19.12.14

MOMMY


Em Mommy, quinto filme do canadense Xavier Dolan, estamos no mesmo país dos seus filmes anteriores, mas aqui temos um Canadá fictício, um país cuja lei permite que os pais possam internar os filhos em hospitais públicos com facilidade. Tirando esse detalhe, o filme pode ser muito bem assistido como um drama realista.

Antes, porém um parêntesis para falar desse jovem diretor, ator, roteirista, figurinista, produtor e editor que tem apenas 25 anos de idade e já carrega consigo um curriculum invejável.

Dolan chamou a atenção do mundo quando dirigiu e atuou aos 20 anos no seu filme de estreia: Eu matei a minha mãe filme premiado no Festival de Cannes. No ano seguinte, o prolífico artista novamente dirigiu e atuou no maravilhoso Amores Imaginários. E, de novo, foi premiado em Cannes.

Seus dois filmes seguintes seguiram a mesma linha provocativa: Laurence Anyways e Tom na Fazenda. Assim como nos dois primeiros filmes, Dolan, gay assumido, aborda aqui, com muita propriedade e visão de esteta, esse universo no qual ele se sente bastante confortável.

Esse texto poderia perfeitamente gastar todas as suas linhas disponíveis para falar de cada um dos quatro primeiros filmes de Xavier Dolan, incluindo suas ótimas trilhas sonoras, mas o fim da pauta se aproxima e ainda não falei de Mommy que mantém a tradição dos filmes do diretor, ganhando o prêmio do júri do último festival de Cannes, ou melhor, dividindo-o com o veteraníssimo Jean-Luc Godard. O rapaz não é fraco, não.

A primeira coisa que, logo de cara, chama a atenção do espectador é o formato da tela: quadrado, chamado 1:1,  como no instagram. E essa escolha mostra a coragem e a ousadia do jovem diretor, que dessa vez não atua no filme. A ideia é deixar o público com a sensação de falta de espaço, de desconforto.

Esse formato de tela não é exatamente uma novidade, já tendo sido usado no filme O Homem das Multidões, de 2013, dirigido por Cao Guimarães e 
Marcelo Gomes, com a mesma intenção de transmitir a sensação de aprisionamento.

O não ineditismo, entretanto, não tira os aplausos para Dolan, até porque ele utiliza-se de um recurso muito inteligente e criativo e que não foi sequer imaginado pela dupla de diretores brasileiros: em certo momento do filme, a tela se abre aos poucos para o formato tradicional, como pelo esforço das mãos do adolescente protagonista, mostrando, como belíssima metáfora visual, o sucesso na tentativa de ampliação dos horizontes e libertação das limitações impostas. É um daqueles momentos que merecem ser eternizados na história do cinema. E isso tudo vindo ainda por cima pelas mãos de um rapaz de 25 anos.

Impossível não comparar com outro gênio da sétima arte, também ele ator, diretor, produtor e roteirista. Mantidas as devidas proporções, falo de Orson Welles que com 26 anos, praticamente a mesma idade de Dolan, trouxe ao mundo Cidadão Kane, renovando para sempre a estética do cinema com ângulos de câmera ousados e exploração do campo.

A história do filme gira em torno de um trio disfuncional: Diane, uma mãe solteira desempregada; seu filho Steve, um adolescente de 15 anos hiperativo e com déficit de atenção agudo; e Kyla, a vizinha deprimida com problema de auto-afirmação presa num casamento monótono. Esse trio improvável é responsável pelo precário equilíbrio da situação dos personagens. 

Dá um prazer danado acompanhar o progresso da carreira do talentoso  Xavier Dolan, perceber que ele já era brilhante quando nos presentou com o seu primeiro filme e que, a cada obra, ele se aperfeiçoa ainda mais, atinge mais maturidade, beirando o sublime.  As suas inúmeras premiações ao redor do mundo lhe fazem merecida justiça.

Um filme excepcional para se admirar e refletir.

14.12.14

O PINTASSILGO

O Pintassilgo é uma espécie de saga contemporânea, quase como se, em vez de acompanharmos durante anos os infortúnios do seu protagonista, o pré-adolescente Theo Decker, envolvido com uma pintura roubada de valor inestimável, alongássemos as desventuras do também impúbere Holden Caulfield da obra máxima de J.D.Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio. Passamos apenas um fim de semana com o angustiado Holden pelas ruas de Nova Yorque, mas com Theo somos arrastados por anos numa espécie de limbo niilista.

