19.4.20

PAI POR UM DIA











Pai, se eu fosse você por um dia
Começaria parando de fumar
Comprando uma bermuda nova
E me levando pra passear
Por um dia de pai, a gente curtiria
Eu e você, só os dois
Eu te mostraria quanta coisa pra falar a gente teria
Pensaríamos nos compromissos depois
Esqueceríamos
Seu celular desligaríamos, pegaríamos o carro ou o trem
E iríamos, só os dois, mais ninguém
Eu, se fosse você, aproveitaria e
Faria a mim umas perguntas sérias
Disfarçadas de bobagens, de curiosidades
Só para me conhecer melhor
Sem deixar eu perceber, me pegaria sem disfarces
Disfarces de filho e de pai que a gente costuma usar
Assim, faríamos para nós um programa de vida completo
Diante de nossos medos e
Saberíamos quantas vezes as brigas doeram tanto nos dois
Quantas vezes os castigos esconderam inseguranças suas
E me deixaria ver que pai também tem seu lado frágil
Seria o passeio mais pedagógico de nossas vidas
Não era para ser o super-homem, pai,
Era só não ser o vilão da história.


REMOVENDO A TATUAGEM


– “Então a culpa não foi minha?!”

Ela o disse em voz alta como para ter a confirmação de que estava livre de anos passados boiando num limbo de ignorância em relação à sua culpa pelo final daquela relação que ainda habitava, como uma espécie de zumbi, suas noites e madrugadas insones.

Então a culpa não foi sua!

Ficou tão acostumada a conviver com ela, como com uma espécie de tatuagem gravada no seu braço, uma âncora que a prendia ao fundo de um mar de águas paradas. 

De repente, sem a culpa a que se acostumou a dar bom dia e boa noite a cada dia e a cada noite, de repente o que seria da sua vida?

            Como se arrancassem a sua tatuagem-âncora deixando um buraco no lugar da culpa, o que colocar no lugar do buraco? O barco, livre da âncora, não saberia para onde navegar. 

Como preencher o espaço que ele deixou e por anos foi devidamente preenchido pela tatuagem da culpa, que se fixava em sua pele como uma anti-máscara de carnaval que nunca mais ela tirou e que, aparentemente, ninguém notou que estava ali, e que ela foi deixando ficar, por longos fevereiros, chuvosos abris, manhãs de setembros?

Agora estaria livre da angústia do toque do telefone. Em cada toque, a esperança de que fosse uma ligação dele, o coração disparando e o latejar da veia no pescoço. Nunca uma ligação dele. Ou melhor, houve duas, mas antes não houvesse porque havia sido algo puramente formal. Foram dois Natais e... 

“- Alô! Sou eu!”

Quantas palavras poderiam ter sido ditas em vez daquela economia terrível de sílabas: “Oi, quanto tempo, quanta saudade, ainda se lembra de mim? Tenho pensado tanto em você.” Mas, em vez disso, três simples palavras que, na falta de coisa melhor, ela bebeu como um vinho guardado por anos. Mas, apesar da saudade e tudo que não conseguiria resumir em mil páginas, restava algum orgulho misturado com a culpa já que, naquele tempo dos dois telefonemas natalinos, ainda tinha certeza de que foi a culpada.

O vinho da sua voz sabia a vinagre e ela o chamou pelo sobrenome, como já vira alguns amigos fazerem. Sentiu que assim estabelecia um distanciamento, mas isso soou falso. Não disse que rasgou suas fotos num acesso de desespero, que era aquilo ou rasgar o peito.

Naquele tempo dos dois telefonemas, ela ainda achava que foi a responsável pelo amor na lata de lixo, como pelas fotos na lixeira para onde também foram parar os cartões de aniversário e os postais de Paris em uma viagem em que ela não estava, mas que ele descrevia nos versos dos cartões o quanto fizera falta a sua presença em um passeio solitário ao lado do Sena.

“- Estou ligando para desejar Feliz Natal!”

Respirou fundo como a querer que o ar preenchesse um vazio imenso no seu peito onde antes havia uma massa informe da onipresente culpa, companheira tão permanente que muitas vezes ela até se esquecia da sua imanência.

Naquelas horinhas de sossego, como lembrava Guimarães Rosa, ela chegava a ser um pouquinho feliz, até ligava o som, punha um disco de Cássia Eller e chegava mesmo a dançar sozinha no apartamento tomando uma taça de Campari.

