1.11.17

41ª MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA EM SÃO PAULO

A Mostra Internacional de Cinema em São Paulo chega à sua 41ª edição e aqui continuo batendo ponto por 16 anos. Não há nada melhor para fazer nas férias do que me enfurnar o dia inteiro em diferentes salas de cinema e assistir exemplares novíssimos da sétima arte, ótimo cinema do mundo inteiro, da Mongólia ao Catar, da Eslovênia às Filipinas, checar os novos trabalhos de diretores de quem se ficou fã e ter oportunidade única de assistir a filmes que nunca vão estrear no Brasil.

Este ano foram mais de 394 filmes (ficção, documentário e animação), com mais de 1 mil exibições em 40 salas espalhadas pela cidade. Muitos filmes venceram importantes festivais de cinema pelo Mundo este ano como Cannes, Berlin, Sundance, San Sebastian, Locarno e vários indicados pelos seus países para o Oscar de Filme Estrangeiro.

Aplausos merecidos pela organização do festival que atinge um nível de profissionalismo e excelência de fazer inveja. São mestres em organizar uma mostra de tamanho tão gigantesco envolvendo tanta logística que nem imagino como se consegue, distribuir as cópias pelas salas, cuidar das legendas eletrônicas, organizar a venda dos ingressos e passaportes, recepcionar diretores e atores dos filmes que são lançados na Mostra, além de administrar todo o pessoal voluntário que passa o dia cuidando de filas e das votações.

Este ano não fiquei em hotel, mas aluguei um apartamento nas imediações da avenida Paulista onde ficam concentradas 13 das salas da Mostra. Não queria problemas de deslocamento. O passaporte para 40 filmes custou R$ 374,00 com garantia de pegar os ingressos com três dias de antecedência, sem fila ou risco de encontrar sessões lotadas. Assim cada filme me custava apenas R$ 9,35, menos do que o preço de meia-entrada. 

Nem todos os filmes a que assisti me agradaram mas fico feliz quando vejo comentários de pessoas elogiando os filmes que não gostei. Isso é ótimo, pois tem filmes para todos os gostos. E um dos passatempos é trocar informações sobre os filmes nas filas e encontrar as mesmas pessoas há mais de uma década, os cinéfilos que tiram férias e se mudam para São Paulo todo ano em outubro.


Aqui segue a minha lista dos filmes que vi



BERENICE PROCURA-Berenice (Cláudia Abreu, excelente) é uma mulher dedicada ao trabalho de taxista com paixão por fatos policiais e cenas de crimes. Seu marido Domingos (Du Moscovis) é um repórter de programa sensacionalista. Certo dia, Berenice se vê envolvida em um caso de assassinato de uma travesti em Copacabana e decide fazer sua própria investigação. Adaptação do romance homônimo de Luiz Alfredo Garcia-Roza. Elenco de primeira com destaque para Vera Holtz no papel de uma lésbica cafetina dona de uma boate de travestis. O único filme da Mostra, que eu vi ou saiba, com uma temática GLBT. Excelente trilha sonora com músicas de Johnny Hooker com participação do próprio.


SEM DATA, SEM ASSINATURA – Filme iraniano que segue a tradição daquele país de realizar um excelente cinema, como provam os premiados diretores Abbas Kiarostami, Jafar Panahi, Majid Majidi, Mohsen e Samira Makhmalbaf, entre muitos outros. Aqui temos uma história que serve como um verdadeiro tratado sobre ética. Um médico patologista forense, sem querer, provoca um acidente com um motociclista, sua esposa e seu filho de oito anos. Ele dá uma compensação financeira à família e se propõe a atender o garoto em um hospital próximo, o que o pai recusa. Na manhã seguinte o corpo do menino é levado para a autópsia e o médico enfrenta o dilema de saber se ele é o responsável pela morte da criança ou ela morreu de botulismo, como diagnosticou outra médica. Uma espiral de violência e injustiça se segue à morte da criança o que faz com que o médico leve seu dilema às últimas consequências. O cinema iraniano continua o seu show! Esse filme deu o prêmio de Melhor Diretor e Ator na Seção Horizontes do Festival de Veneza.



O ÚLTIMO TRAJE- Uma coprodução da Argentina e Espanha que mostra o drama do velho costureiro judeu Abraham que vive aos 88 anos em Buenos Aires e decide ir até a Polônia para reencontrar um homem que o salvou da morte após ele sobreviver a Auschwitz. Já velho e fugindo de suas filhas que desejam colocá-lo em um asilo, e sem notícias do amigo há 70 anos, Abraham vai tentar localizá-lo e cumprir uma promessa que lhe fez. Um road movie  com todos os bons ingredientes do gênero, mostrando os encontros de Abraham pelo caminho até a Polônia. Pessoas que os ajudam, como a dona do albergue e o músico em Paris, a mulher no trem que atravessa a Alemanha e a enfermeira polonesa. Um final lírico e que poderia ser um pouco mais belo, mas talvez ele caísse na pieguice se explorasse de modo mais íntimo o final da jornada de Abraham, risco de que o filme brilhantemente escapa.