Há diferenças cruciais entre os dois protagonistas. Se Holden virou ídolo de gerações de jovens pelo seu inconformismo e rebeldia, Theo é levado a um abatimento profundo quando vaga sem destino, arrastado pelas marés da fatalidade.

É pelas mãos da sua mãe (o destino) que é levado a um museu onde uma explosão terrorista lhe mata justamente a mãe nas primeiras páginas do livro. Dá para sentir o que virá a seguir nas palavras de Theo: “As coisas teriam sido melhores se ela estivesse viva. Mas minha mãe morreu quando eu era criança; e, embora tudo o que aconteceu comigo desde então seja exclusivamente culpa minha, quando a perdi também perdi de vista qualquer farol que poderia ter me conduzido a algum lugar mais feliz, a uma vida mais plena e agradável”.

E tudo que se segue a esse atentado é movido pelo roubo de uma obra valiosíssima do museu, exatamente o quadro que dá título ao romance. Todas as pessoas com quem Theo se envolve ao longo de vários anos são fugidias e escapam-lhe como água entre os dedos. Mortes sucessivas acontecem à sua volta, perdas físicas e emocionais, e ele permanece à margem, escapando dos vícios em álcool e jogo, destino do seu pai, mas envolvendo-se com todo tipo de drogas pesadíssimas, viciando-se em remédios, sempre à busca do oblívio e flertando com o irremediável. 

O Pintassilgo é a única chama de vida que ele possui, um quadro pintado em 1654 e o único sobrevivente de toda a obra do genial Carel Fabritius, aluno de Rembrandt, destruída no atelier do artista num incêndio que matou o próprio pintor, assim como a explosão do museu levou embora a única pessoa viva que Theo realmente amava. Tudo lhe é tomado e a única coisa que ele pode dizer que realmente possui não é de fato dele, mas roubado. E ele não pode dividir essa informação ou a beleza da obra com pessoa alguma.

Em outro paralelo entre Theo e Holden, dois adolescentes perdidos nas impiedosas ruas de Manhattan, parece até que Theo ouviu o último conselho de Holden na última linha do romance de Salinger: "Nunca conte nada a ninguém. Se você o fizer, mal acaba de contar e começa a sentir saudade de todo mundo". Theo sabe que o seu segredo é algo inconfessável e que pode custar-lhe a liberdade.

O Pintassilgo é o que faz com que ele não sucumba por completo ao destino de muitos niilistas extremos. Nos momentos de maior desespero basta que Theo contemple o quadro por alguns minutos para que o pássaro, sobrevivente de séculos, de dois incêndios e de várias mortes, o faça desejar viver. Um pássaro pintado mas com uma dignidade extrema, indiferente ao fato de estar preso por uma argola no pé.

Mas o livro é difícil de transpor. Longe de ser monótono, é talvez excessivamente caudaloso, recheado de digressões e descrições. Algumas vezes páginas e mais páginas são gastas para descrever uma sala ou narrar as sensações de uma viagem narcótica.

A luz no fim do túnel que pode ser a salvação de Theo ou a locomotiva que vai destruí-lo de vez, aparece na figura do seu praticamente único amigo, o também adolescente Bóris. Se esse fosse um livro sobre o russo Bóris, seria um relato solar, repleto de aventuras, música, vodka, mulheres loucas, assassinos perigosos, prostituição, tráfico de drogas e muito sexo, mas como é um livro sobre Theo, temos uma atmosfera oposta. Tudo é sombra e amargura. Em alguns momentos chega-se a ficar de saco cheio de Theo que parece que atrai desgraças para onde vai. Percebemos que Theo é um chato de galocha na primeira das 728 páginas e vamos ter que aguentar sua chatice até o fim. Ainda bem que Bóris aparece para dar um pouco de cor a esse rapaz perdido, nem que seja levando-o para porres espetaculares.

Há quem ache que a obra não mereceu o Pulitzer. Não me decidi ainda, mas fico feliz que Theo tenha finalmente encontrado a solução para os seus problemas. O Pintassilgo vai me levar adiante, e é isso que a arte faz, e tem tudo a ver com a frase da autora no final da obra: “No meio do nosso morrer, enquanto saímos do orgânico e afundamos ignominiosamente de volta nele, é uma glória e um privilégio amar o que a Morte não toca. Pois se desastre e esquecimento seguiram essa pintura através do tempo, o amor também o fez”.

