20.3.13

Divagações de um Ex-sedentário


Há dois meses venho frequentando um ambiente que sempre me causou estupor e, porque não dizer, certa repulsa. Não, caro leitor, não estou falando de festas de pagode ou aniversários de criança, muito menos de jogos do Ba-Vi. O lugar em que me vejo imerso seis vezes por semana é a academia.

Minha resignação a esta nova realidade se deveu a uma brutal repreensão da minha médica, escandalizada diante do resultado do meu exame de sangue, no qual o mau colesterol aparentemente tinha tomado Viagra e o colesterol bom se mandou para Caixa Pregos. Desaforos atirados na minha cara e alusões sinistras a uma morte precoce me levaram à sinvastatina, à aveia, às frutas e, enfim, à academia.

Uma coisa não se pode negar: a academia de ginástica é um ambiente perfeito para a perda de peso, o ganho de músculos e a exibição de egos inflacionados. Ah, os corpões que essas mentezinhas exibem. Quanto de psicologia caberia entre supinos e esteiras, halteres e bicicletas ergométricas; quanta análise antropológica está se esvaindo junto com litros de suor e de gordura.

Ali do alto da minha esteira divago: onde eu estava que não fui avisado que as panturrilhas masculinas passaram a exibir, obrigatoriamente, todo tipo de tatuagem? Há uma verdadeira poluição visual formada por símbolos tribais e grafismos aborígenes ou polinésios. Este pode ser um grande filão para arrecadação de imposto se as tatuagens nas panturrilhas forem incluídas entre os fatos geradores de tributos. Eu poderia, por exemplo, tatuar o símbolo da Petrobrás ou da Nike na minha panturrilha, ganharia um dinheiro dos anunciantes e assim estaria configurada a hipótese de incidência do tributo. Se é para exibir as panturrilhas e poluir o visual, que pelo menos se pague por isso.

Aliás, a academia que frequento pertence ao prefeito de Salvador. Estou me acostumando a correr com o alcaide na esteira vizinha. Pretendo apresentar a Neto esta sugestão: cobrar uma taxa dos tatuados e caso isto seja visto como discriminação ele pode dar exemplo e reduzir as mensalidades dos não-tatuados, repassando a diferença para os cofres da Prefeitura. Já pensou no impacto midiático? Ave, Neto!

Outra coisa que me chama a atenção é que as pessoas não largam seus smartphones para nada. A cada série de flexões ou abdominais, param para conferir quem postou o quê no Facebook ou quem curtiu o post de quem. Andam a esmo, sem olhar para frente, quase trombando uns nos outros com o olhar preso às suas telinhas portáteis. Parece que se se separarem demais dos telefones, vão definhar ou explodir, como naquele filme em que prisioneiros usam uma coleira e, ao se afastarem de certo ponto, a cabeça explode.

Aliás, essa obsessão das pessoas por estarem ininterruptamente plugadas ou eternamente online já beira o caso clínico. Outro dia, um amigo me ligou pedindo que entrasse imediatamente no Facebook para curtir um post que ele publicou. Informei que não dispunha de um computador e que estava no agradável café do Cine Glauber Rocha batendo papo com amigos, ao que ele retrucou que achava inadmissível (usou essa palavra) que eu não tivesse um celular com acesso à internet.

Pois eu resistirei enquanto puder a essa detestável pressão. Em casa ou no trabalho estou sempre com um computador à mão com acesso à internet. Será que no intervalo entra esses dois lugares eu preciso estar hiper-conectado como esses malucos? Minha maluquice é reservada para outras coisas. Tenho que me dar certo luxo e, hoje, o maior luxo é não permitir a invasão inoportuna por informações irrelevantes durante um bate-papo com amigos, nos minutos antes de começar o filme no cinema ou mesmo entre um aparelho e outro na academia.

A academia é uma terra de malucos funcionais. Os egos estão eternamente inflados e se houver cinco espelhos no espaço de 10 metros, o indivíduo se olhará em cada um deles, checando e re-checando os gomos do abdômen, a largura do peitoral ou a circunferência dos glúteos. Isso tudo sem largar o celular numa mão e a garrafinha de água na outra. Não importa que a academia tenha cinco bebedouros com água geladinha à disposição, o indivíduo não dispensará sua maldita garrafinha e sorve a água a cada 5 minutos enquanto confere as últimas do “Face” como se, ao não repetir o ritual, fosse morrer subitamente: desidratado e offline.

3.3.13

Indomável Sonhadora


A péssima escolha do título em português para este belíssimo filme é plenamente recompensado pela espetacular atuação de Quvenzhané Wallis, uma pequena grande atriz que, a esta altura, todo mundo já sabe que foi a mais nova a ser indicada ao Oscar (e a que tem o nome mais complicado). Além disso, o filme e seu diretor e roteiro também concorreram à estatueta máxima de Hollywood sem contar os prêmios nos festivais de Cannes e Sundance.