ANDAIMES- Nessa produção de Israel vemos Asher, um adolescente de 17 anos problemático e impulsivo. Com dificuldade para se concentrar nas aulas, ele é acometido por rompantes de raiva e violência. Enquanto seu severo pai o vê como um sucessor natural do negócio de andaimes da família, o menino encontra um exemplo masculino diferente em seu professor de literatura. Dividido entre esses dois mundos, Asher busca uma chance para uma nova vida e uma nova identidade. O rapaz que faz o personagem principal é excelente, com uma notável capacidade de transmitir os sentimentos no olhar. O dilema entre as duas figuras masculinas na sua vida fica cada vez mais forte na medida em que o jovem tem que fazer escolhas que podem ser definitivas. O final é belíssimo quando o rapaz finalmente faz ao pai as perguntas que sempre o atormentaram no momento em que ele está só e a presença do professor nunca foi tão ausente.

NÃO SE ESQUEÇA DE MIMOutro excelente filme argentino com o ótimo Leonardo Sbaraglia (de Relatos Selvagens, O Último Túnel e Neve Negra). Na década de 1930, Mateo, um anarquista sai da cadeia e viaja pelos pampas em sua velha caminhonete carregando galinhas roubadas à procura dos ex-companheiros militantes anarquistas e tentando encontrar seu galo de briga El Rey, que, espera, o levará ao sucesso nas rinhas. Seu caminho se cruza com os de Aurelia e Carmelo, dois irmãos em busca do pai. Sem um destino definido, Mateo os acompanha em um road movie em que eles irão encontrar algo totalmente diferente do que buscavam. Muito bonito.

THE SQUARE – Filme sueco que ganhou a Palma de Ouro em Cannes este ano e que mostra o trabalho de um respeitado curador do museu de arte contemporânea de Estocolmo, pai divorciado e dedicado. Sua próxima exposição, The Square, é uma instalação que convida os transeuntes ao altruísmo. Mas às vezes é difícil viver de acordo com seus próprios ideais e sua resposta ingênua ao roubo de seu celular o leva a situações vergonhosas. Enquanto isso, uma agência de relações públicas cria uma chocante campanha para promover The Square. A reação exagerada do público e da mídia conduz o curador a uma crise existencial. O filme tem um humor ácido ao retratar a forma hermética das pretensiosas e indecifráveis obras de arte contemporâneas. Há cenas perfeitas e divertidas, como aquela em que um casal disputa a posse de uma camisinha usada e a soberba sequência em que um homem-macaco faz uma performance angustiante diante de uma plateia repleta de ricaços em um jantar arrogante. 


BABYLON BERLIN-Filme alemão do competente Tom Tykwer, que dirigiu o excelente Corra Lola, Corra. Na verdade, são os dois primeiros episódios reunidos de uma série de tv alemã, o que faz a plateia ter vontade de assistir correndo aos outros episódios. Em 1929, um jovem inspetor de polícia é transferido para Berlim para resolver um crime. O que à primeira vista parecia ser apenas um caso de extorsão, logo revela-se ser um escândalo de proporções enormes que o coloca em um conflito existencial entre lealdade e verdade. O filme acompanha o desenvolvimento político que levou da República de Weimar à propagação do nazismo. A trilha sonora é arrebatadora e deu vontade de sair direto do cinema para comprar o cd com as canções (ainda existem cds?) Sugiro olhar no YouTube a cena da boate ao som da canção Zu Asche zu Staub. 


O ABRIGO- Coprodução de Israel e Alemanha que mostra a relação de duas mulheres que precisam permanecer juntas escondidas em um apartamento em Hamburgo. Uma libanesa que está fugindo do Hezbollah e uma agente israelense enviada para proteger a informante que se recupera de uma cirurgia plástica para mudar de identidade. A intimidade aos poucos criada entre elas está exposta à ameaça do terror. O filme fala muito bem sobre espionagem, afetos e lealdade entre as mulheres. Uma obra de arte.


COM AMOR, VAN GOGH- Filme de animação da Polônia e Reino Unido inteiramente feito a partir de pinceladas em óleo sobre tela feitas por centenas de artistas plásticos que reproduzem os traços do gênio Van Gogh. Eu tinha prometido que não ia ver nenhuma animação mas aqui estou impressionado com esta e dando nota máxima. Todas as sessões estavam com ingressos esgotados. As plateias aplaudem no final esse belo espetáculo de cores e lirismo que refaz a viagem de um jovem procurando aqueles que testemunharam os últimos meses da vida do amargurado pintor holandês com citações de cartas escritas pelo próprio Vicent para seu irmão Théo. O filme foi ganhador do Prêmio do Público de Melhor Ficção Internacional da Mostra.


TRÊS ANÚNCIOS PARA UM CRIMEExcelente filme norte-americano em que Mildred Hayes (Frances MCDormand, de Fargo) é uma mulher do interior de luto pela morte da filha. Após meses sem que o assassinato brutal da garota seja solucionado pela polícia, ela decide se vingar por conta própria expondo em três outdoors da cidade frases denunciando o descaso. O filme foi vencedor do prêmio Osella de Ouro de melhor roteiro no Festival de Veneza e foi campeão do último Festival de Toronto. O ator Woody Harrelson está  soberbo como o xerife responsável pela investigação e que sofre de um câncer terminal e Peter Dinklage (o anão de Game of Thrones) faz uma modesta participação.

