trem que sonha escrever um livro. Numa semana ele vê dois acidentes fatais em frente ao seu trem. Dizem-lhe que se houver mais um naquela semana ele será aposentado e ele tem que conseguir essa pessoa...o homem aparece e eles fazem um trato...mas em uma semana esse relacionamento vai mudar a vida dele...Engraçadinho mas muito previsível.

Como Diz a Bíblia


Um documentário excelente mostrando como a sociedade fundamentalista cristão americana utiliza a Bíblia para oprimir homossexuais. As experiências de cinco famílias tradicionais americanas onde se descobre que um dos membros é gay. O filme consegue mesmo dentro de um tema tão difícil ser divertido e incômodo ao mesmo tempo. Muito bom mesmo e também muito importante.

Cavalo de Duas Patas


Da iraniana Samira Makmalbaf, diretora de A Maçã, O Quadro Negro e Às Cinco da Tarde (A mais jovem diretora do mundo a participar da seleção oficial do Festival de Cannes 1998) filha do cineasta iraniano Mohsen Makhmalbaf. Filme que levou algumas pessoas a sairem antes do final. Um tanto chocante pois é a história de um menino que perdeu as duas pernas devido a uma mina, onde também morreu sua mãe. Como ele não pode caminhar ate sua escola a família contrata um garoto pobre e deficiente mental para carregá-lo nas costas. Mas o garoto aleijado começa a tratar o seu "cavalo" de um modo cruel como não se faz nem com um animal. Um filme provocante.

20.11.08

Se Nada Mais Der Certo


Um filme brasileiro excelente em que Cauã Reymond me surpreendeu com uma atuação maravilhosa e corretíssima. Aqui também temos o baiano João Miguel, presente em 10 em cada 10 filme brasileiro novo. Este filme foi premiado no Festival de Cinema do Rio e na sala em que vi o diretor do filme, José Eduardo Belmonte, apresentou o seu trabalho aos expectadores. Elenco afiado, montagem correta, trilha bonita. Um filme 100%.

Lovebirds


Outro filme português. Este usa um recurso meio batido de contar várias histórias simultaneamente. Neste filme são seis histórias e um final edificante. Filme honesto mas nada muito especial. Bom apenas. Lovebirds são aqueles periquitinhos que ficam juntinhos aos pares mas não sei bem porque usaram esse título no filme.

Aquele Querido Mês de Agosto


Filme português bastante badalado pela imprensa na Mostra e acabou até recebendo um prêmio mas me incomodou um tanto. Achei a montagem muito estranha mas depois que entendi a proposta do filme, depois que li as materias...passei a entender mas não sei se um filme deveria ter manual de instruções. Você deveria gostar de um filme pelo que ele é e pelo que mostra e não depois de saber quais os mecanismos o diretor teve que usar para fazê-lo. Até a primeira hora do filme vemos a equipe do diretor preparando o filme, filmando cenas que serão usadas no longa e aos poucos o filme real vai sendo apresentado mas ainda misturado com as cenas dos bastidores. Depois, o filme real se instala e por 1 hora vemos o filme que eles foram fazer, mas este nem é um filme tão bom assim. O que acontece é que a história passa a ser interesante porque ela foi montada deste modo. Sei lá, um negócio esquisito mas que parece que funcionou. Não sei o que pensar. Não sei se gostei ou não.

Ninho Vazio


Filme argentino não tão bom quanto o de Trapero. A história vale pelo final onde se descobre que o diretor usou um recurso narrativo bem interessante. A história que vemos a partir de certa parte do filme só acontece na imaginação do personagem e só notamos isso no final. Valeu por essa sacada. O diretor Daniel Burman é conhecido por ótimos filmes como As Leis de Família e O Abraço Partido.

O Silêncio de Lorna


Filme belga de dois diretores famosos, os irmãos Dardene que já ganharam duas vezes a Palma de Ouro em Cannes e também foram premiados em outras Mostras. Aqui uma mulher albanesa se casa com um belga viciado só para ter a cidadania belga e conseguir trabalhar mas o plano é se separar dele já que conseguiu a cidadania e casar com um russo para que ele também tenha a cidadania belga. Mas ela está presa a uma gang perigosa. O filme tem uma mensagem (odeio essa palavra mas...) que é a questão da cidadania versus a identidade. Uma questão importante na Eurpa de hoje. Após a conquista da cidadania e dos direitos, o que resta para a pessoa se não buscar a identidade? Filme nota 10

Leonera


Um ótimo filme argentino de um diretor que adoro: Pablo Trapero (que dirigiu os ótimos Família Rodante, Nascido e Criado e Do Outro Lado da Lei). Nesse filme trabalha Rodrigo Santoro que está sempre bom, mas a história é focada na personagem feminina que é acusada de matar o namorado e ferir o amante dele (Santoro). Ela é presa grávida e tem o filho na cadeia. O menino cresce e o drama dela aumenta pois tem que entregar o menino para a avó. Muito bom e sem excessos de sentimentalismo, a marca de Trapero.

Cashback


Filme americano que é a versão em longa-metragem do indicado ao Oscar de curta metragem homônimo. Estudante de Artes, sofre de insônia e para ocupar o tempo à noite trabalha em supermercado onde tipos estranhos circulam. Na minha opinião é um pouco pretensioso com câmeras lentas e música meio metidinha. Não é ruim e em algums momentos é divertido mas não é excepcional. O final é clichê.

Sonata de Tókio


Filme do diretor japonês Kiyoshi Kurosawa que mostra uma família em que o pai repentinamente perde o emprego e esconde o fato da família. O filho mais velho se alista no exército americano para lutar no Iraque e o mais jovem faz aulas de piano escondido dos pais. A mãe tenta manter a união familiar mas a desintegração de instala de vários modos e o final com o garotinho tocando uma linda música fez a platéia do Cine Sesc explodir em aplausos. Lindo!

Adoração


Filme canadense de Atom Egoyan, diretor que gosto muito desde que assisti aos seus filmes anteriores O Doce Amanhã e Exótica. História de um adolescente que acredita que é filho de um terrorista que plantou uma bomba na bagagem da sua mãe, quando era sua namorada e estava grávida dele.

19.11.08

Leite


Filme decepcionante se bem que não esperava muito dele. Jovem que vive com a mãe pobre, entrega leite de porta e porta e escrever poesias. Não tem nada de especial e os planos longos e parados não acrescentam nada.

Khamsa


Na minha opinião ums dos melhores filmes da Mostra. Lembra Pixote. Khamsa é um menino meio cigano meio árabe que vive de pequenos roubos, fugas, problemas de aceitação pelo pai bêbado e madrasta ameaçadora. Brigas de galo, mergulho no mar Mediterrâneo e a perda da inocência. Com música cigana e árabe e um ator juvenil muito promissor. Os subúrbios violentos de Marselha são tão assustadores quando as favelas cariocas.

A Canção dos Pardais


Do diretor iraniano Majid Majidi, um dos meu favoritos. História de um trabalhador de uma fazenda de avestruzes que tem uma vida simpres e uma família feliz. Como sempre acontece nos filmes iranianos um incidente aparentemente banal cria um grande peoblema e ele tem que descobrir como sobreviver em uma nova realidade. Ele descobre que pode ser mototaxi em Teerã e passa a enfrentar grandes desafios. Também mantém a tradição do cinema iraniano de usar muitas crianças nos filmes.

Lokas


Filme chileno muito engraçado lembrando um pouco A Gailola das Loucas. Um homofóbico descobre que seu pai é homossexual. A história é centrada em Pedro, o filho de nove anos, que reúne a família independentemente dos preconceitos. O ator mirim dá um show e rouba todas as cenas em que aparece. Um feito notável e um filme leve e divertido

Maré, Nossa História de Amor


Não é um filme espetacular mas bem honesto, um tema já bem batido em torno de favela e o drama de Romeu e Julieta. Já vito à pouco tempo no excelente Era uma Vez. O diferencial deste é que é um musical sobre dois jovens moradores da favela carioca da Maré separados por facções rivais do tráfico de drogas. Assisti de graça sob o Vão Livre do MASP. Marisa Orth faz o papel de uma professora sonhadora que deseja levar cultura musical à favela e se dá mal. A cultura do hip hop com romantismo. Bom.

Cinzas do Passado Redux


Filme chines de um dos meus diretores atuais favoritos: Wong Kar Wai. Baseado em um famoso romance de artes marciais. O filme é dividido em cinco histórias, cinco estações que fazem parte do calendário chinês. Lindas paisagens, fotografia estonteante, música soberba e atuações magníficas. Uma verdadeira pintura com partitura. Homem que vive no deserto por anos após e deixar sua casa quando a mulher que amava casa-se com seu irmão. Falando assim parece nada. É uma obra prima de um diretor cheio de obra primas como Amor à Flor da Pele, Felizes Juntos, Amores Expressos, 2.046, Um Beijo Roubado...

