19.12.14

MOMMY


Em Mommy, quinto filme do canadense Xavier Dolan, estamos no mesmo país dos seus filmes anteriores, mas aqui temos um Canadá fictício, um país cuja lei permite que os pais possam internar os filhos em hospitais públicos com facilidade. Tirando esse detalhe, o filme pode ser muito bem assistido como um drama realista.

Antes, porém um parêntesis para falar desse jovem diretor, ator, roteirista, figurinista, produtor e editor que tem apenas 25 anos de idade e já carrega consigo um curriculum invejável.

Dolan chamou a atenção do mundo quando dirigiu e atuou aos 20 anos no seu filme de estreia: Eu matei a minha mãe filme premiado no Festival de Cannes. No ano seguinte, o prolífico artista novamente dirigiu e atuou no maravilhoso Amores Imaginários. E, de novo, foi premiado em Cannes.

Seus dois filmes seguintes seguiram a mesma linha provocativa: Laurence Anyways e Tom na Fazenda. Assim como nos dois primeiros filmes, Dolan, gay assumido, aborda aqui, com muita propriedade e visão de esteta, esse universo no qual ele se sente bastante confortável.

Esse texto poderia perfeitamente gastar todas as suas linhas disponíveis para falar de cada um dos quatro primeiros filmes de Xavier Dolan, incluindo suas ótimas trilhas sonoras, mas o fim da pauta se aproxima e ainda não falei de Mommy que mantém a tradição dos filmes do diretor, ganhando o prêmio do júri do último festival de Cannes, ou melhor, dividindo-o com o veteraníssimo Jean-Luc Godard. O rapaz não é fraco, não.

A primeira coisa que, logo de cara, chama a atenção do espectador é o formato da tela: quadrado, chamado 1:1,  como no instagram. E essa escolha mostra a coragem e a ousadia do jovem diretor, que dessa vez não atua no filme. A ideia é deixar o público com a sensação de falta de espaço, de desconforto.

Esse formato de tela não é exatamente uma novidade, já tendo sido usado no filme O Homem das Multidões, de 2013, dirigido por Cao Guimarães e 
Marcelo Gomes, com a mesma intenção de transmitir a sensação de aprisionamento.

O não ineditismo, entretanto, não tira os aplausos para Dolan, até porque ele utiliza-se de um recurso muito inteligente e criativo e que não foi sequer imaginado pela dupla de diretores brasileiros: em certo momento do filme, a tela se abre aos poucos para o formato tradicional, como pelo esforço das mãos do adolescente protagonista, mostrando, como belíssima metáfora visual, o sucesso na tentativa de ampliação dos horizontes e libertação das limitações impostas. É um daqueles momentos que merecem ser eternizados na história do cinema. E isso tudo vindo ainda por cima pelas mãos de um rapaz de 25 anos.

Impossível não comparar com outro gênio da sétima arte, também ele ator, diretor, produtor e roteirista. Mantidas as devidas proporções, falo de Orson Welles que com 26 anos, praticamente a mesma idade de Dolan, trouxe ao mundo Cidadão Kane, renovando para sempre a estética do cinema com ângulos de câmera ousados e exploração do campo.

A história do filme gira em torno de um trio disfuncional: Diane, uma mãe solteira desempregada; seu filho Steve, um adolescente de 15 anos hiperativo e com déficit de atenção agudo; e Kyla, a vizinha deprimida com problema de auto-afirmação presa num casamento monótono. Esse trio improvável é responsável pelo precário equilíbrio da situação dos personagens. 

Dá um prazer danado acompanhar o progresso da carreira do talentoso  Xavier Dolan, perceber que ele já era brilhante quando nos presentou com o seu primeiro filme e que, a cada obra, ele se aperfeiçoa ainda mais, atinge mais maturidade, beirando o sublime.  As suas inúmeras premiações ao redor do mundo lhe fazem merecida justiça.

Um filme excepcional para se admirar e refletir.

14.12.14

O PINTASSILGO

O Pintassilgo é uma espécie de saga contemporânea, quase como se, em vez de acompanharmos durante anos os infortúnios do seu protagonista, o pré-adolescente Theo Decker, envolvido com uma pintura roubada de valor inestimável, alongássemos as desventuras do também impúbere Holden Caulfield da obra máxima de J.D.Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio. Passamos apenas um fim de semana com o angustiado Holden pelas ruas de Nova Yorque, mas com Theo somos arrastados por anos numa espécie de limbo niilista.

Há diferenças cruciais entre os dois protagonistas. Se Holden virou ídolo de gerações de jovens pelo seu inconformismo e rebeldia, Theo é levado a um abatimento profundo quando vaga sem destino, arrastado pelas marés da fatalidade.

É pelas mãos da sua mãe (o destino) que é levado a um museu onde uma explosão terrorista lhe mata justamente a mãe nas primeiras páginas do livro. Dá para sentir o que virá a seguir nas palavras de Theo: “As coisas teriam sido melhores se ela estivesse viva. Mas minha mãe morreu quando eu era criança; e, embora tudo o que aconteceu comigo desde então seja exclusivamente culpa minha, quando a perdi também perdi de vista qualquer farol que poderia ter me conduzido a algum lugar mais feliz, a uma vida mais plena e agradável”.

E tudo que se segue a esse atentado é movido pelo roubo de uma obra valiosíssima do museu, exatamente o quadro que dá título ao romance. Todas as pessoas com quem Theo se envolve ao longo de vários anos são fugidias e escapam-lhe como água entre os dedos. Mortes sucessivas acontecem à sua volta, perdas físicas e emocionais, e ele permanece à margem, escapando dos vícios em álcool e jogo, destino do seu pai, mas envolvendo-se com todo tipo de drogas pesadíssimas, viciando-se em remédios, sempre à busca do oblívio e flertando com o irremediável. 

O Pintassilgo é a única chama de vida que ele possui, um quadro pintado em 1654 e o único sobrevivente de toda a obra do genial Carel Fabritius, aluno de Rembrandt, destruída no atelier do artista num incêndio que matou o próprio pintor, assim como a explosão do museu levou embora a única pessoa viva que Theo realmente amava. Tudo lhe é tomado e a única coisa que ele pode dizer que realmente possui não é de fato dele, mas roubado. E ele não pode dividir essa informação ou a beleza da obra com pessoa alguma.