                                                                      
O INCIDENTE NO NILE HILTON- No Cairo, semanas antes da revolução de 2011 que derrubou o presidente Hosni Mubarak, o major Noredin é encarregado do caso de uma cantora assassinada no Hotel título, mas logo se dá conta de que a investigação diz respeito à elite que detém o poder no país e faz parte do círculo de relações do presidente. A corrupção dentro da polícia é frenética e mesmo o major Noredin é parte do esquema mas ele decide que deve levar até o fim a investigação e isso provoca consequências graves para todos. Um dos pontos positivos é que o filme não poupa da corrupção o próprio "mocinho".


LIBERDADE-Coprodução da Alemanha e Eslováquia muito bem construído com imagens tristes de uma mulher que busca fugir de um casamento onde se sente prisioneira apesar de aparentemente ser uma relação apenas morna. Enquanto ela passeia por um museu, faz sexo com um jovem e vai de carona até Bratislava, ele está em Berlim, tentando lidar com as filhas, o trabalho e o caso com outra mulher. Ele tem dificuldades como pai sozinho e não consegue se comprometer de verdade com ninguém, já que sua vida perdeu o sentido desde que a esposa desapareceu. No final, o filme acertou em cheio ao construir a partir de algumas cenas, no decorrer da narrativa, a fatal descoberta da mulher de que não havia saída, nem em uma escolha nem em outra. 



O OUTRO LADO DA ESPERANÇA- Filme finlandês que venceu o Urso de Prata de melhor diretor no último festival de Berlim e que conta a história de Khaled, sírio que foge da guerra e chega em Helsinque escondido em um contêiner de carvão. Ele busca asilo na Finlândia. Frustrado com a burocracia, ele foge e vive nas ruas onde encontra um ex-vendedor que se separou da mulher alcoólatra para começar uma nova vida como dono de um restaurante. Juntos, eles ajudam um ao outro a enfrentar as dificuldades que surgem nesse desconhecido e desconcertante novo mundo enquanto procuram pela irmã de Khaled que se perdeu dele na fuga da Síria. Os finlandeses não são exatamente especialistas em humor, mas o filme tenta, com muito mérito, alcançar alguma leveza no meio desses graves problemas dos refugiados de guerra na Europa.


A JORNADA FINAL-Filme alemão que retrata a ultima viagem de um ex-oficial nazista para a Ucrânia com sua neta, em busca da única mulher que amou na vida. Esta viagem se dá no momento em que uma nova guerra começa no antigo território soviético durante a primavera de 2014. Um belo filme sobre a busca da redenção.









CUIDADO COM OS WUNDERLICHSEsta é uma coprodução da Alemanha e Suiça que conta a história de uma cantora falida, sobrecarregada pelo trabalho com um filho hiperativo, uma mãe depressiva, um ex-marido drogado, uma irmã omissa e um pai bipolar. Ela se vê diante de uma nova chance em sua vida quando o filho a inscreve secretamente em um show de talentos suíço e vê ali a oportunidade de realizar seu sonho, mas sua família não deixará que ela encare isso sozinha e, então, todos embarcam em uma agitada viagem de carro até zurique. Um filme que é divertido, uma comédia que lembra muito A Pequena Miss Sunshine, mas que não chega perto do carisma do filme americano.




O NINHOFilme italiano que retrata a volta de Cora, uma garota de 19 anos, ao lugar onde passou a infância, Bucco. Ela ajuda seu pai, o prefeito da cidade, a organizar as comemorações para a festa da virgem de Bucco, um evento anual que atrai muitos peregrinos e turistas. Mas a chegada do misterioso Saverio abala pouco a pouco a harmonia desse local “sagrado”, desenterrando um crime cometido pelos moradores da região 40 anos antes.


O REBANHO-Mais um bom filme argentino. Dois adolescentes deslocados, com raiva de seus colegas e professores, resolvem causar pânico na escola por meio de inúmeros atos anônimos de vandalismo. Aos poucos, esse jogo perde o tom de brincadeira e os jovens se veem imersos em uma espiral de violência que não parece ter limites. O filme poderia ser melhor se o ator que faz o jovem mais violento fosse mais expressivo. O final é muito confuso pois a partir dos eventos e mortes, um dos jovens toma uma decisão que aparentemente é o oposto de tudo que se espera de alguém naquelas circunstâncias. Duvidoso que não tenha saído modificado daquelas experiências.


ZAMA- Também um filma argentino dirigido pela excelente Lucrécia Martel (de O Pântano e A Menina Santa) com breve, mas como sempre intensa, participação de Matheus Nachtergaele. Zama é um oficial da coroa espanhola nascido na América do Sul e que espera por uma carta do rei concedendo-lhe a transferência para um lugar melhor. Para garantir que nada atrapalhe sua mudança, ele é forçado a aceitar de forma submissa qualquer tarefa dada pelos inúmeros governadores que chegam e vão embora. os anos passam e a mensagem do rei nunca chega. Quando Zama percebe que isso nunca irá acontecer, ele se junta a um grupo de soldados que procura por um perigoso bandido. O filme lembra um pouco Aguirre, a Cólera dos Deuses, de Werner Herzog.