Che


São na verdade dois filmes de Steven Soderbergh. Ao todo 4 horas de projeção. A Parte 1 mostra a luta dos guerrilheiros para derrubar a ditadura cubana de Fulgêncio Batista. Um destes rebeldes é Ernesto “Che” Guevara. O primeiro filme mostra Che (Benício Del Toro) antes da libertação de Havana. A Parte 2 mostra Che na Bolívia, onde organiza um pequeno grupo de cubanos e bolivianos para a Grande Revolução Latino-americana. A história da campanha boliviana é um capítulo de tenacidade, sacrifício, idealismo e da arte de guerrilha, que acaba falhando e levando Che à morte. Pelo papel Benicio Del Toro foi eleito melhor ator no Festival de Cannes 2008. Detalhe nacionalista: Rodrigo Santoro tem destaque como Raul Castro, irmão de Fidel.

Caixa de Pandora


Um filme turco interessantíssimo que motras os problemas que duas irmãs e um irmão disfuncionais vivem no centro de Istambul. Eles tem em torno de 40 anos e vivem problemas diversos, não sendo muito afetuosos mas um dia ficam sabendo que sua idosa mãe deseapareceu do povoado onde vivia. Os irmãos tem que se juntar para procurá-la e as tensões se revelam, como uma Caixa de Pandora. Velhas feridas são abertas novamente. Eles encontram a mãe e a trazem para Istambul mas ela está com Alzraimer e causa muitos problemas. O único que parece se afeiçoar a ela é o neto que não e que está rompido com a mãe, neto que ela não conhecia e com quem passa a ter uma relação próxima.

18.11.08

Pepino


Filme chinês muito esquisito e chatinho, história que girava em torno de três famílias sempre com pepinos, mas a escolha do vegetal era totalmente aleatória pois pelo que vi poderia ser cenoura ou alcachofra que não faria nenhuma diferença. Na primeira família um trabalhador impotente toma vários afrodisíacos e diversos tipos de medicamentos, esperando uma rápida cura para a impotência. Na segunda família um desempregado é ator e diretor formado, com a universidade concluída há dois anos, mas sem trabalho passa os dias escrevendo roteiros e imaginando realizar seus próprios filmes. A terceira família vende vegetais ilegalmente em Pequim e é formada por um homem com uma esposa deficiente e um filho de 10 anos. É um daqueles filmes que acaba de repente sem razão. Na Mostra tem dessas coisas também.

Estou Viva


Uma chatura italiana. Poderia ser um dramalhão mexicano, parece uma fotonovela filmada e eu não me surpreenderia se fosse a adaptação de uma fotonovela quadro a quadro. Uma música chatíssima que fica se repetindo no filme todo em situações que supostamente seriam de tensão. Um saco. Não sei se é preconceito meu, mas não consigo gostar de atores italianos no cinema. Parece que eles estão representando, o que de fato todo ator está mais nos filmes italianos eles parecem mais do que nos outros.

Amigos de Risco


Uma surpresa boa foi este filme brasileiro filmado em Recife e logo de cara achei que não ia gostar, mas o filme é bom, uma história bem amarrada, um roteiro decente e atores desconhecidos de lá mas muito bons mesmo. Uma história interessante que prende a gente. Uma história de 3 amigos numa noite de Recife. Um deles tem uma overdose e os outros dois têm que carregar ele até um hospital. Lembra aquele filme ótimo em que um cara tenta a noite toda escapar de um bairro violento de Nova Yorque, esqueci o nome. Nesse filme vemos como Recife é pobre, violenta, suja, parece uma cidade fantasma. Ótimo filme.

24 City


Outra decepção da Mostra. Este era um dos filmes mais badalados, sala lotada, sessão esgotada e muita expectativa. O diretor, Jia Zhang-ke, é conhecido nos circuitos de festivais inclusive da Mostra onde já exibiu vários filmes e ganhou um dos prêmios principais anos atrás. Não consegui ver até o fim pois dormi no meio dele e saí da sala lotada.É um documentário facílimo de fazer pois ele teve apenas que ligar a câmera e entrevistar pessoas que trabalharam em uma fábrica que foi desativada para dar lugar a um hotel de luxo na China. Nem como retrato da modernização chinesa serve. Histórias que são simples variações sobre o mesmo tema, aqueles trabalhadores falando falando falando sobre a mesma coisa e você não vê nada de novo, não há nenhum movimento ou efeito de câmera, nem de luz, nem de montagem, nem de som. Acho que o diretor estava querendo abolir todos os elementos que fazem um filme, inclusive a direção e o roteiro. O crítico da Folha Cássio Starling Carlos avaliou este filme como ótimo, o que me deixou com a sensação de que eu não entendi nada. Na verdade só li gente falando bem dele. O que aconteceu comigo?

Erva do Rato


Do brasileiro Julio Bressante. Com Selton Mello e Alessandra Negrini Segundo dizem é levemente inspirado nos contos "A Causa Secreta" e "Um Esqueleto" de Machado de Assis, mas achei uma bomba. Um dos piores filmes que já vi na vida. Um filme totalmente ridículo e por incrível que pareça a sala estava lotada e eu tive que sentar no chão junto com várias pessoas. Algumas se levantaram e foram embora na metade, assim como eu. Incrível como alguém é capaz de filmar uma coisa ridícula assim e ainda exibir num festival. Ouvi comentários de expectadores nas filas e aparentemente todos detestaram. E olhe que Selton Melo participou de ótimos filmes do cinema nacional como Meu Nome não é Jonnhy, Auto da Compadecida, Lavoura Arcaica...E Julio Bressante dirigiu Matou a Família e foi ao Cinema. Acho que nesse filme a pessoa que sai da sala de projeção fica tão arrasada que é capaz de sair do cinema e matar a família. O crítico da Folha Pedro Butcher avaliou o filme como bom e eu não entendo mais nada. O filme traz apenas dois personagens sem nome, quase todo o tempo confinados em uma casa. Um homem e uma mulher se conhecem no cemitério e passam a viver juntos. Ele fotografa a mulher obssessivamente, até que um rato começa a roer as fotos. A partir daí, capturá-lo passa a ser sua nova obsessão. O rato é pego, torturado e morto, mas a mulher, que já vinha dando sinais de que estava doente, também morre. A obsessão do homem, porém, permanece, e agora só lhe resta fotografar um esqueleto.

Alvorecer em Sunset


Filme americano sobre desencontros em quartos de um motel. Os filmes da Mostra quase todos tem baixo orçamento e esse filme é sobre vários casais que vão para um motel de Los Angeles para tentarem transar. Casa um no seu quarto e nenhum afinal consegue consumar a transa. O primeiro casal porque o cara goza rápido e dorme e a mulher fica louca ligando para tudo que é homem tentando transar e tentando acordar o cara; o segundo casal é divorciado e se encontra a cada 3 meses só para transar mas a mulher se re-apaixona pelo cara e não consegue transar pois ele não está apaixonado; o terceiro casal tem uma mulher que fala sem parar igual uma louca, uma negra daquelas que falam com gírias dos negros e o cara perde o tesão; o quarto casal é com um velho que leva a amiga adolescente da filha para o motel e broxa; o quinto casal é de uma lésbica que contrata uma massagista pensando que ela é prostituta mas na verdade é só uma massagista; o sexto casal é de um cara que só quer fumar maconha e conversar e eles acabam ficando loucos demais e não transam; o sétimo casal é uma dupla que a mulher quer apanhar mas o cara não sabe bater nem gosta e não rola, há ainda dois casais cuja proposta era um suingue mas um dos caras acha que o outro quer ele e não a esposa. O último casal é uma mulher que foi estuprada alguns meses antes e não consegue transar com o cara que é todo carinhoso e tudo mas ela simplesmente trava. Hilário.

Rumo a Meca


Documentário austríaco sobre Muhammad Asad, um cara que eu nunca tinha ouvido falar. Muhammad Asad ele escreveu um livro chamado Rumo a Meca. Esse cara foi embaixador do Paquistão na ONU e ajudou a criar o próprio Paquistão separando-o da Índia, o que acabou em um grande massacre, onde morreram centenas de milhares de indus e muçulmanos. Ele era judeu e se converteu ao islamismo, o que é algo muito raro. Tornou-se uma pessoa importantíssima, sendo inclusive o autor de uma das traduções mais respeitadas do Corão. Ele morreu aos 90 anos, sozinho e sem amigos. O documentário percorre o caminho dele da Ucrânia, depois Áustria, Arábia Saudita, Meca, Índia, Paquistão, Nova Iorque, Marrocos e finalmente Espanha. Ele foi testemunha da segunda guerra, das guerras israelenses etc.

Procedimento Operacional Padrão


Documentário americano sobre a prisão iraquiana de Abu Graibi onde os americanos tiraram aquelas fotos chocantes dos militares americanos torturando e humilhando prisioneiros iraquianos, a maioria inocentes. Chocante e muito bom, pois o diretor entrevistou vários protagonistas que no final foram processados por uma corte que julgou o inquérito que foi aberto por causa da divulgação das fotos na mídia. Detalhe: nenhum militar com patente superior a sargento foi punido. Interessante observar que havia três mulheres envolvidas e elas portavam-se, muitas vezes, pior do que os homens. O documentário permite avaliar que o Exército sempre foi um território masculino e mesmo depois que abriu as portas para mulheres, ainda assim elas precisam ser muito mais insensíveis do que eles para serem respeitadas. E se desumanizam. Procedimento Operacional Padrão é o nome que se deu à maioria das ações retratadas nas fotos. Algumas eram tortura mesmo, mas a maioria recebeu o carimbo de P.O.P que é humilhação para conseguir confissão. É como eles chamaram oficialmente aquilo.