Em outro paralelo entre Theo e Holden, dois adolescentes perdidos nas impiedosas ruas de Manhattan, parece até que Theo ouviu o último conselho de Holden na última linha do romance de Salinger: "Nunca conte nada a ninguém. Se você o fizer, mal acaba de contar e começa a sentir saudade de todo mundo". Theo sabe que o seu segredo é algo inconfessável e que pode custar-lhe a liberdade.

O Pintassilgo é o que faz com que ele não sucumba por completo ao destino de muitos niilistas extremos. Nos momentos de maior desespero basta que Theo contemple o quadro por alguns minutos para que o pássaro, sobrevivente de séculos, de dois incêndios e de várias mortes, o faça desejar viver. Um pássaro pintado mas com uma dignidade extrema, indiferente ao fato de estar preso por uma argola no pé.

Mas o livro é difícil de transpor. Longe de ser monótono, é talvez excessivamente caudaloso, recheado de digressões e descrições. Algumas vezes páginas e mais páginas são gastas para descrever uma sala ou narrar as sensações de uma viagem narcótica.

A luz no fim do túnel que pode ser a salvação de Theo ou a locomotiva que vai destruí-lo de vez, aparece na figura do seu praticamente único amigo, o também adolescente Bóris. Se esse fosse um livro sobre o russo Bóris, seria um relato solar, repleto de aventuras, música, vodka, mulheres loucas, assassinos perigosos, prostituição, tráfico de drogas e muito sexo, mas como é um livro sobre Theo, temos uma atmosfera oposta. Tudo é sombra e amargura. Em alguns momentos chega-se a ficar de saco cheio de Theo que parece que atrai desgraças para onde vai. Percebemos que Theo é um chato de galocha na primeira das 728 páginas e vamos ter que aguentar sua chatice até o fim. Ainda bem que Bóris aparece para dar um pouco de cor a esse rapaz perdido, nem que seja levando-o para porres espetaculares.

Há quem ache que a obra não mereceu o Pulitzer. Não me decidi ainda, mas fico feliz que Theo tenha finalmente encontrado a solução para os seus problemas. O Pintassilgo vai me levar adiante, e é isso que a arte faz, e tem tudo a ver com a frase da autora no final da obra: “No meio do nosso morrer, enquanto saímos do orgânico e afundamos ignominiosamente de volta nele, é uma glória e um privilégio amar o que a Morte não toca. Pois se desastre e esquecimento seguiram essa pintura através do tempo, o amor também o fez”.

5.12.14

RELATOS SELVAGENS

         
   Mais um filme argentino chega às nossas telas para reforçar a tradição de que o cinema feito pelos nossos hermanos consegue ser muito melhor do que o nosso. Utilizando-se de ótimos roteiros, diálogos naturais, excelente direção e uma linguagem de apelo universal, o cinema argentino dá sempre um show e nos faz perguntar por que não conseguimos fazer igual.

O filósofo Luiz Felipe Pondé, sempre atilado, aponta como uma das causas a nossa predileção pelas fórmulas fáceis e batidas: as comédias escrachadas, o amor neurótico e o “coitadismo” (coitado do pobre, do bandido, do drogado ou pobre é lindo, bandido é lindo, drogado é lindo), a chamada crítica social. A gente não corre o risco de ver essas baboseiras no cinema argentino, sempre muito mais maduro do que o nosso.

Relatos Selvagens, dirigido por Damián  Szifron,  é dividido em seis excelentes episódios e isso é raro nesse tipo de filme, nos quais costumamos ver alguns episódios bons e outros ruins, como na série I Love New York, I Love Paris e I Love Rio. No caso do último, talvez chame a atenção o fato de que, ao contrário dos seus predecessores, todos os episódios são ruins.

Para não ser injusto, não dá para não mencionar outros grandes filmes divididos em episódios, como Dolls, do diretor Takeshi Kitano, com suas três belas histórias retratadas com delicadeza tipicamente oriental; ou Contos de Nova Yorque, dirigido pelo trio Scorsese,  Coppola e Woody Allen; ou o belíssimo Eros, também de um trio de diretores de peso: Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-Wai.

O leitor deve estar se perguntando se o autor dessas mal traçadas vai passar o texto inteiro falando de outros filmes ou vai começar, afinal, a falar de Relatos Selvagens...Que bom que o leitor lembrou. O autor se empolgou e se desculpa.

A primeira história de Relatos Selvagens é quase uma vinhetona, já que precede os créditos. Em um avião todos os passageiros descobrem que conhecem a mesma pessoa e que todos a prejudicaram no passado. O episódio termina com o cinema inteiro em uma grande gargalhada de nervoso. Ah como a vingança pode ser doce. Mas é puro humor negro pois o subconsciente, esse intrometido pronto para estragar qualquer farra, sopra nos ouvidos a famosa frase de Confúcio: “Ao embarcar para uma vingança prepare duas covas” Duas?

E as histórias se sucedem. Uma garçonete vê a chance de se vingar do gângster que destruiu sua família. Afinal, um veneno de rato que está vencido é mais letal ou menos? Dois homens se desentendem numa estrada e o arranhão no verniz que nos separa da civilização para a barbárie logo mostra que o homem é mais do que o lobo do homem e a gente não consegue deixar de lembrar a célebre frase de Sartre: “O inferno são os outros”. Como um episódio tão simples pode ser tão brilhante? E, afinal porque ninguém pensou em filmar uma cena dessas antes?

O quarto episódio, no qual um pai rico tenta livrar o filho de ser preso pelo atropelamento de uma mulher grávida é um verdadeiro tratado de sociologia, ou melhor, de patologia social. A propósito desse episódio, Luiz Felipe Pondé aponta sabiamente: “as classes menos favorecidas sabem muito bem como manipular seus ‘ganhos’ no esquema de corrupção. Um cínico diria que a corrupção também pode ser inclusiva”.

O maior astro do cinema argentino, Ricardo Darin, não poderia estar de fora desse filme. No penúltimo episódio ele interpreta um homem em uma luta desigual contra um estado burocrático que ameaça fazer da sua vida uma tragédia kafkiana. A violência explode e nos faz lembrar Michael Douglas em Um Dia de Fúria.

Palmas redobradas, vivas e hurras para o último e unanimemente considerado melhor episódio dos seis, uma verdadeira torrente de emoções em torno de um casal no dia do casamento. Esse episódio certamente deve ter sido o que levou o cineasta Pedro Almodóvar a decidir produzir Relatos Selvagens já que todo o episódio do casamento é puro cinema almodovariano, inclusive com a montagem frenética e a excepcional trilha sonora a cargo do ótimo Gustavo Santaolalla, que já ganhou dois Oscars seguidos.