SCARY MOTHERUma coprodução da Estônia e Geórgia que no final não me agradou tanto apesar de aparentemente ser o filme queridinho da Mostra, pois as filas eram enormes, o buxixo grande e os ingressos esgotados. Há quem diga que tem um mérito de tratar do empoderamento feminino e abordar a opressão da mulher, mas não vi por este lado, acho que o filme se perde do meio para o fim e acaba de modo abrupto e inesperado. É a história de uma dona de casa de 50 anos que se vê diante do dilema de ter que escolher entre a vida em família ou o seu amor pela escrita, atividade que reprime há anos. Ela decide seguir sua paixão, mergulhando em um sacrifício físico e mental por ter decidido escrever um livro em que aparentemente retrata sua própria realidade e família de um modo não lisonjeiro e com muito erotismo. 




DESAPARECIMENTO- Coprodução do Irã e Catar que acompanha uma noite e madrugada em que um jovem casal percorre, em uma fria Teerã, diversos hospitais em busca de ajuda. Logo, eles terão de enfrentar as consequências da ingenuidade de sua juventude. O filme é bem construído mostrando aos poucos o que levou os jovens àquela situação e até que ponto eles chegarão para resolver um problema que para aquela cultura opressora para a mulher, é muito difícil de lidar. O filme só peca, em minha opinião, pela inexpressividade irritante do belo ator que faz o papel do namorado.


MARLINA, ASSASSINA EM QUATRO ATOS - Nas colinas desertas de uma ilha na Indonésia, Marlina, uma jovem viúva, é estuprada e roubada. Para se defender, ela mata vários homens da gangue. Buscando justiça, inicia uma jornada de empoderamento e redenção. Mas a estrada é longa, especialmente quando o fantasma de sua vítima sem cabeça começa a assombrá-la. 




ENCONTRE ESSA PEQUENA E ESTÚPIDA VADIA E JOGUE ELA NO RIO Cinema holandês é sempre uma boa surpresa na Mostra. Os jovens irmãos Remco e Lizzy e o pai deles vendem filhotes de cachorros trazidos de forma ilegal para o país. Sem pensar nas terríveis consequências, Remco posta na internet um vídeo de Lizzy jogando filhotes vivos em um rio. A partir da busca do garoto de conquistar alguma notoriedade em um mundo que valoriza tanto a internet, ele posta no Youtube o vídeo que leva a uma desenfreada caça às bruxas pela irmã que se vê perigosamente ameaçada. O filme não é maniqueísta e não condena o gesto dos dois jovens imaturos, mas mostra que a busca da notoriedade também afeta os que tentam fazer justiça. 


um JUDEU DEVE MORRER- Filme da Suiça. Em 1942, a II Guerra parece distante da pequena cidade suíça de Payerne. A economia local está fraca, as pessoas descontentes, e os cafés cheios de personagens sinistros. O dono de uma garagem e seus amigos juram lealdade ao partido nazista. Eles sonham em chamar a atenção de Adolf Hitler. Em 16 de abril, acontecerá uma feira de gado e Arthur Bloch (o excelente Bruno Ganz, de Asas do Desejo e Os Últimos Dias de Hitler), um negociante, estará lá. Esse é o dia em que um judeu será morto para servir de exemplo como presente de aniversário para o führer. O filme é interessante até porque eu não sabia que havia nazistas na pacífica e neutra Suiça.


AOS TEUS OLHOS-Um jovem professor de natação (Daniel Oliveira) é acusado pela família de um garoto de sete anos de ter dado um beijo na boca da criança durante uma aula. Antes da denúncia sequer ser comprovada, ele passa a ter sua moral questionada com imensa fúria nas redes sociais por pais, alunos e até funcionários do clube onde trabalha, levando ao envolvimento da polícia. As consequências são inimagináveis. Dirigido por Carolina Jabor. O tema já foi abordado em diversos bons filmes, como o dinamarquês A Caça, de Thomas Vinterbeg, indicado ao Oscar, e o americano Na Captura dos Friedman. Em ambos os casos fica claro que as crianças não disseram a verdade e os acusados pagaram por um crime que não cometeram, mas nesse filme a diretora optou por mostrar a questão do ataque digital que o professor sofre e não fica claro se ele realmente deu ou não o beijo no menino. Parte da crítica não gostou por não haver um maior aprofundamento na questão. Daniel de Oliveira carrega o filme com seu carisma ora de boa praça, ora cafajeste. O filme ganhou o prêmio Petrobrás de Melhor Filme Brasileiro de Ficção da Mostra.
SELFIEA vida de Bosco, um jovem mimado, desmorona no dia em que seu pai —um ministro corrupto— é mandado para a prisão. Traído pelos amigos, abandonado pela namorada, mãe e irmã, expulso de uma universidade privada elitista e, por fim, despejado de sua casa, ele é forçado a dividir um apartamento em um bairro pobre. Ao mesmo tempo, Bosco se apaixona por uma assistente social cega, meio tarada e de extrema-esquerda e tem a chance de sua vida de aprender uma lição.