Rescaldo da Mostra


Retorno da 32ª Mostra de Cinema de São Paulo, meu destino de férias há 10 outubros, esgotado por 40 filmes em 15 dias. Próximo do meu recorde de 50.

Comento, brevemente, a maioria dos que vi, mas uma das características de uma Mostra como a de São Paulo, com mais de 400 opções de filmes, é exatamente o sofrimento que é tentar ver o máximo dos melhores sabendo que não se conseguirá assistir a sequer 1/6 das opções.

Os filmes são exibidos em 25 salas de cinema e espaços espalhados pela cidade de São Paulo. Cada filme é exibido quatro vezes em horários e locais diferentes para permitir que todos tenham oportunidade de vê-lo. Alguns são exibidos gratuitamente, outros dão a chance de bater papo com diretores convidados. Neste ano vi um filme em que o cineasta Win Wenders, um dos homenageados dessa Mostra, estava e fez a apresentação do longa. Vi também um filme em que ao final houve debate com o diretor Bruno Barreto, e o ator principal do filme Ultima Parada 171, mediado por Gilberto Dimenstein.

Há diversos casos em que os ingressos se esgotam antes, mesmo ficando uma hora numa fila. Elas se formam 1 hora antes da abertura da bilheteria que por sua vez é aberta 1 hora antes da primeira sessão do dia. Significa que mesmo chegando cedo seu lugar pode não estar garantido, pois muita gente compra ingressos pela internet e parte dos assentos é reservada para quem compra o passaporte com direito a 20 ou 40 filmes ou o passaporte integral que deixa você ver quantos você quiser.

Tenho que dar uma idéia de como é esse universo da Mostra. Parece ser um universo à parte, pois as pessoas que participam vivem intensamente. Você se acostuma a ver as mesmas pessoas das mostras anteriores e nas filas vemos as mesmas caras depois de algum tempo. A maioria das pessoas prefere aqueles filmes que não estão programados para entrar no circuito, pois dá para saber com antecedência a programação dos próximos meses. E dá também para saber quais os que vão demorar para entrar quando no guia da Mostra aparece a inscrição (legenda eletrônica) e a gente sabe que o filme não foi legendado ainda pois a legenda eletrônica é colocada na sala de projeção durante a exibição, muitas vezes o filme tem legenda em inglês ou outra língua e legenda eletrônica em português.

16.11.08

Pirataria ou Falsificação?


Quando você pensa em um pirata, associa essa figura a que sentimentos? Liberdade e espírito de aventura, companheirismo entre marujos, celebrações à base de rum com canções e dança em um convés à luz do luar?
Quando ouve a palavra pirata, qual a primeira imagem que vem à sua mente? Seria a de um marujo navegando pelos sete mares ou a dos produtos falsificados vendidos como cópias dos originais? Hoje as duas imagens se confundem desde que algum “gênio” resolveu chamar de piratas produtos falsificados.

Estas imagens dos piratas foram construídas no nosso imaginário pelo cinema, essa poderosa indústria de formação de conceitos e mentalidades. Quantas vezes vimos essas imagens ao ponto de elas se tornaram indissociáveis da pirataria? A figura de Jonny Depp parece saltar ante nossos olhos com seu ar debochado, mas romântico; traiçoeiro, mas de bom coração; levemente afetado, mas incrivelmente sedutor.

Mas engana-se quem pensa que essa imagem idealizada dos piratas começou com Os Piratas do Caribe, desde a década de 20 o cinema americano é pródigo em retratar esses criminosos com cores românticas. O belíssimo ator Errol Flynn, desejado por dez entre dez mulheres (e, dizem, também por alguns homens), fez vários papéis de piratas sempre idealizados em filmes como O Capitão Blood, O Falcão do Mar e A Ilha dos Corsários. Mas houve também os viris Randolph Scott (O Capitão Kidd), Tyrone Power (O Cisne Negro), Burt Lancaster (Piratas Terríveis), Yul Brynner (Os Bucaneiros), Anthony Quinn (Velas ao Vento) e muitos outros.

Falso! Isso é pura construção. Piratas de verdade (corsos ou bucaneiros) eram marginais terríveis, saqueadores e estupradores desumanos, homens imundos e sem disciplina, dedicados à pilhagem e ao seqüestro para obtenção de resgate pelos reféns. Entre os principais castigos que os piratas davam às suas vítimas estavam a tortura, a queima e a mutilação, mas o maior prazer era assistirem aos prisioneiros serem devorados por tubarões.

Vemos hoje as pessoas se referirem aos produtos falsificados com o nome de produtos piratas. Esse nome é uma péssima escolha para quem deseja combater esses produtos, pois o termo está indissociável da imagem romântica idealizada da pirataria. Não entendo como os produtores culturais que criaram essa imagem e hoje sofrem com a falsificação dos seus filmes e discos não pensaram em utilizar outro termo. O termo correto: falsificações.

No cinema vemos uma vinheta que diz: “Pirataria é roubo. Filme só original”. Já ouvi, constrangido, risos debochados em vários cinemas durante essa vinheta. As pessoas não se conscientizam assim. É simplória e primária essa abordagem. Não se muda uma imagem solidificada no imaginário coletivo desta forma.

Os chefes dos grandes estúdios de cinema prejudicados com as falsificações dos seus produtos deveriam se juntar e fazer uma investida para formar uma nova imagem da pirataria. Deveriam ter o apoio das centenas de indústrias prejudicadas com as falsificações. O combate aos produtos falsos consome preciosos recursos públicos em gastos da Polícia e Receita Federal. É uma guerra perdida se não mudarem o foco e atacarem em outras frentes. É como tentar esvaziar um tanque com cem baldes enquanto esse tanque é alimentado por mil fontes.

Há alguns anos discuti esse tema longamente com um colega que hoje ocupa um cargo importante. Não sei se hoje ele continua pensando do mesmo modo, mas defendia a “pirataria” como forma de luta contra os grandes capitalistas. Acho que ele via o mega empresário das falsificações Law Kin Chong, o Rei da 25 de Março, como um tipo de Robin Wood. Não adiantava eu argumentar que havia interesses também industriais por trás das falsificações, que elas produziam perda de arrecadação de impostos, reduzia empregos, prejudicava a propriedade intelectual, que os produtos eram de péssima qualidade e prejudicavam consumidores com remédios falsos que podiam matar, tênis com sistemas de amortecimento falsificados que prejudicavam tendões e músculos...a lista é infinita. Mas meu ex-colega insistia que a indústria já ganhara muito dinheiro com os consumidores e essa era uma forma de zerarem as contas.

Essa é a imagem do pirata rebelde e sem patrão. Nem a pirataria real era exatamente assim e muito menos os “piratas” falsificados o são. Piratas famosos eram como funcionários públicos a serviço de monarcas. A rainha Elizabeth I era íntima do famoso pirata Francis Drake, nomeado por ela vice-almirante. O rei português D.Dinis fornecia uma carta chamada Carta de Corso a piratas como Manoel Peçanha e Gonçalo Pacheco e ficava com 1/5 das suas pilhagens. Muitos piratas estavam intimamente ligados ao poder real.

Vários amigos dizem, com certo orgulho, que compram filmes falsos, chamando-os eufemicamente de “genéricos”. Por que não assumem que este termo é outra falsidade, pois a indústria dos genéricos é legal e paga seus impostos.

Na semana passada foi divulgada uma pesquisa que mostrou que 70% dos brasileiros já compraram produtos falsos. Há pouco tempo o próprio presidente da República assistiu com amigos a um filme pirata no seu Aerolula. Certamente, são exemplos que incentivam a prática desse crime.

14.11.08

Ensaio Sobre a Cegueira


Após assistir ao último filme de Fernando Meireles, diretor respeitado no Brasil e exterior após os sucessos de Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel, ambos com passagens pelo Oscar, fiquei com a sensação de que há dois tipos de audiências para esse filme: a dos que leram o livro e a dos que não o leram.

Li este e outros nove livros de José Saramago, ganhador do prêmio Nobel de literatura. Há até uma espécie de continuação em Ensaio Sobre a Lucidez. Também devorei tudo que podia sobre o filme: matérias, artigos, opiniões, críticas etc, e estava em São Paulo quando rodaram algumas cenas por lá. Como acontece quando se tem muita expectativa em uma coisa, o resultado é estranho...Sensação bem diferente da de há seis anos, num festival de cinema, quando da primeira película baseada em uma obra de Saramago, o filme holandês A Jangada de Pedra.

Ensaio Sobre a Cegueira que obteve reações frias quando abriu em maio o último Festival de Cannes é um bom filme, mas é fiel demais ao livro e isso tira dele, como obra de arte independente, o que ele tinha que ter: uma linguagem autoral, o dedo do diretor, o autor, em última análise, do filme. Meireles ficou intimidado pelo fato de Saramago ainda estar vivo e poder assistir ao resultado numa premiére exclusiva.