A tradução mais fiel ao original “Beasts of the Southern Wild”, Bestas do Sul Selvagem, refletiria muito mais fielmente o espírito do filme: a vida dificílima de famílias semiabandonadas, mas extremamente unidas, de uma comunidade pobre do sul dos Estados Unidos, na região alagada do rio Mississipi.

Nesse lugar devastado, insalubre e completamente enlameado, conhecido como A Banheira, habitam pessoas que poderiam perfeitamente estar num daqueles lixões que estamos acostumados a ver nas grandes cidades brasileiras ou em imagens de favelas indianas e miseráveis aldeias da África, mas é estranho ver esse tipo de pobreza no país mais rico do mundo.

A pequena Hushpuppy, de apenas 6 anos, é uma das crianças da comunidade, onde praticamente todos os adultos buscam no álcool uma fuga para as dores da sobrevivência. Ela vive apenas com o pai doente. A vida de Hushpuppy é uma sucessão de perdas: a mãe a abandonou quando ela era muito nova, os amigos vivem morrendo com as constantes inundações do rio e em breve o pai também irá morrer.

Do mesmo modo como os adultos da Banheira buscam uma fuga no álcool, Hushpuppy, como toda criança, encontra na imaginação e nas fantasias, uma saída equivalente, como nos diálogos com a mãe ausente.

Não basteassem a pobreza e tantas privações, Hushpuppy e seu pai doente enfrentam uma forte tempestade que inunda toda a comunidade e eles passam a viver em um barco precário com alguns amigos sobreviventes. O drama poderia parecer forte demais, quase insuportável de assistir, mas nas mãos inspiradas do diretor novato Benh Zeitlin, a película assume um tom lírico e quase de realismo fantástico.

A relação da menina e seu pai é o motor do filme. Como o pai de Hushpuppy sabe que vai morrer e que a filha ficará sozinha, ele a cria para ser uma sobrevivente, quase um pequeno animal, como aqueles que eles estão habituados a comer. E assim, nesse ambiente de hostilidades, não há espaço para demonstrações de afeto, para fragilidades ou para lágrimas.

É realmente espantoso que um diretor tão jovem (30 anos) tenha conseguido construir, com esse material, um filme tão terno e utilizando não atores. A princípio, duvidei que ele conseguisse, pois desde a primeira tomada, com uma câmera nervosa e nenhuma beleza aparente, o filme parece convidar o espectador para uma rejeição. Mas logo vemos que a ternura está nos pequenos momentos, nos gestos simples da menina, nas suas fantasias e na sua narração de criança diante das adversidades, em sequências de beleza improvável.

Há cenas de grande impacto como duas particularmente especiais. Em uma delas, o momento sempre adiado em torno do segredo da doença do pai, quando dá uma tremenda tristeza ver que tanta inocência não resiste à crua realidade ao vermos Hushpuppy gritar no rosto do seu pai: “Você pensa que eu não sei?” Mas não se permitem lágrimas por ali.  Nenhuma criança deveria passar por algo assim. É como amadurecer a fórceps.

Em um dos momentos mais líricos, a menina atira-se ao mar, como teria feito a sua mãe para fugir daquele local. Acompanhada de três outras meninas, são resgatadas por um barco e levadas para uma espécie de bordel flutuante, onde elas recebem algo que nunca tiveram, o carinho das mulheres que ali vivem e que poderiam ser suas mães, como poderia ser sua mãe, a mulher que nina Hushpuppy.

Ao fundo, emoldurando toda a cena, uma canção, um belo e triste blues, como devem ser os melhores blues, na belíssima voz de uma daquelas cantoras negras sulistas, com seu inconfundível timbre anasalado. A letra da canção diz: “Eu posso ser um escravo para você/Eu posso ser um patife para você/Se isso não é amor/Faça de conta que é/Enquanto o verdadeiro amor não chega”.

Que pena que as palavras no papel não tragam, junto, a melodia da canção. Só assim se poderia compartilhar o sentimento de que a letra da música é o retrato fiel da relação daquele pai e daquela filha que fazem de conta que não tem um pelo outro um amor verdadeiro, já que o amor é um luxo a que não se permitem as bestas do sul selvagem, um local em que tudo pode se perder a qualquer instante.

Mas ele está lá, pronto para ser perdido de todas as maneiras possíveis e então é melhor fingir que ele é outra coisa. Mas seu nome é amor e não se perde algo precioso assim sem muitas lágrimas.