KHIBULA- Filme da Geórgia contando a história real quando o país elegeu pela primeira vez um presidente da recém independente república. Ele é tirado do poder por um golpe de estado e foge para as montanhas com um pequeno grupo de fiéis soldados buscando tropas supostamente leais que o estariam esperando. Ele pretende encontrá-las e voltar do exílio para reconquistar o poder. Mas sua jornada acaba sendo turbulenta, alternando confiança e desconfiança, esperança e desespero, enquanto seus sonhos começam a se misturar com a realidade. Eu esperava um pouco mais de lirismo no filme porque o diretor George Ovashvili, natural da Geórgia, havia dirigido o excelente A Ilha dos Milharais (2014), que recebeu a Menção Honrosa da Crítica na 38ª Mostra.

CIAO CIAO – Uma coprodução da França e China - Ciao Ciao é uma arrogante jovem chinesa que volta à sua vila natal para visitar os pais. Ela pretende retornar a Cantão, cidade grande onde mora o quanto antes, pois tem um plano de começar um negócio  No entanto, seus pais pedem que ela fique para ajudá-los. Ciao Ciao torna-se então um objeto de cobiça, principalmente para Li Wei, o filho de um rico negociante de álcool contrabandeado.

EL INCA- Filme da Venezuela que conta a trágica história de amor baseada na vida de Edwin "El Inca" Valero, o maior boxeador latino-americano dos Andes venezuelanos. O filme é bem feito com cenas bem coreografadas das lutas de boxe do jovem que teve uma vida trágica quando estava no auge tendo inclusive entrado para o livro dos recordes por nunca ter perdido uma luta e ter conquistado 18 nocautes seguidos no primeiro round. Seu vício nas drogas e o ciúme doentio da esposa o levam à tragédia anunciada.

VAZANTE-Coprodução do Brasil e Portugal dirigido por Daniela Thomas (de Terra Estrangeira e Linha de Passe). O filme se passa em uma Minas Gerais, próximo do final da escravidão quando Antonio descobre que a esposa morreu em trabalho de parto. Sentindo-se sozinho em uma fazenda improdutiva, ele busca um novo casamento com Beatriz, uma menina muito jovem, que frustra seus planos de ter filhos. Antonio, então, volta às expedições negociando escravos e gado. Sozinha na imensa propriedade, Beatriz encontra nos escravos sua companhia. Uma traição implode a família em uma espiral de violência. A diretora e todo o elenco estavam na sala no dia em que assisti e também dezenas de atores globais e de teatro. O filme é muito bem feito, mas muito frio, sem nenhum efeito de catarse ou emoção, mesmo nos momentos mais fortes. Recebeu elogios mas também muitas críticas dos movimentos negros que se queixaram com alarde do seu não engajamento nas questões da opressão racial. Uma obra de arte não tem qualquer obrigação de ser engajada e o fato de não tomar um partido necessariamente não significa que tomou o partido do opressor. Mas fiquei decepcionado em saber que a diretora pediu desculpas por não ter tido essa questão em mente quando fez o filme e disse que não o faria se pensasse nisso. Isso é uma covardia pois ela devia defender seu ponto de vista e não pedir desculpas. O que acontece é que o filme é muito frio mesmo e nota-se que ela evitou mostrar os momentos de maior tensão dramática optando por uma câmera contemplativa, exceto unicamente no final.

UMA QUESTÃO PESSOAL- Outro bom filme dos irmãos italianos Paolo e Vitório Taviani – Na Itália, em 1943, Milton ama Fulvia, que brinca com seus sentimentos: ela gosta apenas da intensidade de seus pensamentos e das cartas que recebe dele. Um ano depois, Milton se junta à Resistência italiana durante a Segunda Guerra Mundial e descobre que Fulvia está apaixonada por seu melhor amigo, Giorgio, que também é membro do movimento. Milton decide ir atrás do amigo e descobre que o amigo está preso pelos fascistas. Ele terá que buscar um modo de salvar o amigo lidando com o dilema de que ele é amado pela mulher que ele ama. O elenco conta com o belo Lorenzo Richelmy visto recentemente na série da Netflix como o jovem Marco Polo

HAPPY END- O sempre instigante e niilista diretor austríaco Michael Haneke (A Professora de Piano, Amor e Fita Branca) trás seu casal fetiche Isabelle Huppert que fez os três filmes que citei e Jean-Louis Trintignant (de Amor) em um  retrato da vida de uma família burguesa europeia. O diretor já foi vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro. O filme como todos os demais, é muito seco e frio. Personagens amargurados e depressivos, com pouquíssimo afeto e muitas mágoas. O final do seu filme Amor, em que o personagem de Jean-Louis Trintignant sufoca a esposa, é mencionado pelo mesmo Trintignant no decorrer desse filme. Se o filme aborda entre outros a questão da incomunicabilidade, ele o faz muito bem ao mostrar as cenas praticamente sem explicar à plateia o que está sendo feito ou discutido pelos personagens. Tudo é mostrado sem introdução e sem conclusão.


A HOLYWOOD DE HITLER- Documentário alemão que aborda o cinema do Terceiro Reich, uma indústria extremamente censurada, mas que ao mesmo tempo desejava ser a fábrica de sonhos alemães. Estabeleceu seu próprio conjunto de celebridades, valendo-se das mais recentes estratégias de marketing nos cerca de mil filmes produzidos na Alemanha entre 1933 e 1945. Apenas alguns eram propagandas nazistas escancaradas; poucos, porém, eram inofensivos. Eles foram responsáveis por construir no imaginário do público estereótipos do “inimigo”, além de valores de amor e ódio.