O diretor brasileiro tentou sem êxito anos atrás realizar este filme, mas não conseguiu obter os direitos de Saramago. O destino deu-lhe uma segunda chance quando foi convidado pelos produtores japoneses. Mas Meireles não deu sua “visão” da história, mas reproduziu em celulóide a visão de Saramago. Visão em um filme sobre a cegueira pode parecer contraditório, mas foi isso mesmo: o brilho do autor luso ofuscou a ótica de Meireles. Como a cegueira branca, a lente dos óculos do português cegou a lente da câmera do brasileiro.

A luz me incomodou um tanto. A insistência em frisar o tempo todo a brancura do branco levou a certo enjôo, lembrado a letra da famosíssima canção “A Whiter Shade of Pale” (ao pé da letra: “Um tom mais branco do pálido”). Há também o fato de que no livro (e também no filme, justiça se faça), local e tempo onde se passa a história não são identificáveis. Uma tacada de mestre do autor na sua metáfora da universalidade do abandono.

Mas há questões incômodas. O filme é falado em inglês — tinha que ser falado em algum idioma, obviamente —, o casal principal é norte-americano (Julianne Moore e Mark Ruffalo, além do medalhão Danny Glover) e há uma desagradável perfeição típica dos filmes americanos. Talvez por isso eles gostem tanto de Meireles e sua direção muito enquadrada, muito perfeita e muito limpa. Mesmo o lixo cenográfico da tela parece demais com lixo cenográfico e não com lixo de verdade.

Ler na imprensa o texto de Saramago rasgando elogios ao filme só reforçou minha sensação. Sim, o filme tem cenas fantásticas, como a das mulheres em fila seguindo para o estupro, essa cena inclusive levou o próprio Saramago às lágrimas. A mim não chegou a tanto, mas me tocou. Saramago é um gênio e Meireles um grande diretor. Fizeram um trabalho correto. Talvez isso devesse bastar...Por que então fiquei sentido que faltou um toque de alma?

Sem Talento Para Relaxar


Retorno de férias com a certeza de que, como diz o meu genioso colega Gésner Braga com palavras contundentes como um tijolo, não tenho talento para relaxar. Quem disse que férias são para descansar precisa me ensinar como se faz isso.

Em 30 dias caberiam um diazinho para uma praia ou um fim de tarde numa rede sob um coqueiro em Itapuã (se me apontarem um coqueiro sou capaz de dizer “Oi, há quanto tempo!”).

Mas o que faz uma pessoa anormal nas suas férias? Elege São Paulo e assiste a 40 filmes, lê 3 livros, vê 4 peças de teatro e visita 5 museus....essa é a parte sagrada, a parte profana deixo para a boa e velha imaginação do leitor.

Seria enfadonho escrever sobre essa vasta programação e arrogância listar as vantagens de São Paulo em relação a Salvador no campo da haut culture, como dizem esnobemente os franceses. Por que Salvador não tem uma Mostra Internacional como há 32 anos em São Paulo e há dez no Rio? São mais de 350 filmes nesses festivais. Em São Paulo a Mostra ocupa 25 salas pela cidade com 20 dias de exibição. Em Salvador teríamos público para 20% disso?

Salvador é pobre comparada ao Rio e São Paulo, mas não é só por isso que não valorizamos esse tipo de arte. A cultura soteropolitana é uma fábrica de irrelevâncias que valoriza o supérfluo, a improvisação, o fútil e o banal. A pobreza real não está no bolso, mas bem acima.

Proporcionalmente, não são muitos os que apreciam manifestações culturais menos irrelevantes, freqüentando salas off-multiplex. Dá para colocá-los todos numa única sala. Se essa sala pegar fogo com o povo dentro, os cinemas off-multiplex vão à falência.

Conheço muita gente que nunca foi a uma das cinco salas do circuito Sala de Arte (Museu de Geologia, Aliança Francesa, MAM, Pelourinho e UFBA). Muitos alegam não gostar dos “filmes de arte”. Ninguém é obrigado a gostar de filmes com narrativas e estéticas off-multiplex, mas por que essas pessoas se orgulham tanto de espinafrar os chamados filmes “cult”? Tudo bem que o povo que freqüenta o circuito das salas de arte tem um ar meio solene e compenetrado, mas só por ali a pipoca ser banida e o silêncio ser respeitado elas já mereciam um troféu.

A comodidade é uma das razões. Nos multiplexes o estacionamento é seguro e dá para fazer diferentes coisas nos shoppings antes ou depois do filme, mas porque há tanta gente que nem sequer conhece as salas “alternativas”?

Voltemos ao dinheiro. A maioria dos cinéfilos das salas de arte são estudantes, professores e aposentados e não são ricos. Quanto mais pobre ou mais abastado, menos interessado o sujeito está nesses filmes. Os pobres, por falta de dinheiro, hábito e informação e os ricos por falta do quê? Respostas são bem vindas.

Aos advogados da nossa relevância cultural favor excluir o Carnaval e a Axé Music dessa lista já que, há tempos essa dupla deixou o terreno da arte e virou indústria. E excluam também da lista os medalhões da música (e da literatura!?). Se no passado a Bahia lhes deu régua e compasso, o dinheiro que ganham hoje está fora daqui e sua inspiração ultrapassa o Farol de Itapuã. É pura farra!

Para ilustrar, um trecho do livro 1808, de Laurentino Gomes, um dos que li nas férias. Nele o autor descreve a cidade de Salvador quando da passagem por aqui da família real portuguesa: “Já naquela época a cidade se caracterizava pelas procissões e festas religiosas que misturavam rituais sagrados e profanos. Um viajante francês de 1718 ficou chocado ao observar o vice-rei dançando diante do altar-mor em honra a São Gonçalo do Amarante ‘ Ele se chacoalhava de forma violenta, que não convinha nem à sua idade nem à sua posição’”.

E para terminar com um pouco de humor. Resumo do público da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, meu destino há nove outubros. A fauna é composta de quatro tipos:

1º - Espécimes endêmicos: Cinéfilos mais radicais que habitam o bioma da Mostra há mais de dez anos. Você reconhece esses espécimes pela forma como andam, parecem estar na sala da sua casa; pela indumentária, muitos usam a camiseta da Mostra e exibem crachás com direito a pacotes de 40 filmes ou passaporte integral. Esses não costumam andar em grupos, mas solitários, que é uma das características dos verdadeiros amantes da Mostra, pois somente sozinhos se consegue dar atenção à maratona para não perder as sessões com intervalos de 20 minutos. Tomam muito café e comem pãezinhos de queijo às baciadas, pois a resistência requer reposição de energias.

2º - Espécimes epidêmicos: Esses são os chatos. Há os que invadem em grupos de 3 ou 4, sempre formados por dois homens e uma mulher ou por dois casais, mas nunca com objetivos afetivos, mas para se exibirem. Quase sempre são estudantes de jornalismo ou outro curso do tipo. Os cabelos dos rapazes são sempre grandes e barbichas ou barbinhas ralas são fundamentais. As meninas exibem vestidinhos leves e nenhuma maquiagem. Esses chatos de galocha adoram comentar nas filas as quantidades absurdas de filmes que já viram e elogiar planos-seqüências de 20 minutos de um filme do Cazaquistão em que três personagens andam no deserto e nada acontece por 2 horas. E adoram Godard.

3º - Espécimes camuflados: Para minha felicidade, são a maioria. Discretos, você quase não os notaria se não fossem tantos. Andam calmamente entre as salas, estão nas filas em silêncio ou folheando o guia da Mostra para escolher os próximos filmes. Esses espécimes gostam de cinema, mas não são de se exibirem. Raramente estão em dupla e quando opinam sobre um filme não se prolongam horas nas análises.

4º- Espécimes alienígenas: Felizmente, são os mais raros e estão na Mostra de pára-quedas. Não sabem os nomes dos diretores dos filmes e não assistiram a nenhum dos filmes das mostras anteriores. Somem de repente, pois abandonam as salas se o filme demora um pouco mais para engrenar.

28.5.08

A Harpa e o Berimbau


Faço uma pausa na coluna Culpa com Feriados Diferentes para mudar um pouco de assunto. É que creio que muito papel e tinta já foram gastos ultimamente ecoando as declarações do coordenador da Faculdade de Medicina sobre o QI dos baianos. Por obrigação e vício, leio compulsivamente diversos jornais, revistas e blogs diariamente. Em vão, procurei uma voz dissonante, mas pelo visto todos são unânimes em condenar o coordenador pelas suas declarações. E como toda unanimidade me cheira mal, achei que faltava algo nas análises.

Freio de arrumação! Pondo as coisas em perspectiva, o homem falou um monte de asneiras, mas o que se pode tirar de proveito dessas declarações racistas? Entre as bobagens que ele disse, sobre muitas se poderiam refletir.

Ninguém lembrou de que o foco da questão está no baixo índice que os estudantes de Medicina conseguiram no ex-Provão. Houve ou não boicote ao teste? Se sim, a análise é uma; se não, é outra. Considerando que não houve boicote e as notas foram baixas pela deficiência do ensino, o problema estaria na faculdade ou nos alunos?