Anárquico, histérico, brilhante, surpreendente, divertido...Não é preciso economizar nos adjetivos. Relatos Selvagens merece todos.


25.11.14

GAROTA EXEMPLAR



Garota Exemplar, o mais novo filme do competente diretor norte-americano David Fincher, chegou às telas coberto de expectativas por ser uma adaptação do best seller homônimo e que, inclusive contou com a participação do seu próprio autor, Gillian Flynn, como roteirista na adaptação para as telas.

David Fincher tem atração por tipos problemáticos e anti-heróis, como se viu nos seus personagens masculinos de Seven (Kevin Spacey e Brad Pitt) e Clube da Luta (de novo Brad Pitt e Edward Norton), bem como adora mulheres fortes, como a tenente Ripley (Sigourney Weaver) de Alien 3 e a hacker punk  Lisbeth Salander (Rooney Mara) de Millenium. Sem contar o casal machbethiano (Kevin Spacey e Robin Wright) do excepcional House of Cards.

Pois Fincher está de volta com uma dessas mulheres “chave de cadeia” na pele de Rosamund Pike (a ex-Bond Girl de Die Another Day), que interpreta a insuportavelmente certinha Amy Dunne, a tal Garota Exemplar do título. Pois essa mala loura sem alça simplesmente some da história no dia do seu aniversário de casamento com o marido Nick, papel de Ben Affleck, dando início ao calvário do pobre do Nick (será?) obrigado a lidar com as suspeitas de ter matado a belíssima Amy. Ele é escolhido pela imprensa como o bode expiatório da vez — e a mídia sabe muito bem como moer em pedacinhos seus “favoritos”. Nick não tem a menor chance contra a tal “opinião pública” açulada pelas redes de tv.

Então temos a chance de acompanhar em flashbacks a linda história de amor de Nick e Amy que, pelo jeito, não é tão linda assim, já que sobram esqueletos escondidos nos armários. E eles vão saindo aos poucos.

Afinal de contas Nick matou ou não matou Amy? Por que ele entra em tantas contradições e não tem um álibi? Ele traía a devotada esposa? Ela era mesmo devotada? São perguntas demais e é isso que prende o espectador. O diretor lida, e bem, com todas essas questões, como aqueles malabaristas que tentam manter todos os pratos girando sem deixar nenhum deles parar e cair.

Não sou muito fã dessas histórias sobre a comoção das massas mobilizadas pela mídia contra ou a favor de alguém. Acho que é quase uma fórmula clichê e também não me atrai essa coisa de filme querer passar uma “mensagem” sobre como a mídia malvada usa uma pessoa. Aliás, depois de A Montanha dos Sete Abutres (1951), de Billy Wilder com Kirk Douglas como o jornalista inescrupuloso, toda representação da parcialidade da mídia é conto da carochinha.

Então, pulando a parte em que a mídia insufla o povo contra Nick, fica-se muito limitado a contar mais sobre o filme pelo risco de spoiler. A gente deve tomar cuidado com essas coisas depois daquele fã de Harry Potter, de 32 anos, de Ohio (EUA) que cometeu suicídio após, sem querer, ouvir como seria o  final do 6º filme da série.

Ainda bem que não estamos falando de Harry Potter. Garota Exemplar é um legítimo thriller, com um belíssimo twist, que não vou ser besta de contar, e que faz a gente perceber que está vendo praticamente um novo filme dentro do filme. Isso é muito revigorante, pois as pessoas adoram ser surpreendidas, mesmo que seja por uma visão sombria e praticamente subversiva da santificada instituição do matrimônio. 

Destaques: a trilha sonora de primeira, a cargo de Trent Reznor, do Nine Inch Nails, que já trabalhou com Fincher em A Rede Social (e levou o Oscar pela trilha daquele filme); a montagem perfeita, que consegue manter o clima se suspense mesmo com o uso de flashbacks; a interpretação minimalista de Ben Affleck, que cai como uma luva para o seu personagem pouco expressivo, exemplo de que o menos é mais e, sem dúvida alguma, a louraça belzebu de Rosamund Pike.

9.11.14

AHHH!!!! FÉRIAS

Acabaram.

Um ano na expectativa das férias e agora, de volta ao batente, previsível que sou, ao cabo de cada outubro tenho um só assunto: a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Mas o que fazer se todos os anos, no balanço do melhor que fiz nos 365 dias passados, a maratona de filmes na Mostra ocupa sempre os primeiros lugares?

Dessa vez foi especial, pois finalmente consegui comprar o passaporte que dá direito a 40 filmes. Esses passaportes acabam no primeiro dia de venda e os jornais  mostraram a fila de cinéfilos que se formou a partir das 6h da manhã na frente da Central da Mostra com centenas de pessoas dispostas a comprar os tais passaportes (limitados) que dão direito a assistir 20, 40 ou quantos filmes a pessoa quiser, pagando valores mais baixos do que pagaria na bilheteria.
       
A 38ª Mostra de São Paulo é a minha 12ª consecutiva e este ano homenageou Pedro Almodóvar com a exibição de quase todos os seus filmes. Em 15 dias foram apresentados 331 filmes entre documentários, ficções, curtas e animações, a maioria inéditos, em 34 cinemas, auditórios e anfiteatros espalhados por toda capital, além do vão livre do MASP e o Parque do Ibirapuera. Em muitos lugares o acesso é grátis. Tive o privilégio, este ano de ter uma foto minha publicada no Caderno Ilustrada da Folha de São Paulo, em uma coluna sobre os Humanos na Mostra que a cada dia escolhia um cinéfilo para contar sua história.

Com o passaporte para 40 filmes garantido não precisei enfrentar filas, o que é um adianto, além de ter a chance de pegar os ingressos com dias de antecedência, escapando do risco de salas lotadas. Outra tranquilidade é aproveitar filmes de salas mais distantes do centro sem medo de encontrar lotação esgotada e perder a viagem.

Entre os grandes baratos da Mostra estão os filmes de países longínquos como Geórgia, Macedônia, Azerbaijão entre outros que fatalmente nunca passarão do Brasil sendo essa a única chance de assistir a eles. Mesmo filmes espetaculares de países como Espanha, Equador, China e Venezuela, que vi há anos, jamais passaram em Salvador.