PRIMOGÊNITO-Filme da Letônia do qual não gostei muito e que mostra um intelectual de meia-idade que comete acidentalmente um homicídio enquanto tentava recuperar a dignidade diante de sua mulher. Em pouco tempo, ele percebe que há uma estranha conexão entre a vítima, a gravidez repentina de sua esposa e um misterioso chantagista que tenta forçá-lo a tomar outra terrível atitude. Essa é a sinopse e se é confusa, o filme é tão confuso quanto.


ESPLENDOR-Filme japonês sobre a relação da jovem Misako, que escreve versões áudio-descritivas de filmes para cegos. Ela conhece um fotógrafo que está perdendo a visão. Juntos, os dois vão aprender a enxergar o mundo radiante que, antes, estava invisível aos olhos dela através das fotografias dele. Vencedor do Prêmio do Júri Ecumênico no Festival de Cannes. No cine Sesc onde a cópia foi exibida havia uma parte da plateia formada de cegos.



OUTRAGE CODA- Decepcionante filme do diretor e ator japonês Takeshi Kitano que constrói assim uma carreira cheia de altos e baixos. Filmes inspirados intercalados de medíocres. Aqui ele dirige novamente e atua como o ex-chefe da yakuza aposentado que depois de sobreviver à guerra entre duas famílias mafiosas, volta à ativa para resolver outro conflito. É a terceira parte da trilogia iniciada com O Ultraje e Outrage: Beyond. Aparentemente esses filmes são uma espécie de Kill Bill com testosterona. Muita bala disparada, muitos nomes em japonês e coreano, um monte de gente com rostos parecidos e tem uma hora que a gente não sabe mais quem é quem. Tramas sobre tramas e diálogos exagerados e amontoados. Parece uma comédia forçada que não tem muita graça. Não há sequer uma mulher no elenco, o que mostra novamente que é um clube do bolinha de homens velhos.


DHOGS - Na Espanha, a intimidade de um quarto de hotel. A imensidão de um deserto. Um posto de gasolina em uma paisagem desolada. Nesses cenários pitorescos, crimes ocorrem sob o olhar frio de protagonistas inesperados que mostram o lado sombrio, doentio e perverso da existência humana. Mas e se houvesse apenas uma linha tênue entre vítimas, criminosos e espectadores? Um filme estranho mas, de fato, interessante. Impossível não ficar intrigado.


VIAGEM À LUA - Tomas é um adolescente argentino deslocado e que tem acompanhamento com psiquiatra tentando passar em um exame. Sua família o pressiona constantemente e sua mãe o força a tomar remédios antipsicóticos. Em sua tentativa de fugir dessa situação, ele planeja uma curiosa viagem à Lua. Nessa jornada particular, em que realidade e ficção se misturam, Tomas vai descobrir um antigo segredo familiar.


FÉLICITÉ- Félicité é uma mulher orgulhosa e independente que trabalha como cantora em um bar de Kinshasa, no Congo. Sempre que ela sobe ao palco, parece deixar todas as preocupações de lado. Mas um dia, seu filho sofre acidente grave de moto e precisa de uma operação cara e ela tenta desesperadamente conseguir o dinheiro em uma jornada pelas ruas pobres e pelos bairros ricos da cidade. O filme foi o vencedor do Grande Prêmio do Júri no Festival de Berlim.


31.8.17

O Porto dos 11 Anos

Os 11 anos seriam sempre, para ele, um lugar seguro. No redemoinho confuso em que se transformara a sua vida, sempre haveria aquele porto seguro onde poderia se refugiar, onde não o alcançavam as existências medíocres que o cercavam, a todo tempo fazendo com que ele se questionasse se habitava algum universo de seres unidimensionais e onde apenas ele estava condenado a se esbarrar continuamente nas arestas pontiagudas das possibilidades, todas a ele proibidas e por ele vislumbradas através do véu de uma sedutora — e ao mesmo tempo ameaçadora — névoa de promessa.

Aquele lugar, seu porto seguro, eram os 11 anos.

A casa dos avós era o primeiro sinal de um remanso, não ainda o ancoradouro perfeito, a baía inexpugnável. Havia, por ali, dezenas de primos de todos os graus e idades. Brotavam no lugar das suas férias como cogumelos após a chuva. Aqueles dois meses na cidadezinha natal dos seus avós eram a oportunidade para as energias exuberantes da infância se encontrarem. Todas elas, infâncias mais exuberantes do que a sua.

Os primos não precisavam de um lugar seguro. Os mundos de cercas de arame farpado, de estacas pontiagudas, de pedras soltas em lajedos e cachoeiras eram-lhes sedutores e despertavam interesses displicentes, seguidos de desinteresses súbitos. Pequenos selvagens em uma espécie de matilha, floresciam na abundância daqueles lugares perigosos, passando ao largo dos seus grandes temores. Aventureiros, com troféus feitos de feridas secas e machucados. As mordidas das piranhas da velha lagoa eram as medalhas de ouro. Poucos as exibiam, é verdade, só os mais audaciosos, e esses iam se avolumando entre os seus primos, como num rito de passagem para uma existência mais dominante.