Mas as coisas não são tão simples. A melhor declaração que li nesse episódio foi do diretor da Faculdade de Medicina. Ele disse que a fala do coordenador machucam, mas não matam. Diferentemente do estado precário da faculdade e do hospital universitário, que matam pacientes por falta de condições e formam profissionais sem preparo, que acabarão matando adiante.

Além disso, a UFBA tem um histórico de desvio de dinheiro e o próprio Ministério Público investiga as fraudes. Reportagens mostram equipamentos caríssimos de medicina nuclear encaixotados há anos por falta de técnicos para instalá-los, alas desativadas do Hospital das Clínicas, médicos e professores mal remunerados, com carga horária excessiva e uma fortuna mal empregada. E todo mundo só fala do berimbau.

O baiano adora falar bem se si mesmo. A maioria deles tem muitas certezas absolutas e poucas dúvidas instigantes. Quem quiser irritar um baiano basta questionar a tal baianidade, essa ficção. A Bahia não é melhor ou pior do que nenhum lugar. Adoramos nos julgar melhores do que os outros. Nossas praias seriam melhores; nossos casarões, mais bonitos; nossas mulheres, mais fogosas. Nosso carnaval é o melhor do mundo...Isso em psicanálise chama-se complexo de inferioridade recalcado. O sujeito se sente, no fundo, inferior, e cria uma capa de superioridade como artifício para esconder a inferioridade. Como aqueles homens que batem nas mulheres, mas não conseguem enfrentar outro homem.

O que deveria estar-se discutindo é a precariedade da Faculdade de Medicina. Aquele coordenador, com suas declarações racistas, jogou um pouco de luz sobre o problema, mas garanto que se fosse uma declaração politicamente correta e indignada sobre o estado da faculdade, apontando suas mazelas e seu péssimo ensino, ninguém gastaria um parágrafo para ecoar o assunto. Como ele falou de QI e berimbau, todo mundo se julga ofendido.

A Bahia já deu ao Brasil inúmeros nomes de valor, mas isso não é um privilégio nosso. Todos os estados deram nomes importantes ao Brasil. Nesse quesito, como em quase todos os outros, somos praticamente iguais. Estão sempre listando Ruy Barbosa, Castro Alves, Milton Santos, Glauber Rocha, Gregório de Matos, Anísio Teixeira....a lista é infinita. A primeira coisa que me chama a atenção nessas listas é que a maioria dos juristas, escritores ou educadores citados já morreu. Seríamos hoje capazes de formar figuras como essas? Nossa educação atual é melhor do que era?

Outra coisa que me chama atenção nas listas é a enorme quantidade de músicos citados pelos defensores do QI baiano: Caetano, Gil, Gal, Bethânia, João Gilberto....a lista não termina nunca. Mas pergunto: quantos médicos há nessa lista? Quantos físicos? Quantos professores? Quantos engenheiros? Quantos arquitetos? Quantos sanitaristas? A Bahia é celeiro de músicos e escritores como João Ubaldo e Jorge Amado...mas o foco não era a Faculdade de Medicina? Como saímos do estetoscópio e viemos parar em João Gilberto?

Ocorre que, como em outras coisas, também somos mestres em desviar o foco da questão. Um Estado que privilegia de tal maneira a carnavalização de tudo, que até uma parada evangélica tem como atração um trio elétrico tocando arrocha godspell, não pode reclamar quando comparam um berimbau a uma harpa. O problema não está no QI de um percussionista ou de um harpista, mas na incrível inversão de valores que se vê aqui. Quem quiser aprender harpa ou piano não terá nem espaço nem apoio. Já um berimbau o sujeito aprende até porque não vai faltar uma roda de capoeira para ele se apresentar e ganhar uns trocadinhos. E ainda pode aparecer nas fotos e vídeos de propaganda das maravilhas da Bahia, o Estado com a segunda pior educação do Brasil.

A educação brasileira privilegia o ensino universitário e abandona as escolas públicas. Todos só têm olhos para o diploma. Prouni e cotas, corretamente, garantem acesso às universidades a uma classe historicamente mais pobre, mas e a educação de nível médio? Toda essa política educacional é um atraso só. E ainda vem falar de QI? É não querer enxergar o problema real.

Esse é um Estado carnavalizado, onde os cacetes armados brotam como cogumelos e atraem um público ávido por mexer os quadris, sedento por álcool e entretenimento. Esse é o ambiente ideal para um médico ou para um pagodeiro? Um bom estudante de medicina não deve ter tempo livre para desfrutar dessas folias. Já com o percussionista a história é outra.

Não importa se um guerreiro massai tem um QI igual ao de um neurociurgião suíço, mas sim refletir sobre um lugar em que um presidente semi-analfabeto, que se vangloria da sua pouca educação, é idolatrado. Num lugar desses, quem inclui Durval Lélis e Ivete Sangalo numa lista ao lado de Anísio Teixeira e Milton Santos é porque não sabe diferenciar nenhum deles. A chance de não conhecer os dois últimos pode não estar ligado à quantidade de QI, mas reflete bem a qualidade dele.

2.5.08

Culpa com Feriados Diferentes VI


Você conhece a Fonte Nova? Nela, até a interdição, cabiam 60 mil espectadores por jogo. Você acha isso uma multidão, não é? Esses números lhe parecem imensos quando você se vê naquele estádio lotado durante um jogo. Então agora imagine 25 Fontes Novas superlotadas ou então se imagine ali todo mês por dois anos. Ao seu lado estariam 1 milhão e quinhentos mil mulheres. Esses ao os números oficiais da quantidade de mulheres que abortam no Brasil por ano. O número real pode ser o dobro. Três milhões por ano. Oito mil e duzentas mulheres abortando a cada dia!

Porque estou falando disso numa coluna chamada Culpa com Feriados Diferentes? É que me bati com a seguinte manchete do Estadão: “Brasileira que aborta é católica, casada, trabalha e tem filho”.

No levantamento mais atualizado sobre o perfil da brasileira que aborta descobriu-se que a maioria é casada, já é mãe, trabalha fora, tem entre 20 e 29 anos, completou ao menos os oito anos do ensino fundamental. E, veja só: é católica!

Além disso, a decisão pela interrupção da gravidez é tomada com o parceiro. A maioria delas usa métodos caseiros, como chás misturados ao Cytotec. Só 2,5% das mulheres que abortaram ficaram grávidas ao terem uma relação eventual. O perfil traçado é incompleto, pois baseia-se nos registros das mulheres que chegaram aos serviços públicos com complicações após usarem métodos abortivos. Não inclui abortos feitos pelas mulheres de classes média e alta em clínicas e hospitais privados e aquelas que abortam sem complicações clínicas.

A Igreja Católica do Rio tem usados fetos de resina e vídeos durante missas e palestras. Vários fiéis chegaram a passar mal, com náuseas e vômitos, após assistir às imagens com cenas de aborto chocantes. Na igreja Santa Margarida, na Lagoa, o "feto" está dentro de um vidro com gel, como se tivesse na placenta, exposto no altar. O combate ao aborto é tema da campanha da fraternidade deste ano da CNBB. Ainda mais polêmica é a exibição de quatro vídeos com cenas reais de fetos sendo retirados de mulheres.

Se você digitar a palavra aborto no google imagens, encontrará milhares e terrivelmente chocantes fotos de fetos dilacerados, resultados de abortos. Essas obscenas fotos e vídeos são parte da uma violenta campanha dos católicos contra a descriminalização da prática. As Igrejas fazem crer que o aborto é uma decisão fácil para as mulheres. Não vou bater nessa tecla, pois é óbvio que é uma falácia. Mulher alguma toma essa decisão facilmente. Mas o que eu posso pensar quando os dados oficiais dizem que a maioria dessas mulheres se diz católica?

Eu não tenho paciência para isso. Estou tentando, sem sucesso, entender essa combinação contraditória: católica que aborta e ainda é católica. Como pode, se a igreja é contra, seu papa, seu bispo, seu padre são contra...

Um milhão e quinhentos mil abortos por ano. Apesar de aceito pelos especialistas, e pelo Ministério da Saúde, grupos religiosos questionam os números, dizendo que os dados do SUS não são confiáveis e que o índice seria mais baixo. A pesquisa, porém mostra o contrário, com indícios de que o número pode ser o dobro.

A Igreja poderia fazer um enorme serviço em vez de negar os números e a realidade. Se apenas não se metesse nesse assunto já estaria ajudando muito, mas, em vez disso, imputa uma culpa ainda maior na mente de mulheres ingênuas o bastante para se sentirem psicologicamente mais arrasadas do que já estão com o aborto em si. Como se ele já não fosse suficientemente doloroso. Aliás, a este propósito, fico arrasado por ter perdido, nas minhas muitas mudanças de casa, um cartão postal que comprei uma vez em Amsterdã com uma imagem ao mesmo tempo hilária e profundamente simbólica. Numa montagem, via-se o papa grávido. Na legenda: “Se os homens engravidassem o aborto seria um sacramento”.