Mas, de vez em quando, Ney cantava Cartola e punha tudo a perder e a massa em seu peito a fazia consciente de que ainda continuava ali.

Respirou mais fundo ainda. Não imaginava que cabia tanto ar naquele buraco. Abriu as cortinas e sentiu-se como Cabíria reparando em uma nova e estranha luz a ferir-lhe os olhos. A luz iria varrer as sombras escondidas nos desvãos do assoalho, sob os móveis, revelando restos minúsculos e flutuantes de solidão.

A cidade amanhecia e ela sentia que estava ficando pronta para o resto da sua vida.

O dragão com quem dividia o apartamento saiu de vez. Precisava de mais ar e o dragão lhe deixava apenas o mínimo para sua sobrevivência. De repente, havia mais espaço para ela. Sobrava-lhe o apartamento inteiro, a cidade inteira, o mundo inteiro.

Afinal, após tanto tempo, descobriu as razões que ele não lhe revelara, então, sobre fim do romance. As razões chegaram através de uma carta dele a uma amiga que guardara esse tempo todo o segredo. Grandessíssima amiga! E as razões mesquinhas contidas ali mostravam a covardia dele, deixando-a tanto tempo a se culpar. Ao preservá-la da verdade, ele se mantivera protegido pelas memórias felizes, atirando-a aos chacais da dúvida e da culpa.

Então foi por uma razão tão banal! Ela chegou a sorrir, perplexa. Nada de incompatibilidades intelectuais ou conflitos de visões de mundo ou desvios de condutas ou traições de sentimentos, mas uma mera e simples banalidade.

Não poderia se deixar afundar por uma coisa assim. Sentia-se grande demais para aquilo.

Depois que o dragão e os chacais subitamente desapareceram, a selva da cidade deixava de ser ameaça e se transformava em uma sedutora promessa.

- Essa pele é nova, cidade. Arranhe devagar!

O ÓDIO PERDIDO


Pela terceira vez ela o encarava com aquele olhar de desdém. Ele não aguentava mais aquilo. Quanto tempo ela achava que ele suportaria? Três anos juntos e infinitas brigas, discussões, humilhações públicas. Era como um concurso, como um teste, cada um explorando ao máximo os limites do outro, testando sempre.

Experimentaram tudo juntos, as delícias intensas de serem como um só parecia ter ocorrido em um tempo lendário, ou fora um conto de fadas ou uma piada de mau gosto. Viveram também a lama, o lodo da relação, as drogas, o álcool...trocaram segredos íntimos, revelações...Tudo!

 Afinal, eram um só.

 Mas naquela noite ela estava usando a arma mais terrível, reservada para momentos extremos. Ele sentia um misto de raiva, desprezo e desejo. Segurou-a pelo pulso, forte. Ela levantou o queixo, jogou o cabelo para trás...e aquele olhar...Ele jogou-a no sofá e ela ainda exibia o mesmo sorriso, cínico, superior, cada vez mais venenosa.

Ela, cada vez mais dona da situação. Quem conseguiria dobrá-la, vencê-la?

Ele decidiu que naquela noite, naquela hora, pelo menos por um minuto ele seria capaz de derrotá-la. Meio envolvido por essa tênue gana de macho ferido ele se moveu. Seguro finalmente. Mas ela não o sabia ainda.

O sorriso ainda continuava ali, o desprezo também. Ela usava toda a munição.

Ele avançava como um gato, como uma cascavel e, sem que ela esperasse — porque ele nunca o fizera antes —, rasgou-lhe a blusa com violência e os seios dela saltaram firmes, sob o tecido.

 A visão o provocou mais. Era como um selo, um sinal, um símbolo. O sorriso agora já era forçado, o pudor, atávico. Surpresa mal disfarçada. Mas ela bem que tentou. Fêmea acuada, tentou... A munição já fora gasta? Ele ainda não sabia.

 Estava determinado. Sentou-se entre as pernas dela e com ódio e desejo no olhar, enfiou as mãos sob o seu vestido, tocando-lhe as coxas sem desviar os olhos do seu olhar.

Se ela resistisse, era como capitular, se se entregasse; como dar-se por vencida. A dúvida estava tão presente quanto a faísca quase morta do desejo que, súbita e sorrateiramente, parecia reacender. Ele seria capaz de fazer aquele desejo reviver? A umidade no baixo ventre parecia gritar que sim.