Sempre comento sobre a fauna da Mostra, sobre os tipos humanos curiosos que todo ano vejo. Cada um renderia uma reportagem, de tão exóticos, ricos em experiências ou de comportamentos extravagantes. O ano passado escrevi sobre o velhinho que a cada ano fica mais decrépito e que frequenta a Mostra deste a primeira edição. Este ano achei que ele não tinha resistido à velhice e morrido, até que senti um fortíssimo cheiro de urina na sala do SESC e logo imaginei que ele estava por ali. Há algum tempo ele sofre de incontinência urinária mas sabe quais os melhores filmes. O fato de uma sala da Mostra cheirar a urina significam duas coisas: Sérgio está lá e o filme será bom.

Emagreci alguns quilos, pois durante essas semanas conto nos dedos os dias em que não pulei o almoço ou o jantar, me conformando com sanduiches, cafés e pães de queijo. Para ver o maior número de filmes, comer corretamente se torna um luxo a que o cinéfilo da Mostra não pode se dar. Nessas horas a mochila, velha companheira, abrigava catálogo e guia da mostra, celular (desligado), barras de cereais, tabletes de chocolate e tudo que pudesse ser mastigado com praticidade. Há os que levam garrafonas de água ou frutas. Tem um cara que come pencas de banana. Tem de tudo.

Bem, acabaram sendo 41 filmes se eu contar os três insuportáveis que larguei na metade. Entre as 17 diferentes premiações, dos filmes que vi destaco os que conquistaram:
Prêmio do Público de melhor ficção internacional RELATOS SELVAGENS.
Prêmio da Crítica de melhor filme: LEVIATÃ.
Menção Honrosa da Crítica: A ILHA DOS MILHARAIS.
Menção Honrosa da Crítica: O PEQUENO QUINQUIN.
Prêmio ABRACCINE:  CASA GRANDE.
Prêmio Associação Autores de Cinema de Melhor Roteiro: A GANGUE

Segue abaixo minha seleção pessoal na ordem dos melhores para os piores.

NOTA 10

O PRÍNCIPE – Filme iraniano que na minha opinião é uma perfeita tradução da capacidade do cinema de transformar a vida de uma pessoa. Trata-se de um docudrama quase metalinguístico que conta a história de Jalil Nazari,  em 1997, então um garoto de 17 anos que deixa o Afeganistão controlado pelo Talibã e busca refúgio no Irã, onde sobrevive de pequenos trabalhos. Um dia ele ganha o papel principal num filme iraniano pois todos sabemos que os diretores iranianos são famosos por trabalharem com não atores. O filme, Djomeh, é selecionado para o Festival de Cannes de 2000 e vence o prêmio Caméra D’Or, abrindo novos horizontes para o rapaz. Toda a história que se segue acompanha as dificuldades reais de Jalil em sair do Irã e viver na Alemanha como um refugiado mesmo tendo recebido importantes prêmios em vários festivais europeus. A história da solidão dele no Irã, longe da família, é praticamente a cópia da solidão do seu personagem no cinema e depois a sua solidão como refugiado em Hamburgo. Para mim, um dos melhores filmes da Mostra.


DANCING ARABS – Esse filme israelense levou várias pessoas do cinema em que eu estava às lágrimas. É de uma delicadeza impressionante. Dirigido por Eran Rikilis, o mesmo dos ótimos Noiva Síria e Lemon Tree mostra Israel nos anos 90 e a história do menino Eyad, um palestino-israelense que é aceito numa prestigiosa escola judaica em Jerusalém. Ele é extremamente inteligente e por isso conquista a bolsa de estudos, mas logo enfrenta problemas com a língua, a cultura e a religiosidade. Ao tentar encontrar o seu próprio caminho em meio aos conflitos entre Israel e árabes, ele se torna amigo de um menino judeu com distrofia muscular e se apaixona por uma garota judia. Ele percebe que para ser aceito como um igual, dissipar os preconceitos, poder trabalhar e amar, terá que fazer sacrifícios pessoais. O diretor trata todos esses dilemas e as decisões difíceis de Eyad quase com amor. Prepare o lenço. Do meu lado no cinema um casal chorava muito e quando fui reparar era o homem quem chorava enquanto a mulher o abraçava dando apoio. Achei linda a cena. Uma lição para a convivência de culturas aparentemente inconciliáveis.

RELATOS SELVAGENS- Uma preciosidade produzido por Pedro Almodóvar com participação do ator Ricardo Darin. Seis histórias de humor negro em torno da vingança. Diante de uma realidade cruel e imprevisível, os personagens caminham sobre a linha tênue que separa a civilização da barbárie. Uma traição amorosa, o retorno do passado, uma tragédia ou mesmo a violência de um pequeno detalhe cotidiano são capazes de empurrar estes personagens ao inegável prazer de perder o controle.

NOTA 9

WINTER SLEEP – Um filme que tem mais de três horas de duração mas com diálogos tão inteligentes e ricos que em momento algum chega a cansar. Já vi filmes de meia hora que me fizeram dormir de tédio e este aqui não me fez piscar o olho. Uma produção da Turquia, Alemanha, França conta a história de um homem que administra um pequeno hotel na Anatólia com sua esposa bem mais jovem com quem tem uma relação turbulenta, e com sua irmã que ainda sofre com o recente divórcio. No inverno, com a neve cobrindo pouco a pouco a paisagem da estepe, o hotel torna-se um refúgio, mas também o teatro dos seus conflitos. Muitos conflitos e muitos questionamentos sobre ética e valores. Foi o ganhador da Palma de Ouro e do Prêmio da Crítica no Festival de Cannes.

A ILHA DOS MILHARAIS- Uma pequena joia co-produzida pela Geórgia, Alemanha, França, Casaquistão e Hungria – Uma história aparentemente simples: o rio Enguri forma a fronteira entre Geórgia e a República separatista da Abecásia com permanente tensão entre as duas nações. Toda primavera, o rio cria pequenas ilhas férteis, terras de ninguém. Um velho agricultor constrói uma cabana para ele e sua neta adolescente numa dessas ilhas. Juntos eles plantam milho, mas assim como sua neta adolescente se transforma em uma mulher e assim como o milho amadurece, o velho agricultor se depara com o inescapável ciclo da vida.