Marx dizia que “A dominação do homem pelo homem começou com a dominação da mulher pelo homem” Por isso, como estamos lidando com uma dor das mulheres, tratamos de uma dor menos importante, menos relevante, menos dolorosa e os padres, bispos e papas, homens semi-castrados, podem meter o bedelho no assunto como se fosse um tema que afetasse a eles.


Em recente pesquisa nacional para saber a opinião do brasileiro sobre o direito da mulher ao aborto, a maioria foi contra. Não sei dizer quantos desses entrevistados eram homens, mas acredito que somente mulheres deveriam responder a uma questão dessas.

As mulheres são as vítimas principais nessa história, mas o papel de vítima, já dizia o educador Paulo Freire na sua Pedagogia do Oprimido, é um papel bastante ativo. Dá pena ser uma vítima. Mas também dá trabalho ser uma vítima. Longe de mim penalizar ainda mais mulheres que já sofrem com o aborto, mas o que posso dizer quando elas próprias, após este ato, ainda se dizem católicas? E ainda vão buscar o perdão nos templos de homens que a farão sentir ainda mais culpa!?

Quem quiser ler um livro excelente sobre o tema Mulheres, Sexualidade e A Igreja Católica, recomendo “Eunucos pelo Reino de Deus”, de Uta Ranke-Heinemann, considerada a maior teóloga do mundo e que perdeu sua cátedra na Universidade de Heidelberg quando publicou esse livro. Nas palavras de Leonardo Boff, na introdução da edição brasileira: “A igreja dos celibatários diz um não a praticamente tudo o que se refere à esfera do sexo, do prazer, da contracepção, do jogo difícil da sexualidade entre um homem e uma mulher.”

25.4.08

Culpa com Feriados Diferentes V


Esta é a quinta edição da coluna “Culpa com Feriados Diferentes”. Já espicacei nessas semanas meus amigos cristãos com provocações diversas aos seus ídolos sagrados, mas não fui honrado com uma defesa à altura da sua fé. Como as pessoas têm suas crenças atacados e não as defendem? E olhe que não tenho poupado munição. Onde estão os cristãos? Por que não se defendem de um franco atirador? Será que esta coluna tem textos tão inexpressivos que não merecem uma mísera réplica?.
Já citei na 1ª coluna desta série uma pesquisa realizada nos EUA pelo Gallup que mostra que entre 95% e 80% dos americanos votariam em uma mulher, um católico, um judeu, um negro, um mórmon ou um homossexual para presidente, mas menos de 50% votariam em um ateu.
Pois pesquisa recente encomendada pela VEJA, realizada pela CNT/Sensus, mostra que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas apenas 13% votariam em um ateu. O levantamento mostra que, entre as minorias (racial, sexual, de gênero...), a mais rejeitada é a anti-religiosa.
A VEJA pergunta: faz sentido rejeitar alguém apenas por não acreditar em Deus? Eu acrescento: e faz sentido rejeitar um negro por ser negro, uma mulher por ser mulher ou um homossexual por ser homossexual? Faz sentido rejeitar alguém por ser o que é?

A historiadora paulista Eliane Moura Silva, especialista em religião, ela própria uma atéia, responde: "O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral. É um entendimento que se espalha de modo homogêneo por todas as classes sociais.” Em suas aulas sobre ateísmo na Casa do Saber, instituição para intelectuais paulistas ricos, a platéia teve reação fortemente hostil às idéias ateístas.

A neurocientista Silvia Helena Cardoso, doutora em psicobiologia pela Universidade da Califórnia, publicou artigo num jornal de Campinas discutindo se os santos seriam esquizofrênicos, dada a freqüência com que tinham visões – ou alucinações. Recebeu tantas ameaças que abandonou o tema. O professor Antônio Flávio Pierucci, da USP, especialista em sociologia da religião, explica: "Os brasileiros não estão habituados a se confrontar com a realidade do ateu". Por isso os políticos dizem que ninguém é mais temente a Deus do que eles.

VEJA lembra que o Datafolha fez uma pesquisa sobre religiosidade do brasileiro quando Bento XVI esteve por aqui. A pesquisa relevou: 97% acreditam em Deus; 93% crêm que Jesus ressuscitou após a crucificação e 86% concordaram que Maria concebeu sendo virgem. “Com esses números explica-se porque o Brasil está entre os países mais crédulos do mundo. Isso numa era em que abundam descobertas científicas sobre a origem do universo e das espécies. Se a credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar que nenhuma prova científica, por mais sólida e contundente, possa abalar a crença no divino.”

Duvido da consistência dessas respostas. Garanto que metade dos que dizem acreditar em Deus não crê em Adão, Eva, dilúvio ou outros dogmas bíblicos. Crer no que diz a Bíblia e no que provou Charles Darwin é como torcer ao mesmo tempo pelo Vasco e pelo Botafogo num jogo. É pior ainda, pois no caso da peleja de Deus X Darwin o empate é o único resultado impossível. Uma pessoa não pode ser criacionista e evolucionista ao mesmo tempo. Crer em Adão, Eva e também nos dinossauros não dá. Mas os cristãos não são exatamente modelos de coerência.

Para os ateus os crentes sempre fazem uma pergunta clichê: “Quem criou o universo?”. E sempre acham que fizerem “a pergunta destruidora”. Os ateus poderiam simplesmente devolver a pergunta com uma outra sob a mesma lógica: “Quem criou o criador?” O impasse é inevitável, mas a ausência de uma explicação natural não exige necessariamente uma explicação sobrenatural. Os religiosos se aproveitam de uma lacuna do conhecimento humano para preenchê-la com o pensamento mágico. A mágica fascina, mas só até descobrirmos o truque. E os truques vêm sendo descobertos e provados pela Ciência há tempos, mesmo sob severa oposição dos Houdinis e Mr. M. de batina.

Mas mesmo assim, acredite, a religião no Brasil está perdendo fôlego. De 1940 a 1970, menos de 1% dos brasileiros se assumiam sem religião. Mas de 1980 para cá esse índice saltou para 7,3%. Os sem-religião (ateus, agnósticos, secularistas, céticos ou aqueles com fé, mas sem-igreja) já são 12,5 milhões, o terceiro maior grupo, atrás apenas de católicos e evangélicos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra, menos da metade da população acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam a 30%.

Segundo a pesquisa publicada pela VEJA, a Bahia é o terceiro estado com o maior número de não-religiosos. O Rio está em primeiro lugar. Salvador, entre as capitais, é a campeã nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião. A raiz do fenômeno que irriga a queda dos católicos proporcionalmente ao crescimento de evangélicos e de sem-religião está no fato de que os laços étnicos e culturais dos brasileiros estão se desfazendo como resultado da modernidade, do aumento da escolarização, da profissionalização e da mudança do antigo padrão dominante das famílias com pais quase sagrados de tão crentes e crédulos.
A literatura sobre ateísmo, nesse novo ambiente, tem feito grande sucesso, como é o caso dos best sellers "Deus, um Delírio", do biólogo Richard Dawkins; "Deus Não É Grande", do jornalista Christopher Hitchens, de "Carta a uma Nação Cristã", do filósofo Sam Harris, um manifesto em defesa do ateísmo e do Tratado de Ateologia, do filósofo francês Michel Onfray. Também foi recentemente lançado com grande furor “O Livro Negro do Cristianismo-Dois mil anos de crimes em nome de Deus”. Uma porrada no juízo em qualquer cristão! Não se lê qualquer desses livros impunemente. Ler todos eles e não balançar nas estruturas é coisa para santo.

17.4.08

Culpa com Feriados Diferentes IV


Na última coluna “Culpa Com Feriados Diferentes”, inspirado por Richard Dawkins, falava dos horrores do Velho Testamento. Minha querida colega Altenir adota na sua vida os “belos” preceitos ali escritos e desejaria me convencer a achá-los também belos, nem que eu tivesse que cavoucar nas entrelinhas. O pior da Bíblia é exatamente o excesso de entrelinhas onde cada um lê o que quer. Há quem veja beleza onde outros vêem saladas de interesse, para dizer o mínimo e ser bonzinho.

Os cristãos não percebem que os ensinamentos morais contidos nos Testamentos visavam apenas a um pequeno grupo específico. Quando os judeus se auto-intitularam: “o povo eleito”, e registravam essa definição em livros ditos sagrados, isso se inseria num contexto de dominação de povos vizinhos hostis em torno de um objetivo comum de unir tribos desgarradas. A expressão “Amai o teu próximo” então, significava naquele contexto apenas “amai outro judeu” e “Não matarás” significava apenas “Não matarás outro judeu”. Toda interpretação literal além dessa é ignorância histórica, como prova Richard Dawkins. Se as escrituras sagradas hoje são tidas como veículo de união de milhões de pessoas, elas tinham como objetivo inicial separar pessoas. Sua origem era mostrar que uns são melhores do que outros e estes outros (os não-eleitos) deveriam ser dominados, derrotados, assimilados e destruídos. Mas chega de Testamentos.