 Mas na mente, ou seria no peito, a raiva, os remorsos e o desejo de castigá-la pareciam ainda ser fortes. Ele era forte. Sua barba de alguns dias e o cheiro de álcool impregnado por todo o seu corpo tornavam sua figura um misto de mendigo, de homem do mundo, marinheiro, os desejos de moça dela.

Quanto tempo?

Ela ainda se lembrava de tudo, quanto se rastejara, quanto se humilhara, implorara carinho. Aquele era o homem que matara sua inocência. Aquela mulher agora era ela. Decidira, após esse tempo todo, vingar-se dele, mas a mão, alojada agora no encontro das suas pernas, era onipotente, retirando-lhe as energias que ela precisava para cumprir a missão de vingar-se dele, de resistir a ele.

 Aquela umidade teimava em contradizer o olhar de des-pre-zo.

 Ele baixou o rosto e mordeu delicadamente (queria ser rude, foi suave), um dos bicos de um dos seios. Percebendo-se suave mordeu mais forte. Queria ser rude. O bico do seio crescia dentro da sua boca. Ele desceu com a língua pela barriga até o umbigo, mergulhou devagar fazendo voltas, a barriga dela agora descia e subia, ela já arfava baixinho, tentava controlar-se, mas o sangue já inundava o seu rosto e todo o resto.

A mão dela queria acariciar os cabelos desse homem, mas ela resistiu no meio do caminho. Bravamente, ela lutava contra uma maré, um oceano de carne que pulsava.

Ele levou uma das mãos à braguilha e, apressadamente, sem jeito ou habilidade, tirou seu pedaço mais quente e resistente.

Ela olhou, misto de assustada, curiosa e desejo.

Ele avançou como um huno para dentro dela. Agora que ele sabia que havia toda aquela umidade ali, ele parecia ter um convite formal.

 Há eras, parecia ter ocorrido em outra vida, tal a distância que eles se impuseram, ela conhecia essa sensação. Lembrava-se agora. Fora a conquista, o prêmio que se permitira receber. Foi quando se concebera mulher.

 Mas não se tornara mulher quando ele destruiu sua inocência fazendo-a rastejar-se? Ou havia se tornado mulher antes?

 Aquele homem arremessava-se agora com uma fúria primal para dentro dela. Ela se lembrava. Ele se movia cada vez mais forte, cada vez mais bárbaro. A raiva e o desejo. O desejo, a raiva e o desejo. A raiva-desejo!

Ela se lembrava de algo parecido, mas nunca tão forte.

Ele decidira que ela viveria o maior prazer que já sentira na vida. Ela saberia como ele podia ser bom e como ela tinha sido estúpida de tê-lo afastado de si, atirando-o na terrível miséria de não ter a quem se dar. Ele iria destruir suas barreiras. Quanto mais forçava, mais elas iam caindo. Uma por uma. A raiva então parecia tão distante. Do que era mesmo que ela o culpava?

E o desejo em ondas. Aquelas vagas titânicas de desejo.

Ele não gozaria jamais, Ela jamais deixaria de gozar. Ele ainda tinha bem presente o ódio que havia entre os dois. Aquela conjunção era sua única arma contra tanto veneno. Ele não sabia ainda que tudo que agora restava daquela mulher-fortaleza era a caverna escura e úmida por onde a penetrava como um aríete em brasa. Tudo que sobrava dela eram ruínas de uma casamata onde ele, totem em chamas, saboreava sua vingança.

Ela estava toda entregue, acariciava-o, cruzava as pernas nas costas dele sobre o sofá, posição difícil, ela gritava, uma muralha inteiramente desabada de prazer.

Ele arremessava como um selvagem, um cruzado, um alucinado, a sua mulher, a sua mula, sua... Ele não ousava ainda pensar. Ele cada vez mais excitado, silencioso, nem um gemido, o suor banhava todas as partes, as mais secretas. Ele não falava, não gritava, só a respiração pesada, quase um arfar murmurado. Ele calado. Ele, concentrado, não gozaria jamais. Estava reservado para ela como uma overdose.

 Quanto tempo seria necessário, horas, dias, anos? Mais?

 A mão dele descia agora, suave, pelo rosto dela, pelos seios. Ele agarrara um seio. Agora seria dor? Ele a esbofeteava! Esbofeteava forte! Nunca fizera aquilo antes. Por que nunca fizera aquilo antes?