Ele não era um daqueles. Ele precisava do ancoradouro.

A estridência das vozes das tias e empregadas, o entra e sai das visitas, o avô - desde sempre na sua lembrança -, inválido, cercado por um mosquiteiro de filó e criando raízes sobre a cama no maior quarto da imensa casa, sempre muito aberta e fresca.

Diziam, as fotos desbotadas pelas paredes e as pessoas mais velhas, que aquele homem franzino tinha tido, em algum momento das eras, seus verdes anos e dias de ouro. Mas ele só conseguia ver um corpo em um pijama, ambos desbotando juntos. Jamais lhe ocorreu que um dia aquele velho avô tivesse tido forças para administrar umas poucas propriedades, uma velha fazenda com algumas cabeças de gado, construir casas, constituir família com dezenas de filhos que se casaram algum dia e lhe geraram inúmeros netos.

Esses eram os seus primos, desde sempre na sua memória em constante desabrochar e perfeita saúde, crescendo, correndo, destruindo jardins, imunes aos espinhos das roseiras, que deixavam lanhos nas peles juvenis, mas já semi-curtidas e temperadas pelo sol onipresente daquele sertão, pequenos diabos que se divertiam a pisotear sapos, perseguir mutucas e destruir casas de joões-de-barro a pedradas, trepando na goiabeira para desespero da tia mais velha: a tirana.

Havia muitos perigos por ali. A casa dos avós ainda não era a enseada, era só o sinal dela, um farol, paragem de repouso em meio à tempestade das infâncias turbulentas dos primos e das ameaças das quais ele não saberia como escapar.

O badalar dos sinos anunciando o meio-dia era a senha para o caminho que o levaria ao lugar seguro dos 11 anos na pequena cidade, eterna cápsula de adobe e cal banhada no calor poeirento do sertão, com suas plantas que pareciam já nascer com folhas cobertas por uma pátina de areia amarronzada; com suas três ruas de paralelepípedos, mato esvaindo pelos encontros das pedras; com duas praças acanhadas e suas duas igrejas; com um armazém de secos e molhados; com um posto de gasolina e vários becos bordados de cansanções e urtigas e pavimentados por poeira.

E uma lagoa tão cercada de juncos e tomada por aguapés que era como se não existisse à vista, mas estava por lá; alguns afogados eram testemunhas da sua existência ameaçadora. Melhor evitar, pensava ele. Os primos e irmãos discordariam, sobrevivendo também aos perigos das águas turvas da lagoa.

E o rio. Passavam a manhã agitados nos preparativos para o passeio para o rio após o almoço. O ponto alto das férias.

Ele tinha outros planos.

A cidade agora estava silenciosa. O sol, após o meio-dia, encharcava de sonolência as pessoas já almoçadas. Quem não tinha a energia dos primos e dos irmãos, que partiam para o rio como uma revoada de gafanhotos, dormia parte da tarde. O calor abatia-se sobre as casas, sobre as três ruas, as duas praças e os muitos becos. Silêncio. O silêncio sagrado do mormaço e da paz da ausência da algaravia do bando de primos.

Ele sabia que na próxima esquina dormia o casal de tios-avós. Ali estaria o verdadeiro porto e só estaria à sua disposição por pouco tempo, enquanto o sol fosse suficientemente solidário para derrubar a todos. Mesmo a tia tirana que contraíra paralisia infantil e trazia uma das pernas atrofiada e também um braço. Isso não a impedia, no entanto, de castigar com severidade todos os primos. A ele, ela dedicava os mesmos mimos: os famosos beliscões torcidos, temíveis e dolorosos.

A tia não se importava se as mães estivessem por perto, ela castigava os sobrinhos independentemente da presença delas, suas irmãs ou cunhadas. Ela não tivera filhos nem se casara. Talvez por conta disso, as mães não reclamavam quando seus filhos eram castigados. Talvez por algum tipo de piedade por ela não ter tido seus próprios filhos, permitiam que educasse, a seu modo, os filhos das suas irmãs e irmãos.

A única saída era a fuga, facilitada pelo vigor da infância e pela dificuldade de serem alcançados pela claudicante tirana que mancava de uma perna. O único braço bom fazia um belo estrago na pele dos sobrinhos. Os hematomas duravam dias e também eram exibidos como troféus. Eram uma condição inerente ao exercício da infância por ali.

Ele era a criança diferente. Havia aquela doença rara e de nome complicado que lhe reduzia a coordenação, fazendo-o não acertar o chute na bola de futebol, ou mirar a bolinha de gude. Mesmo equilibrar-se sobre uma bicicleta lhe era impossível, o que dirá subir em árvores, pular cercas, escalar lajedos e fugir de cães ferozes. Toda a infância fora marcada de cuidados e dolorosas injeções de antibióticos a cada sábado.

A falta de jeito para os esportes e a limitação para inúmeras brincadeiras o levara a se interessar pelos livros. Começara com a mãe lendo, mas logo estava independente disso, pois nem sempre a mãe estava disponível já que havia mais irmãos, um pai e uma casa para cuidar.