NOTA 8

MATEO- Filme colombiano conta a história de um garoto de 16 anos que trabalha para seu tio criminoso e usa o dinheiro para ajudar a mãe, que aceita o dinheiro contra a vontade e por necessidade. Eles vivem numa região pobre e violenta na Colômbia. Para provar seu valor, Mateo se infiltra num grupo de teatro local e investigar suas atividades políticas. Ao mesmo tempo em que se sente fascinado com a liberdade de seus novos colegas, ele deve fazer escolhas difíceis e enfrentar os perigos de questionar a organização do conflito armado na Colômbia.


A GANGUE – Filme Ucraniano extremamente corajoso por usar surdos mudos, linguagem de sinais e não se utilizar de legenda ou narração alguma. Conta a história de um jovem surdo-mudo que começa a estudar num internato especializado que abriga secretamente uma rede de crime e prostituição onde ele é forçado a aceitar as duras regras da gangue e participa de vários assaltos, o que lhe garante o respeito dos colegas. Tudo se complica quando ele se apaixona pela prostituta que é uma das amantes do líder da gangue. Extremamente violento com uma cena fortíssima de aborto. Vencedor do Grande Prêmio da Semana da Crítica no Festival de Cannes.

NOTA 7

O CÍRCULO – Filme suíço meio documentário sobre a primeira revista gay fundada nos anos 40 que foi responsável pela única organização gay a sobreviver ao regime nazista. Ela floresceu durante os anos do pós-guerra num clube underground de renome internacional. Seus lendários bailes de máscaras em Zurique eram um espaço secreto e seguro para lidar naturalmente com a homossexualidade. É lá que o tímido professor Ernst se apaixona pela drag queen Röbi. Eles foram o primeiro casal gay a se casar na Suiça quando o casamento entre pessoas do mesmo sexo foi autorizado.

LEVIATÃ- Filme que trata dos conflitos em uma pequena cidade no norte da Rússia. O prefeito da cidade (uma figura que lembra o presidente Putin) pretende se apropriar de um terreno e tenta subornar em vão seu proprietário Kolia. As relações descambam para uma violência institucional que leva toda a história para um final kafkiano. Vencedor de melhor roteiro no Festival de Cannes.




NOTA 6 

CASA GRANDE- O filme brasileiro que mostra questões de classe e privilégio através da história de um adolescente rico que luta para escapar da superproteção dos pais, secretamente falidos. Enquanto a família entra em decadência, os empregados enfrentam as demissões. O filme é bonito pela honestidade em mostrar a busca da descoberta da sexualidade e a importância disso em meio aos demais conflitos.




POR UM PUNHADO DE BEIJOS- Um filme bonitinho da Venezuela sobre um casal jovem e sensual: Sol e Dani. Ela quer viver a vida ao máximo e que o amor era mais uma necessidade, o que a levou a procurar uma alma gêmea com quem poderia passar o maior tempo possível. Porém, Dani guarda um segredo que pode destruir seus sonhos. Clássico tema garoto encontra garota etc mas aqui esse segredo é um gancho muito bem bolado que nunca vi em filmes anteriores e que dá uma volta na ideia do preconceito.


10 MIL NOITES EM LUGAR NENHUM – Filme espanhol sobre um filho que tem medo de tudo e que, oprimido por sua vida entediante, decide fugir. Ele começa então uma jornada para lugar nenhum, vivendo outras vidas. E descobre que, se um dia você decide não crescer, não é algo tão ruim assim. Você apenas tem que aprender a voar, a voar para bem longe. Uma história sobre tomar decisões importantes; e sobre como cada vez que fazemos uma escolha, em algum lugar dentro de nós fazemos exatamente o oposto


NOTA 5

HERÓIS IMPROVÁVEIS- Bonito filme suíço que conta a história de Sabine cujos filhos saíram de férias, o marido a abandonou e as coisas não vão bem no trabalho nem com as amigas. Durante o Natal, ela se torna voluntária num campo de refugiados e decide preparar uma peça de teatro com os moradores do local a tempo para o Ano Novo. Enquanto ela se concentra em dirigir o grupo, eles precisam lidar com outros problemas, como arranjar um jeito de ficar no país, o amor, a família e, é claro, a língua alemã. Um grande achado a ideia dos refugiados de escolher a peça Guilherme Tell, herói nacional suíço que lutou pela liberdade, algo que os refugiados buscam na Suiça. O final poderia ser mais bem resolvido.

FUGA DA REALIDADE – Filme alemão que mostra a história de um garoto cujo pai é esquizofrênico. Ele tem medo de ter herdado a mesma doença do pai ao tempo em que se apaixona por uma bela e divertida jovem. Ele vive um conflito entre escolher ajudar a família ou aceitar a saída de casa para conseguir crescer. Ao descobre que não pode mudar a vida de ninguém, a não ser a própria o filme tem um final bonito mas talvez um pouco óbvio.



CHRIEG-EM GUERRA- Outro filme da Suiça sobre a dificuldade das famílias em lidar com filhos rebeldes. Esta é a história de Matteo, de  15 anos cujos pais, decidem à força interna-lo num hotel fazenda com trabalhos braçais para passar o verão mas o local é uma armadilha que vai levar Matteo a um tipo de inferno pessoal que mudará completamente sua vida, sua mente, levando-o a um conflito interno sem limites. Um filme bem niilista e desencantado mas com uma mensagem muito forte.

A PEQUENA CASA- Filme japonês bonito mas talvez um tanto acadêmico, com excelentes atuações e boa direção de arte. Após a morte de uma velha senhora solteira e sem filhos, um sobrinho descobre seu diário e a verdade sobre a juventude dela trabalhando como empregada doméstica e babá. O filme alterna uma narrativa no presente, outra no passado e ainda uma terceira intermediária. Uma boa direção e foi o vencedor do Urso de Prata de melhor atriz no Festival de Berlim.


DETETIVE D: O DRAGÃO DO MAR – Filme na linha de lutas como O Tigre e o Dragão e o Clã das Adagas Voadoras. O filme é uma sequência de Detetive D e o Império Celestial. A história de um detetive japonês que investiga relatos de um monstro do mar aterrorizando a cidade, revela uma sinistra conspiração traiçoeira, que chega até os cargos mais altos da Família Imperial. Bela fotografia e direção de arte. 

OS FENÔMENOS – Neneta vive sem responsabilidades ou planos num trailer na Espanha. Quando seu parceiro desaparece sem explicação, ela decide voltar para a sua terra natal. Com grandes dificuldades em achar um trabalho, até que consegue uma oferta para trabalhar como operária numa construção. Seu grupo é logo conhecido como “Os Fenômenos”, os construtores mais rápidos da região. Quando Lobo volta, Neneta tem que decidir se foge com ele ou se fica com sua nova vida.