Ela nunca se sentiu tão dominada pelos sentidos. Cada bofetada dele era como uma rajada de espasmos que lhe percorriam todos os milímetros da pele, era calor e era cheiro, o som de cada tapa nas faces, na boca, a cabeça voltando-se para os dois lados, para um lado e para o outro, os cabelos selvagemente desalinhados, molhados de suor, grudavam em partes do rosto dela escondendo do olhar dele o olhar dela. Ela nunca antes se sentira tão liberta da vergonha. Sentia dor e gostava. A dor-prazer!

De onde vinha tudo aquilo? Daquele homem? Daquela mulher? Eram desconhecidos. Anos juntos e não se sabiam. Quanto mais ela gemia alto, mais ele se calava e, silenciosamente, arremessava-se, sequer a se permitir um único som.

Do que ela o culpava?

Do que ele a culpava?

Então, finalmente, quando não havia mais como resistir, ele, o homem, entregou-se a ela. Desabou num grito imenso. Um imenso e contido grito apenas e todo um mundo veio abaixo. Bastava aquele grito e todo o mundo não seria suficiente para restaurar o seu ódio perdido, esfacelado em meio ao jorro de vida com que ele a inundara.

ENTRE NÓS

       O primeiro de nós ligou a lâmpada do quarto enquanto os restos das sombras da casa, silenciosamente deixavam-se banhar pela tênue luminosidade de uma lua quase nova, uma escuridão violada também pelo brilho do vapor de mercúrio da lâmpada do outro lado da rua, pouco de luz que conseguia atravessar o mar de mariposas enlouquecidas que se debatiam, ferindo as asas, contra o globo imundo do alto do poste. Com a casa semi-iluminada pelo luar e o mercúrio deslizando até a soleira da porta, a lâmpada acesa naquele quarto revelou sua fluorescente redundância.


        A segunda de nós trazia no corpo um aroma novo de sândalo que impregnou por muito tempo os lençóis do quarto que precisava de uma limpeza. Felizmente, era noite e ela, a segunda de nós, não reparou na fina camada de poeira que aniversariava pelos cantos. O aroma era inebriante e ninguém prestou atenção na longínqua nota ácida de naftalina do quarto. A segunda de nós espreguiçou-se como uma felina doméstica que se divertia maltratando ratinhos. O pescoço é delicado e os dentes pequenos e afiados carregam doses sutis de veneno em cada gota de suor também chamado de sândalo. A segunda de nós sorri, displicentemente alta. Ela bebeu demais? Os outros dois de nós não sabiam. Isso poderia fazer parte do seu jogo.
           
O terceiro de nós não deixaria cheiros nos móveis. Habitava longe daquele logradouro voraz repleto de poeira e, agora, sândalo. Era novo demais para estar entre dois de nós, há bem pouco chegara aos 18. Mas, se aquele nem mesmo era seu caminho para casa, por que estava ali, marcando sua presença discreta entre os outros dois de nós, se não havia vínculos cronológicos ou geográficos que os ligassem? Que tanto de mel havia naquela casa onde a poeira de um e o perfume da outra poderiam ser como um imã para incautos? Uma teia para arrebentar frágeis asas? Ele tem as calças jeans rasgadas nos joelhos e não fuma. Não se importa se fumem, se bebam ou se chorem. Não se importa com nada. Ainda não tem porque se importar. Quiséramos que ele nunca precisasse. A pele do seu rosto ainda não tem vestígios de uma futura barba, mas a cor e a textura exatas de um pêssego amadurecendo. O olhar é um lago límpido cercado de cílios longos. Se houvesse algum tipo de justiça na terra, o terceiro de nós a mereceria. E mais ninguém.

O primeiro de nós julga-se um bocado sábio e já um pouco sujo, como as meias que guarda no fundo da cômoda e mereciam mais atenção. O primeiro de nós não sabe ainda que há muita lama e espinhos no caminho a trilhar e que há selvas de perigos em algum lugar adiante. Só está tentado evitar, o mais tempo que pode, atravessar esse charco. Sabe que não conseguirá evitar por muito tempo sujar as mãos, ferir a alma, machucar e ser machucado. Não é mais adolescente, com quase 30, e não se pode enganar as sombras por muito tempo antes de queimar as asas contra o mercúrio do falso luar. Já há nódoas na barra da sua vida. O primeiro de nós não conseguirá evitar.
           