As igrejas, de modo geral, condenam o aborto e o preservativo. O Brasil é um Estado laico composto por muita gente facilmente sugestionável, como provam pesquisas recentes que mostram, por exemplo, que índices de aprovação da pena de morte crescem ou diminuem dependendo de um crime mais ou menos chocante divulgado pela mídia. Pois imagine o poder de inúmeros padres e pastores de cidades pequenas do país de impor políticas contra métodos de contracepção. Coitados dos prefeitos que queiram distribuir DIU ou pílulas do dia seguinte aos pobres dos seus municípios. Os padres têm um palanque permanente nas missas para convencer fiéis a não mais votos nesses políticos. Já é difícil lidar com essa realidade social desigual sem as igrejas para atrapalhar ainda mais. Você acha que os fiéis não são tão influenciáveis? É que talvez você não conheça a realidade dos grotões do Brasil ou nunca viu um Maracanã lotado encher sacos de dinheiro atendendo aos apelos do bispo Edir Macedo.

Alguns cristãos já usam a internet, essa terra de ninguém, para pregar falácias como o power point que teima em voltar para minha caixa de e-mails. Dawkins também fala sobre essa lenda urbana que usa o exemplo de Beethoven para pregar contra o aborto. Diz assim:“Sobre a interrupção da gravidez, quero sua opinião. O pai era sifilítico, a mãe tuberculosa. Das quatro crianças nascidas, a primeira era cega, a segunda morreu, a terceira era surda-muda e a quarta também era tuberculosa. O que você teria feito? Interromperia a gravidez? Então você teria assassinado Beethoven” Outras versões mudam o número de fílhos ou os tipos de doenças deles ou dos pais. Mas isso é mentira, pois Beethoven era o filho mais velho e nenhum dos seus pais tinha sífilis. A mãe de fato morreu de tuberculose, algo muito comum naquela época. Ahh...mas ainda não vi na internet ninguém lamentando o fato de a mãe de Hitler não tê-lo abortado. Pouparíamos assim milhões de vida inocentes no Holocausto, estou certo? Não duvido de que haja uma explicação cristã para Deus ter permitido o Holocausto. Ela só não precisa me convencer, não é? Como também não preciso acreditar no Coelhinho da Páscoa.

A Igreja Católica tem 5.120 santos. Rezar para eles aplaca os sofrimentos dos crentes ou seria mero efeito placebo? Richard Dawkins mostra que a milionária Fundação Católica Templeton gastou 2,5 milhões de dólares para tentar provar que rezas funcionam. O estudo envolveu 2 mil doentes e vários milhares de fiéis que oravam por esses enfermos. 1/3 dos doentes sabia que recebia preces, outro terço recebia orações sem saber e 1/3 não recebia reza alguma. O resultado foi uma surpresa: não houve variação na recuperação de quem recebia preces sem saber e de quem não as recebia. Mas os que sabiam estar recebendo orações sofreram mais complicações. A religião não explica isso, mas a ciência sim. E a psicologia humana tem nome para isso: “Ansiedade de desempenho”. Eles não se julgariam merecedores das preces ou imaginariam estar piores do que estavam para precisar de orações...enfim...2,5 milhões de dólares no lixo.

Citando Tertuliano: “Credo quia absurdum” ou “Creio porque é absurdo”. Os que argumentam em favor dos mistérios inatingíveis da fé estão sempre a reboque da ciência. Nossa tecnologia atual pareceria mágica para um homem das cavernas e um isqueiro faria de qualquer um deus na Idade da Pedra. Antes de inventarem o microscópio havia um universo de mistérios invisíveis aos olhos e as doenças, para a Igreja, eram frutos dos pecados, não dos estafilococos. Místicos exultam com os mistérios e querem que eles continuem misteriosos. Um dos efeitos negativos da religião é que ela nos ensina que é uma virtude satisfazer-se com o não-entendimento.

A esse respeito é sempre bom consultar a opinião do sabido do Santo Agostinho: “Existe uma forma de tentação cheia de perigos. É a doença da curiosidade. É ela que nos leva a tentar descobrir os segredos da natureza que estão além da nossa compreensão, que nada nos pode dar que nenhum homem deveria querer descobrir”. E para não dizerem que Dawkins fica só no santo católico, vejamos o que Lutero, pai do protestantismo, diz: “A razão é a maior inimiga da fé. Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão. A razão deve ser destruída em todos os cristãos.”

Um crente é mais feliz do que um ateu? A religião traz consolo? É um seguro contra a dor da alma, um paliativo, um ópio? George Bernard Shaw achava que “O fato de um crente ser mais feliz que um cético não quer dizer mais do que um bêbado ser mais feliz do que um sóbrio”. Dizem que a religião reduz o estresse, mas a psicologia e o placebo fazem o mesmo com menos morticínios. Na verdade, na maior parte das vezes, a religião aumenta o estresse, como o estado permanente de culpa mórbida que sofrem judeus e cristãos.

Nós só somos bons porque Deus estaria nos fiscalizando? Ivan Karamazov, famoso personagem de Dostoievski, temia que se Deus não existisse tudo fosse permitido. Einstein achava que “Se as pessoas só são boas porque temem a punição e esperam a recompensa, então somos mesmo uns pobres coitados”. Voltaire dizia que Deus era um comediante a atuar para uma platéia assustada de mais para rir.

Quando criança eu achava muito errado Deus ver o que as pessoas fazem dentro no banheiro, uma grande bisbilhotice dele. Só tempos depois fui entender a ironia contida em Paranóia, música de Raul Seixas: “Quando esqueço a hora de dormir/ De repente chega o amanhecer/ Sinto uma culpa que eu no sei de quê/ Pergunto o quê que eu fiz?/ Meu coração não diz/ E eu sinto medo...// Minha mãe me disse um tempo atrás/ Onde você for Deus vai atrás/Deus vê sempre tudo que ‘cê faz...”

Mas aí o estrago já estava feito. Quanta culpa carreguei sob o olhar penetrante desse Super Big Brother...

Culpa com Feriados Diferentes III


Falarei sobre o maior best seller de ficção que a humanidade já produziu: o Antigo Testamento. Nas palavras do escritor americano Gore Vidal: “A partir de um texto bárbaro da Idade do Bronze, conhecido como Antigo Testamento, evoluíram três religiões anti-humanas — o judaísmo, o cristianismo e o islã”.

Vamos começar do começo, onde se começa melhor. Gênesis. Ali um certo Deus afogou todos os seres humanos, incluindo crianças e animais inocentes, salvando apenas uma família e um casal de cada espécie. Mas muitos dirão que não se interpreta mais a Bíblia em termos literais. Pois é exatamente disso que Richard Dawkins fala no seu livro: escolhemos os pedacinhos da Bíblia que levamos ao pé da letra e outros que dizemos alegóricos.

A Bíblia é um bandejão de conveniências. Milhões a levam muito a sério e há milhares de padres e pastores ensinando a história de Noé. Se isso não assusta mais, imagine o efeito que não criou nos séculos passados, onde a Igreja não tinha o contraponto da Ciência? De fato, segundo o Gallup, quase 50% do eleitorado dos EUA acredita piamente no dilúvio. Isso em pleno século XXI.

Pulemos para a história de Ló, em que outra vez somente uma família foi salva — agora do fogo dos céus. Veja o que disse este piedoso homem quando o povaréu de Sodoma se reuniu em frente à sua casa para que ele entregasse os anjos: “Traze-os para que deles abusemos” (Gên. 19). Ló ofereceu à massa, no lugar dos anjos, suas filhas virgens: “tratai-as como vos parecer”. Isso é apenas uma das mostras de apreço com que as mulheres são tratadas na Bíblia. Fogo e enxofre destruíram tudo, até mesmo as criancinhas e animais. Não se pode acusar Deus de falta de imaginação: primeiro água, depois fogo.

Vamos para Juízes capítulo 19 onde um levita e sua concubina se hospedam em uma casa quando os homens da cidade exigem que o dono entregue o hóspede para que “dele abusemos” (as mesmas palavras usadas em Sodoma). O que o velho oferece em troca? Acertou: sua própria filha virgem e a concubina do hóspede. Palavras do anfitrião: “Humilhai-as e fazei delas o que melhor vos agrade, porém a este homem não façais tamanha loucura”. Novamente a misoginia aterradora do Antigo Testamento. Mas se em Sodoma as filhas de Ló escaparam do estupro coletivo, aqui as duas mulheres não tiveram a mesma sorte. Foram abusadas toda a noite e na manhã seguinte. Quando o levita encontrou a concubina morta, num gesto espantoso, cortou-lhe o corpo em doze partes e espalhou-os por Israel. Se o objetivo era provocar uma guerra, e Deus tem um propósito para tudo, por causa disso morreram 60 mil homens.

Passemos a Abraão, o pai das três religiões monoteístas. Esse santo homem quando no Egito com a bela esposa Sara, para não correr riscos de morrer por ser casado com mulher tão bela, fazia-se passar por seu irmão. Pois não é que Sara foi parar no harém do faraó e Abraão ficou rico com isso? Deus, irritado com esse arranjo, enviou pragas sobre o faraó, mas sobre Abraão nem uma escabiose. O faraó, ao descobrir a farsa, os expulsa do Egito (Gên. 12). Mas os dois usam o mesmo golpe com Abimeleque. O resultado é o mesmíssimo: harém, grana, pragas, expulsão. Que coisa repetitiva...