Por que a tia, que tivera um problema parecido, não se identificava com ele e o incentivava a ler? Por que gritava especialmente com ele, exortando-o a sair de casa e brincar com os primos? Por que não entendia que ele preferia mergulhar nas páginas de um romance a nadar nas águas do rio? Não entendia porque o menino, ao seu olhar, com uma imperceptível limitação motora, deixava de correr com os primos para se enfurnar nas páginas de um livro. Ela, que não pudera brincar e correr na infância, não aceitava que alguém que tivesse essa aparente habilidade, preferisse abdicar dela para devorar livros durante horas. Não era seguro ler próximo àquela tia.

Era com uma espécie de dor que ele abandonava, sob suas ordens, livros semilidos. Muitas vezes, tivera que retomar a leitura nas férias dos anos seguintes, continuando do lugar onde deixara uma marca em uma página, no ano anterior.

Mas um dia, em uma visita qualquer à casa dos tios-avós, vislumbrou o porto seguro e foi seu momento de epifania. Sentados à sala daquela outra casa da outra esquina, enquanto a mãe e as tias colocavam as conversas em dia com a tia-avó, ele decidiu explorar aquele novo local.

Seguiu por corredores que ainda não conhecia, entrou em quartos novos, o som das vozes dos familiares cada vez mais distantes à medida em que ele explorava o quintal, retornava pela cozinha, adentrava a copa até encontrar-se diante de uma porta semiaberta com a luz do sol entrando por uma fresta junto ao piso.

Empurrou a porta e viu-se, pela primeira vez na vida, diante de uma imagem que nunca o abandonara: estantes imensas, repletas de livros, centenas, milhares de livros de todos os tipos, cores e tamanhos. Prendeu a respiração e, instintivamente, olhou para trás com medo de que a tia estivesse por perto, ameaçando-o expulsá-lo dali.

Nunca vira antes uma biblioteca. Todos os livros que lhe caíam às mãos apareciam de modo estranho, sempre beirando o clandestino, ora encontrados esquecidos numa mesa, achados num canto do quarto do tio mais novo, parte de coleções incompletas que ninguém saberia dizer como foram originalmente parar ali, ora emprestados de colegas. Mas uma biblioteca assim, jamais imaginara.

Foi a partir daquela tarde que em sua mente não habitava outra ideia que não fosse a de estar sozinho ali dentro, de ter aquele universo fantástico de livros unicamente para si. Chegava a sonhar estar sentado só ali, na cadeira de madeira escura, assento duro e espaldar alto, pés balançando sem chegar a tocar o chão, à borda da grande mesa de jacarandá, tão grande que nem conseguia imaginar como atravessara a porta. Imaginava que o cômodo fora construído em volta daquela mesa. A cidade inteira fora construída em volta daquelas estantes sagradas.

Ali dentro, cercado de histórias, deixava-se navegar e ser navegado pelas palavras, sentindo o cheiro único dos livros, como se lhes trouxessem aromas de tâmaras e outras frutas exóticas do deserto, como se lhe bafejasse o rosto a maresia de litorais e de terras insulares, odores que ele, por não conhecer, em razão da pouca idade, imaginava, assemelhando-lhe, na mente, os miasmas dos pântanos franceses ao cheiro acre do leite das vacas azedado na cozinha da tia; ou o perfume de odaliscas exóticas aparentando-lhe, ao olfato, aos diferentes olores de talcos da penteadeira da avó. Exalava sangue das batalhas travadas nos livros que lia, mas aquele cheiro ele conhecia das galinhas mortas no quintal da casa da tia pela velha empregada gorda.

Não havia som algum por ali, apesar de o quarto ser contíguo à rua. Naquelas horas modorrentas, horas de sono dos velhos e aventuras dos novos, nem mesmo os carros de bois passavam por perto, mas em sua mente havia música de cítaras e címbalos de países distantes, estrépitos de corcéis em combates, gritos de vitórias em idiomas sinistros, ribombar de canhões ou pedidos de socorro que se perdiam em florestas obscuras.

Lia os livros aleatoriamente, parte de um, pedaço do outro, retirando-os e devolvendo-os aos escaninhos, cuidadosamente, misturando, em sua mente ávida, todos os segredos que eles guardavam. Em um dia, no seu futuro, haveria uma orgia. Não se compararia àquela sensação que para sempre se faria tão tátil.

As estantes se erguiam até próximo ao telhado e ele as escalaria para atingir os livros mais altos, onde se escondiam as melhores histórias, como os primos escalavam as imensas baraúnas e jatobás e atingiam os topos das altíssimas mangueiras para recolher seus frutos.

Ali, naquele porto seguro, descobrira que nenhuma correnteza de rio, redemoinho de águas ou beliscões da tia tirana o atingiriam. Ali, seguiria protegido, rumo a planetas distantes e viagens submarinas; lutando em batalhas por honra ou por donzelas em perigo; aventuras em busca de ouro pelos sete mares e escalando íngremes e geladas montanhas, acompanhado por seus fiéis escudeiros: uma boneca de pano falante, um gênio em forma de sabugo de milho, um feio corcunda com um coração gigante, um boneco de madeira com um nariz autônomo e um menino que se vestia de verde e nunca crescia; cercado por inúmeros deuses irados, super-heróis e monstros em naves gigantes e por reinos inteiramente novos com rainhas, reis e cavaleiros sem-fim.

FIM