5.12.14

RELATOS SELVAGENS

         
   Mais um filme argentino chega às nossas telas para reforçar a tradição de que o cinema feito pelos nossos hermanos consegue ser muito melhor do que o nosso. Utilizando-se de ótimos roteiros, diálogos naturais, excelente direção e uma linguagem de apelo universal, o cinema argentino dá sempre um show e nos faz perguntar por que não conseguimos fazer igual.

O filósofo Luiz Felipe Pondé, sempre atilado, aponta como uma das causas a nossa predileção pelas fórmulas fáceis e batidas: as comédias escrachadas, o amor neurótico e o “coitadismo” (coitado do pobre, do bandido, do drogado ou pobre é lindo, bandido é lindo, drogado é lindo), a chamada crítica social. A gente não corre o risco de ver essas baboseiras no cinema argentino, sempre muito mais maduro do que o nosso.

Relatos Selvagens, dirigido por Damián  Szifron,  é dividido em seis excelentes episódios e isso é raro nesse tipo de filme, nos quais costumamos ver alguns episódios bons e outros ruins, como na série I Love New York, I Love Paris e I Love Rio. No caso do último, talvez chame a atenção o fato de que, ao contrário dos seus predecessores, todos os episódios são ruins.

Para não ser injusto, não dá para não mencionar outros grandes filmes divididos em episódios, como Dolls, do diretor Takeshi Kitano, com suas três belas histórias retratadas com delicadeza tipicamente oriental; ou Contos de Nova Yorque, dirigido pelo trio Scorsese,  Coppola e Woody Allen; ou o belíssimo Eros, também de um trio de diretores de peso: Antonioni, Steven Soderbergh e Wong Kar-Wai.

O leitor deve estar se perguntando se o autor dessas mal traçadas vai passar o texto inteiro falando de outros filmes ou vai começar, afinal, a falar de Relatos Selvagens...Que bom que o leitor lembrou. O autor se empolgou e se desculpa.

A primeira história de Relatos Selvagens é quase uma vinhetona, já que precede os créditos. Em um avião todos os passageiros descobrem que conhecem a mesma pessoa e que todos a prejudicaram no passado. O episódio termina com o cinema inteiro em uma grande gargalhada de nervoso. Ah como a vingança pode ser doce. Mas é puro humor negro pois o subconsciente, esse intrometido pronto para estragar qualquer farra, sopra nos ouvidos a famosa frase de Confúcio: “Ao embarcar para uma vingança prepare duas covas” Duas?

E as histórias se sucedem. Uma garçonete vê a chance de se vingar do gângster que destruiu sua família. Afinal, um veneno de rato que está vencido é mais letal ou menos? Dois homens se desentendem numa estrada e o arranhão no verniz que nos separa da civilização para a barbárie logo mostra que o homem é mais do que o lobo do homem e a gente não consegue deixar de lembrar a célebre frase de Sartre: “O inferno são os outros”. Como um episódio tão simples pode ser tão brilhante? E, afinal porque ninguém pensou em filmar uma cena dessas antes?

O quarto episódio, no qual um pai rico tenta livrar o filho de ser preso pelo atropelamento de uma mulher grávida é um verdadeiro tratado de sociologia, ou melhor, de patologia social. A propósito desse episódio, Luiz Felipe Pondé aponta sabiamente: “as classes menos favorecidas sabem muito bem como manipular seus ‘ganhos’ no esquema de corrupção. Um cínico diria que a corrupção também pode ser inclusiva”.

O maior astro do cinema argentino, Ricardo Darin, não poderia estar de fora desse filme. No penúltimo episódio ele interpreta um homem em uma luta desigual contra um estado burocrático que ameaça fazer da sua vida uma tragédia kafkiana. A violência explode e nos faz lembrar Michael Douglas em Um Dia de Fúria.

Palmas redobradas, vivas e hurras para o último e unanimemente considerado melhor episódio dos seis, uma verdadeira torrente de emoções em torno de um casal no dia do casamento. Esse episódio certamente deve ter sido o que levou o cineasta Pedro Almodóvar a decidir produzir Relatos Selvagens já que todo o episódio do casamento é puro cinema almodovariano, inclusive com a montagem frenética e a excepcional trilha sonora a cargo do ótimo Gustavo Santaolalla, que já ganhou dois Oscars seguidos.

Anárquico, histérico, brilhante, surpreendente, divertido...Não é preciso economizar nos adjetivos. Relatos Selvagens merece todos.