QUEEN AND COUNTRY- Filme bonitinho de época na Inglaterra. Sequência de Esperança e Glória, de 1987. Bill Rohan agora é um feliz jovem de 18 anos que tem os sonhos interrompidos pela Guerra da Coreia. No campo militar, ele conhece Percy, que se torna um bom amigo. Os dois logo viram instrutores e conspiram contra um sargento desagradável. Enquanto explora o mundo longe de casa, Bill se apaixona por uma jovem indomável. Um final meloso e súbito.



AS NOITES BRANCAS DO CARTEIRO – Filme Russo ganhador do prêmio de melhor direção no Festival de Veneza. Num vilarejo distante de tudo, a única maneira de alcançar o continente por um lago de barco. O lugar é uma comunidade fechada, onde as pessoas vivem do passado. Um carteiro se torna a única ligação com o mundo exterior. O filme usa apenas os próprios habitantes do local que fazem seus próprios papéis. Destaque para o único garoto do grupo, um menino extremamente carismático.

ESTRELA CADENTE – Filme espanhol que é difícil classificar. Com nudez explícita e cenas ousadas de masturbação. Do nada, os personagens deixam a interpretação realista para começar a cantar canções modernas. Um olhar quase alucinatório pelo mundo de Amadeu de Saboia, rei da Espanha de 1870 até 1873, uma época ingovernável no país. Este episódio intrigante da história é transformado numa elegia à beleza, à criatividade e à alegria.

NOTA 4

ADORÁVEL LOUISE – História de um homem de cinquenta e poucos anos que mora com a mãe de 80 anos chamada Louise, uma ex-atriz. Ele leva uma vida boa e pacata - é motorista de táxi e se dedica ao hobby de pilotar aviões. Tem dificuldade em se aproximar de uma mulher atraente e mais jovem que vende salsichas no aeródromo. Um dia, um homem estranho bate à sua porta e vira sua vida tranquila de cabeça para baixo. Um final bonito mas um pouco forçado.



PAIXÃO MÓRBIDA- Filme meio noir do Japão dirigido por Noboru Nakamura, homenageado na Mostra . Yoshie é uma garota de 19 anos que trabalha numa fábrica, mas sonha com uma vida diferente. No bar onde trabalha de noite, ela conhece um membro da Yakuza. Eles começam um relacionamento. Mas o amante se mostrar um sujeito violento. Ele tem dívidas de jogo e começa a pressionar Yoshie para que ela se torne uma prostituta. Yoshie se vê então presa numa espiral de brutalidade e humilhação. Final corajoso. Fatal!

GIRAFFADA- Uma co-produção da França e Palestina - Ziad, um menino de dez anos da Cisjordânia, fascinado por duas girafas do zoológico. Ele gosta de ajudar seu pai veterinário viúvo e trabalha duro para proteger o zoológico como um refúgio para as crianças locais. Quando uma das amadas girafas de Ziad sofre as consequências de um ataque aéreo, Yacine faz de tudo para conseguir trazer outra girafa de Israel. Inspirado numa história real mas que na minha opinião pecou pelo maniqueísmo mostrando os israelenses como vilões. Se bem que eles não são exatamente mocinhos.

ACIMA DAS NUVENS- Filme elogiadíssimo e concorrido dirigido pelo aclamado Olivier Assayas com Juliette Binoche e Kristen Stewart. No auge da carreira, a personagem de Binoche é convidada para atuar numa remontagem da peça que a tornou famosa há 20 anos. Naquela primeira versão, ela atuou no papel de uma jovem sedutora que leva sua chefe apaixonada por ela ao suicídio. Agora ela é convidada para o outro papel para contracenar com uma jovem estrela em ascensão em Hollywood com uma inclinação para polêmicas. Não achei toda essa coca cola e me pareceu um final forçado.

NOTA 3 

INSEGURO – Filme francês sobre um imigrante do Oriente Médio que almeja ser enfermeiro, mas fracassa em testes anteriores. Além de estudar, ele trabalha como segurança de uma loja de eletrônicos, mas é importunado permanentemente por jovens delinquentes barra-pesada o que ameaça fazer ele perder o emprego. Ele bola um plano para se livrar dos garotos, mas no curso da noite sua vida toma um rumo inesperado. Não gostei do final muito aberto e súbito demais.

PROFECIA - A AFRICA DE PASOLINI- Um documentário-ensaio de apenas 77 minutos que reúne as ideias e previsões políticas do cineasta italiano Pier Paolo Pasolini. Citando a influência da cultura do continente nos subúrbios ao redor de Roma, suas ideias ainda são relevantes para Europa de hoje, uma vez que Pasolini acreditava que os dois continentes iam ser cada vez mais unidos. Pasolini era um poeta, ativista político da esquerda italiana, homossexual assumido e libertário e autor de clássicos do cinema italiano e mundial Apesar de eu adorar o diretor o documentário não me acrescentou nada de novo. 


NOTA 2


UM POMBO POUSOU NUM GALHO REFLETINDO SOBRE A EXISTÊNCIA – Terceira parte de uma trilogia do diretor Roy Anderson mas apesar de todas as sessões estarem lotadas achei o filme um Monty Python fraco. Dois homens cansados da vida estão numa viagem de negócios, vendendo artefatos engraçados que mostram uma percepção sobre o mundo caótico do presente, o passado e o futuro – um mundo de sonhos e fantasias. Vencedor do Leão de Ouro no Festival de Veneza.


AS BRUXAS DE ZUGARRAMURDI- o diretor espanhol Alex de la Iglesia gosta de histórias absurdas e aqui ele até que se sai bem na primeira parte do filme mas do meio para o fim desanda com excesso de clímaxes. A história de José, pai solteiro com dificuldades financeiras após seu divórcio, planeja roubar uma loja junto com um grupo de ladrões. Eles fogem de Madri, chegando na estranha cidade de Zugarramurdi onde enfrentam uma irmandade de bruxas Vencedor de oito Prêmios Goya. Participação estranha da estrela espanhola Carmem Maura.


O RETORNO DE ANTÍGONA – Filme grego bem fraco. Depois de muitos anos de ausência, Antígona retorna a uma pacata cidade na Grécia onde reencontra velhos amigos, arranja um emprego e num namorado. Mas a sua busca por tranquilidade acaba se tornando uma tarefa complicada. A cidade está vivendo uma onda de violência e parece reinar uma regra de cumplicidade entre vítimas e perpetradores. Na chance que Antígona tem para mudar seu destino, será que ela vai assistir a tudo calada?