Ela já ligara a música e iniciara a dança que usava nesses rituais particulares. Dire Straits foi o que escolheu, ou talvez fosse o que estivesse mais à mão. A agulha do aparelho de som fez o ruído característico do contato com o disco de vinil. Estávamos ainda no tempo do vinil. Olhou pelos cantos dos olhos, divisando os limites do território que dispunha para a atuação. Aquela era uma das suas qualidades menos evidentes, menos valorizadas, mas a mais apreciada pelos que, mesmo sem perceber, se admiravam com o seu domínio do espaço periférico. Ela comandava a cena como uma primeira bailarina. O balé da mariposa fêmea. A segunda de nós rodava.

O mais moço de nós observava, silencioso, os gestos do primeiro e da segunda de nós. Os seus eram movimentos imperceptíveis como os de um camundongo hipnotizado por duas serpentes. O moço dos longos cílios não sabia bem o que fazer, que papel executar, mas não parecia preocupado com isso já que não lhe cabia o costume de vítima nem combinava o figurino de predador. Sabia, intimamente, que era impossível que não cuidassem dele como de um cristal que se pode partir em pedaços, permanentemente a um passo do irremediável. O colchão sobre o tapete no chão pareceu um lugar seguro para proteger-se de uma queda fatal. Quem diria que aquele primeiro movimento rumo ao conforto do colchão partiria exatamente dele?

            O primeiro de nós era o dono da casa e da motocicleta em que os três chegaram do bar, ele pilotando, a segunda de nós abraçando-o, envolta pelos braços do menino dos olhos d’água. Ele, anfitrião, perguntou se os outros tinham fome. Cada um escolhera uma fruta diferente. Enquanto ela dançava com a sensualidade exata que o papel pedia, o primeiro de nós mordia uma maçã, evitando os olhos do rapaz. De algum modo, os rasgões do tecido nos joelhos daquela sua calça jeans pareciam-lhe dolorosos. Ela desfrutava de um cacho de uvas, sorria, dançava, reivindicava olhares. Ele sentou-se longe do rapaz com pele de pêssego e sumo de morangos nos cantos dos lábios. Uma língua, e já não havia mais vermelhos por ali. Seus olhos eram atraídos tanto pela imobilidade e silêncio dele quanto pelos movimentos ritmados da segunda de nós.

Seu vestido delineava as curvas de pernas esguias. Que papéis lhe caberiam naquele trio? Não se importava já que qualquer papel teria dela um desempenho não mais, não menos, do que perfeito. Àquela altura da noite, das frutas e do disco, somente dois dos três corpos já estavam no colchão. A noite ainda tardava a amanhecer e havia um espaço reservado para ela entre o primeiro e o terceiro de nós.

Mas e aquela lâmpada? Alguém, por favor, o alertasse de que havia luz demais naquele quarto. Descobriram formas de, rindo, disfarçar a ausência de espontaneidade quando acabaram as frutas. Muita cerveja os ajudara a chegar até ali, mas não havia mais cerveja e se queriam aproveitar o efeito que ela lhes causara, não poderiam esperar muito mais. Em breve, a alvorada desfaria o mistério, as mariposas estariam arrebentadas sob o poste, em breve acabaria o disco do Dire Srtaits e aquela lâmpada daquele quarto não tinha qualquer razão para estar acessa.

Finalmente, ela já não dançava mais e não eram somente dois os corpos no colchão. Mas eles ainda não haviam iniciado o balé das mãos que ditariam os rumos a seguir, que abririam os caminhos que não deixariam marcas visíveis para outras trilharem. Cada uma daquelas mãos teria um valioso papel a desempenhar. Precisávamos apenas de um pouco menos de luz.  Até que houve a mágica e a luz, subitamente, apagou-se. Sozinha! Então haveria esperança para as mariposas daquele quarto.

            Foi quando o menino de longos cílios, aparentemente caído numa teia de poeira e sândalo, disse aquela que seria a frase que deixaria os outros dois de nós certos de que ele não precisava de fato da proteção, seu cristal não se partiria fácil e, pelo visto, ele saberia aonde chegar se não o cegassem com a luz que cega as mariposas. A luz apagou-se sozinha e ele foi o dono das únicas palavras que aqui se registra, já que, entre todas, foram as únicas que jamais foram esquecidas.

            — Sua luz é ensinada?