Mas Abraão se superou no episódio de quase sacrifício do filho Isaac (para os muçulmanos o filho era Ismael). Diz-se que Deus é amor e que o propósito era testar a fé de Abraão, mas você já se colocou no lugar daquela criança? Já imaginou os traumas carregados para o resto da vida? Dawkins comenta que essa história de abuso infantil inaugurou a mesmíssima defesa usadas pelos nazistas em Nuremberg “Eu só estava cumprindo ordens superiores”.

Os textos “sagrados” não devem ser interpretados literalmente? Mas milhões de católicos, judeus e muçulmanos os interpretam ao pé da letra. Se é para interpretar a Bíblia como alegoria simbólica, seria símbolo de quê? Qual princípio moral se pode tirar de uma história de pavor como essa?

Gostou de Deus ter poupado Isaac? Mas saiba que ele não foi tão generoso com a filha de Jefté. Vá em Juízes, capítulo 11 e veja que destino teve a inocente criança. Ou vá em Números, capítulo 31 e veja Moisés repreendendo seus soldados por terem matado todos os homens midianitas, mas poupado as mulheres e crianças. Furioso, Moisés mandou que eles voltassem e matassem todos os garotos e mulheres, só poupando as meninas virgens. Imagine para quê? Não precisa imaginar, pois está escrito lá. “Deixai-as viver para vós outros”.

Poderia continuar indefinidamente, mas vou dar só mais dois exemplos. O que fez Josué (Cap. 6) após vencer em Jericó: “Tudo quanto havia na cidade eles destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até a mulher, desde o menino até o velho, e até o boi, o gado miúdo e o jumento”. Até o pobre do jumento? Que mal fez o jumentinho? Bom, naquela época não tinham a Sociedade Protetora dos Animais. O que os heróis bíblicos fizeram não difere muito do que Sadam Houssein e os nazistas fizeram no Iraque e na Alemanha.

O que as pessoas que consideram o Antigo Testamento exemplo de retidão moral acham de Levítico? Ali está escrito que devem morrer quem amaldiçoa os pais, comete adultério, fornica com a madrasta ou enteada ou com alguém do mesmo sexo, trabalha no sábado....Blaise Pascal já dizia que os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo quando o fazem por convicção religiosa.

Sam Haris, autor de Carta a Uma Nação Cristã, afirma sobre o Antigo Testamento: “O perigo da fé religiosa é que ela permite os seres humanos normais colherem os frutos da loucura e considerá-los sagrados. Como cada nova geração aprende que as proposições religiosas não precisam ser justificadas, como todas as outras precisam, a civilização ainda está sitiada pelos exércitos dos irracionais. Estamos agora mesmo nos matando por causa de literatura da Antiguidade.”

Culpa com Feriados Diferentes II


Como comenta Richard Dawkins, em seu livro "Deus um Delírio", às religiões são dados, pelos governos, privilégios que nenhuma outra organização recebe. Por exemplo: a melhor forma de ser dispensado do serviço militar em tempos de guerra é se dizer religioso. Um filósofo moralmente brilhante, com tese de doutorado sobre os males da guerra não conseguirá ser dispensado por motivos de consciência, mas quem disser que sua religião impede que se lute numa guerra é dispensado, mesmo que não possua uma gota de sangue pacifista.
Outro exemplo de privilégios dados à religião. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte autorizou rituais religiosos envolvendo a ayauasca (no Brasil: Santo Daime ou União do Vegetal), planta que contém a droga alucinógena ilegal dimetiltriptamina. Para a justiça, os adeptos não precisam provar que a droga aumenta a compreensão. Basta que eles acreditem nisso e pronto! Usem à vontade. Por outro lado, a mesma corte proibiu pacientes de AIDS e câncer que usavam a maconha para fins medicinais de continuar o tratamento. Mesmo com receita médica e estudos científicos provando que a erva é eficiente contra os fortes enjôos, comuns nesses pacientes.

Todas as religiões são isentas de impostos. Qualquer culto é uma lavanderia de dinheiro sujo. Além disso, aos sacerdotes são dados poderes para ditar normas sobre reprodução e sexualidade, mesmo eles não sendo nem de longe especialistas no assunto. A Igreja Católica, por exemplo, proíbe o aborto e o preservativo (mesmo que seja para evitar a AIDS – nesse caso tornando-se é cúmplice da disseminação da epidemia), mas não são poucos os católicos que simplesmente vivem como querem. É o catolicismo bandejão, onde os “fiéis” pegam o que gostam e descartam o que é inadequado aos seus interesses. Uma bela fachada com o recheio da hipocrisia. Afinal o sujeito é católico ou não é, com todos os ônus e bônus de sê-lo.

Contam que Alfred Hitchcock, cineasta famoso pela arte de assustar pessoas, estava uma vez dirigindo seu carro na Suíça quando de repente apontou pela janela do automóvel e disse: “Essa é a cena mais aterrorizante que já vi”. Era um padre conversando com um menininho, a mão dele sobre o ombro do garoto. Hitchcock pôs a cabeça para fora do carro e gritou: “Fuja, menininho. Salve sua vida!”.

Seria interessante para qualquer católico se informar um pouco sobre a quantidade de dinheiro que sua igreja já gastou para indenizar as vítimas da pedofilia católica. Até hoje, em acordos judiciais, já foram pagos para vítimas de padres sodomitas mais de 1 bilhão de dólares! Se esse dinheiro tivesse vindo da própria igreja já seria um escândalo, mas é dinheiro dos próprios fiéis, dos dízimos, das contribuições e da isenção de impostos, neste caso todos pagam. Fiéis ou não.

Há centenas de casos documentados desse crime sob o manto da religião, mas um dos mais escandalosos talvez seja o que envolveu o cardeal católico de Boston, Bernard Law, que durante décadas escondeu inúmeros casos de padres pedófilos transferindo-os, seguidamente, de paróquias, tão logo as denúncias lhe chegavam, sem investigação ou punição, pelo contrário, premiando os padres pedófilos, colocando-os para cuidar de seminários com novos garotinhos (carne nova) para saciar sua pedofilia de batina. Após a imprensa divulgar e a promotoria americana abrir os processos, a Igreja fez, em 2002, um acordo milionário com 508 vítimas, pagou 660 milhões de dólares em indenizações e o cardeal Law, em vez de punido, foi promovido. Hoje ele é secretário especial do Papa. Para quem quiser saber mais sobre o fato recomendo o filme Por Trás da Fé, de 2005, no qual Christopher Plummer interpreta o cardeal Law.
Quem quiser ver outro filme sobre a “bondade” da Igreja Católica, recomendo Em Nome de Deus, de 2004 que mostra a vida terrível das internas dos Lares de Madalena, conventos católicos na Irlanda onde milhares de meninas pobres, órfãs ou retardadas trabalhavam sem descanso, sem pagamento e sob abusos físicos, sexuais e psicológicos. Somente em 1996 essa barbaridade acabou. Ou você pensava que eu estava falando de uma prática da Idade Média?

Uma das defesas que se faz da figura de Deus é dizer que as religiões não o representam, mas que ele é puro amor. Só se for um amor sadomasoquista. O comediante americano George Carlin brinca, mas de um modo no fundo muito sério, quando diz: “A religião convenceu as pessoas de que existe um homem invisível — que mora no céu — que observa tudo o que você faz. Ele tem uma lista de dez coisas que não quer que você faça. E se você fizer alguma dessas dez coisas ele o mandará para um lugar especial, cheio de fogo e fumaça, e de tortura e angústia, para que você sofra e queime e sufoque e grite e chore para sempre, até o fim dos tempos...Mas Ele ama você.”

Em seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o prêmio Nobel José Saramago faz um maravilhoso libelo contra Deus. Em suas mais de 400 páginas é difícil selecionar trecho mais brilhante. Selecionei parte de um diálogo fascinante entre Deus e Jesus. Ali o Pai insiste que o filho aceite a crucificação “Que tu o beba [esse cálice] é a condição do meu poder e da tua glória” Jesus diz: “Não quero essa glória”, ao que Deus retruca: “Mas eu quero esse poder”. Assistindo a tudo o Diabo comenta: “É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”.

Não resisto à comparação com a frase usada por um adversário do jacobino Marrat, um dos “reis do Terror” da Revolução Francesa: “Dêem um copo de sangue a este canibal que ele está com sede”.

Ainda em Saramago, o Diabo tenta uma barganha com Deus para poupar a vida de Cristo a quem se afeiçoara: ao que Deus responde indignado: “Quero-te pior do que és agora. Porque esse Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és. Um Bem que tivesse que existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imagina-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como o Diabo, Deus não vive como Deus”. Não podia dar em outra coisa. Prêmio Nobel na cabeça!

Há quem encare o livro de Saramago como intensamente simbólico, mas mera obra de ficção. Pode até ser, mas em seguida falarei sobre a maior peça de ficção de todos os tempos. O Antigo Testamento.