JAMIE MARKS NÃO ESTÁ MORTO – Um filme americano com a enganadora participação da atriz Liv Tyler num papel ridículo. Em uma cidade pequena e fria, o corpo do adolescente Jamie Marks é encontrado perto do rio. Um jovem atleta, Adam, desenvolve uma obsessão por Jamie, garoto que era vítima de bullying. Quando o fantasma de Jamie começa a visitar Adam ele fica preso entre dois mundos. Ele sente uma ligação profunda com Jamie, que lhe o aproxima do mundo dos mortos. Há uma certa insinuação gay mas é um filme mal aproveitado.

NOTA 1


PEQUENAS ATRAÇÕES – Filme polonês que merecia render mais. A história de duas moças que dividem um apartamento, um carro e fazem faxinas nas casas de recém-falecidos e vendem o que encontram de valor. Peter trabalha em uma fábrica enroscando tampas em jarras, e lida com o divórcio recente e a mãe instável. Quando ele se junta às garotas no negócio, ele logo se sente atraído por Asia, mas isso causa problemas na nova amizade entre os três, já que Kasia também está apaixonada. Dormi metade do filme.


O PEQUENO QUINQUIM Filme francês na minha opinião chatíssimo como costumam ser essa comédias francesas sem timming. Um capitão de polícia cheio de tiques que chegam a irritar o expectador e seu parceiro investigam a descoberta de uma vaca morta preenchida com restos humanos. Enquanto buscam respostas, eles são seguidos pelo pequeno Quinquin, um menino que cria confusão por onde passa. Originalmente exibida como uma minissérie da TV francesa. Li que lembrava Twin Peaks. Só se for na Conchichina.


O MEDO – Filme espanhol muito tenso sobre um casal de adolescentes que vivem sob o jugo de um pai opressor que espanca a mãe. O silencio petrificante expressa muito mais do que qualquer palavra explicando o medo que o pai lhes causa. O filme é opressivo e consegue manter a tensão até o fim. Sente-se que nada daquilo vai acabar bem. O final é como um soco no estômago.



OPIUM- Apesar de ser muito aplaudido no final pela plateia, certamente formada de artistas, é um  musical situado no começo dos anos 20, mostrando os dias em que Jean Coteau era um poeta que desfrutava da vida noturna em cabarés de Paris. Ele se apaixona profundamente por Raymond Radiguet, o jovem escritor de “O Diabo no Corpo”. Quando Radiguet morre, Cocteau se afunda no vício, descobrindo que amor e ópio são as drogas mais poderosas. As músicas do filme usam os poemas de Cocteau. Imagens surrealistas e psicodélicas demais.


JIA ZHANGKE- UM HOMEM DE FENYANG – Documentário de Walter Salles - Um retrato afetivo do jovem realizador chinês que, para muitos, se tornou um dos mais importantes cineastas de nosso tempo. Para este documentário, Jia Zhangke volta aos locais de rodagem de seus filmes, junto com seus atores e colaboradores mais próximos e relembra as fontes de inspiração de filmes. Posso estar cometendo um sacrilégio mas ainda não vi um único filme deste diretor que não fosse um porre.


MAUS HÁBITOS- Um dos primeiro filmes de Almodóvar, um dos poucos que eu ainda não tinha visto. História de uma cantora que foge da polícia após seu namorado morrer de uma overdose e busca refúgio num convento para mulheres desamparadas. Lá, se torna amiga de várias freiras incomuns: uma autora de romances baratos que escreve usando um pseudônimo, uma cozinheira masoquista e uma defensora de animais que cria um tigre. Com as estrelas Marisa Paredes, Carmem Maura e Cecília Roth. Roteiro muito fraco apesar das boas ideias que mereciam tratamento mais cuidadoso


CICLO – Filme turco. Feramus é um professor de filosofia que retorna à sua terra natal para vender terras da família após a morte de seu pai. Ele acaba se perdendo em meio à burocracia e as autoridades locais. Betül é a diretora do teatro local, que tem que parar de trabalhar por causa da nova realidade política da Turquia. Uma sátira ácida da vida moderna, que também envolve o moderno mas nunca usado aeroporto da cidade. O final é bonito e de certo modo redime o filme arrastado demais.

NOTA 0


ADEUS À LUA- Filme holandês pretensioso e fraco do qual sai na metade No verão de 1972, um garoto tem duas obsessões: a missão da Nasa para a lua e espiar sua vizinha Mary, uma linda modelo viciada em Valium. Quando o pai dele conhece uma artista que está morando ao lado começa sair com ela e logo decide morar com a moça. Enquanto a mãe do garoto coloca os filhos contra o pai, o garoto começa a contar com Mary como sua maior companhia. 



A NOITE ACALMOU- Filme americano, o segundo que deixei no meio sobre um garoto de 13 anos que não vê a hora de entrar no mundo de sexo, drogas e álcool de Nova York. Um dia, ele fica traumatizado com o derrame de Aida, sua empregada chilena de 65 anos. Com sua verdadeira figura materna ausente, o que deveria ser um rito de passagem alegre logo se torna um grande pesadelo.




VENTOS DE AGOSTO - Outro filme, desta vez um brasileiro que abandonei no meio. Apesar de ter ganho a menção Honrosa no Festival de Locarno para mim não passavam de imagens bonitas sem roteiro ou história. Até onde vi a história de uma moça que trabalha numa plantação de coco e tem um caso com um rapaz que trabalha na fazenda e faz pesca subaquática de lagosta e polvo. Não vi nada que prestasse.

7.9.14

DE REPENTE, SALMAN RUSHDIE!



       No ano 2000 tive uma estranha experiência ao lado de um amigo enquanto caminhava uma tarde em Nova Iorque, saindo do Museu Metropolitan a caminho do Guggenheim. Subindo a 5ª avenida, ao lado do Central Park, nossa visão foi atraída por um movimento estranho do outro lado da rua. Subitamente, três carros pretos pararam em uma esquina e fecharam a rua. De um furgão, também preto, saiu um homem meio calvo que rapidamente entrou num prédio enquanto dois outros homens com escopetas faziam sua segurança.
        
          Uma cena surreal como aquela no meio da tarde em pleno coração de Manhattan deixou a mim e meu amigo Jorge Barreto, aturdidos. Imediatamente vimos de quem se tratava: Salman Rushdie, o escritor britânico que vivia sob a proteção das autoridades, pois estava condenado à morte pelo aiatolá Khomeini em uma fatwa por apostasia.
          
          Àquela altura eu não tinha lido nenhum dos livros de Rushdie, mas achei que estava na hora de me livrar daquela omissão, uma vez que tive chance de ver o célebre escritor ao vivo em sua jornada de semiobscuridade. Tive o privilégio de vê-lo novamente e ouvi-lo neste ano de 2014, na sua brilhante palestra no Teatro Castro Alves, na série Fronteiras do Pensamento.

Essa longa introdução sobre a visão surreal do escritor perseguido numa tarde qualquer na 5ª avenida é para descrever a atmosfera meio fantástica dos seus livros. Lembrei-me disso quando ouvi Rushdie falar sobre a influência do realismo mágico de Garcia Márquez na sua literatura. A visão de dois brasileiros paralisados diante de uma equipe de policiais garantindo a vida de um homem que ousava defender suas ideias sob o risco de morte parece sair de uma das páginas escritas pelo próprio autor.

O Último Suspiro do Mouro e Vergonha são dois livros impressionantes e que deveriam ser lidos por todos que desejarem iniciar-se no que é a Índia e o Paquistão, dois países que desafiam todos os conceitos que nós ocidentais temos.
            
          A literatura de Rushdie tem uma marca inconfundível: a mistura de ficção com a História, e sua própria origem mista (indiana e britânica) serve perfeitamente para retratar temas como o multiculturalismo, o pós-colonialismo e a construção de uma identidade nacional.

Tanto em Vergonha como em O Último Suspiro do Mouro vemos o estilo do autor em mostrar intrincadas histórias genealógicas fabulares, como em Cem Anos de Solidão, de Garcia Márquez, que mais do que metáforas ou alegorias, atravessam o universo real, avançam pelo onírico, sem deixar de retratar o universo político da Índia e do Paquistão com seus golpes de estado e corrupção política, sua religiosidade opressiva, seu odioso sistema de castas (são mais de 3 mil castas e 25 mil subcastas), sua pobreza e atraso material e também sua inigualável riqueza cultural.

Rushdie é cultíssimo, como se pode ver em sua palestra e pela leitura dos seus livros e seu brilhantismo é emoldurado por um bom humor extraordinário e o humor é uma das maiores formas de inteligência, uma força inquebrantável diante da mesquinhez dos poderosos e da ignorância dos medíocres.

VERGONHA é o terceiro romance de Rushdie e retrata a história intrincada de três famílias com seus destinos entrelaçados pela violência da criação do Paquistão após sua separação da Índia.

Vamos acompanhando em uma narrativa não linear, histórias de três irmãs misteriosas que se excluem do mundo, prisioneiras voluntárias de uma mansão gigantesca, “mães” de Omar Khayyam, um anti-herói gordo e pervertido, sem religião, política ou vergonha; seguimos também a luta pelo poder de dois primos autoritários: Iskander Harappa, um playboy milionário, e Raza Hyder, um oficial do Exército; além de uma série de mulheres estranhas como Sufiya Zinobia, que cora tanto de vergonha que chega a queimar as mãos de quem a toca; sua irmã Navid Hyder, que dá à luz 27 filhos em séries de gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos....Mães, filhas e avós com uma profusão de sentimentos contraditórios de honra, vergonha e medo, um cenário tecido habilmente pelo autor como uma burca ou um véu para cobrir ou vestir uma teia de corrupção e intriga, metáforas vivas da história violenta do Paquistão, país em que Rushdie viveu parte da sua infância.

O trecho a seguir mostra um pouco da singularidade da vergonha inerente ao sentimento enigmático do povo do Paquistão. Em um momento em que um grupo de pescadores chantageia um casal que foi flagrado em pleno ato sexual, algo ultrajante e vergonhoso aos olhos "puros" dos devotos pescadores, o chantagista líder diz, para justificar a extorsão: "Uma atitude tão ímpia é ruim para nossa paz de espírito. Alguma compensação, algum conforto tem de ser fornecido". Brilhante! 

            O ÚLTIMO SUSPIRO DO MOURO foi a resposta de Rushdie à sua sentença de morte pelos fundamentalistas islâmicos, seu primeiro livro após a publicação do quase fatal “Versos Satânicos”.

Aqui, ele faz uma vigorosa defesa da tolerância e da pluralidade cultural em uma história fantástica iniciada na Índia após a chegada de Vasco da Gama, passamos pelo período da independência do país e sua separação do Império Britânico.

Como em uma fábula, o livro continua pelas décadas de 80 e 90 retratando uma Bombaim (hoje Mumbai) multicultural e multifacetada até terminar em um olival ao sul da Espanha, na Andaluzia, à sombra do Palácio de Alhambra. Toda a história é contada no estilo das Mil e Uma Noites e gira em torno da riquíssima personagem de Moraes Zogoiby, o Mouro, como uma Xerazade que narra suas histórias para continuar vivendo, adiando o que será, inexoravelmente, seu último suspiro de exaustão.

Conhecemos Mouro próximo da sua morte e com ele voltamos à sua infância, em cujas veias corre sangue português, judeu, árabe e indiano, metáfora personificada daqueles que, como o próprio autor Salman Rushdie, escapam de definições rasas de nacionalismos, e sectarismos religiosos, étnicos e culturais.

Aqui também, como em Vergonha, temos ficção e história amalgamadas em uma grande família, descendentes por um lado de Vasco da Gama e por outro do último sultão de Granada. O livro é como uma aula de História, mostrando uma Índia caleidoscópica, com pinceladas generosas de cultura, pintura, cinema e literatura.

Como em Vergonha, temos aqui uma família repleta de paixões e intrigas para acompanhar em uma narrativa não linear, com muitas idas e vindas temporais, mas com uma fluidez impressionante. Seguimos os passos dos bisavós de Mouro: Francisco e Epifânia, seus avós Camões e Isabela, seus pais Aurora e Abraham, e as irmãs Inamorata e Filomena.
           
           Salman Rushdie, com sua literatura repleta de misticismo, tem, ao mesmo tempo, um texto muito realista. Nada mais adequado do que incluí-lo entre os autores realistas-fantásticos, com seus personagens belissimamente retratados com todas as nuances daquilo que faz o ser humano ser, paradoxalmente, tão macabro e tão belo.