5.11.13

HOMOSSEXUAIS: OS NEGROS DO MUNDO


O título acima é uma provocação. É uma referência à famosa canção de John Lennon: “Woman is the nigger of the Word”. A melhor tradução para nigger não seria exatamente negro. Em inglês a palavra tem uma carga de preconceito muito maior.

Não é sobre negros que se tratará aqui, mas sobre homossexuais. Recentemente, li um livro precioso do escritor Tom Ambrose: “Herois e exílios. Ícones gays através dos tempos”. Recomendo a quem deseja se aprofundar no tema.

Ao longo das civilizações, mais precisamente a partir da Idade Média, a perseguição contra os homossexuais tornou-se uma constante e eles foram vítimas preferenciais tanto dos regimes totalitários quanto dos mais fervorosos puritanos. O horror aos homossexuais é disseminado pelo cristianismo e pelo islamismo, pelo comunismo e nazismo e também pelos que combatiam tais regimes. Se havia alguma coisa que unia essas ideologias e religiões tão contrastantes e com tantos ódios entre si, era o ódio comum aos gays.

A grande ironia em todos os casos é que essa perseguição esconde no íntimo um profundo desejo reprimido. Sigmund Freud já escreveu sobre o “retorno do recalcado”, a forma como os desejos reprimidos afloram em forma de ódio ou destruição do objeto do próprio desejo. Nas palavras de Tom Ambrose, um dos problemas enfrentados pelos homossexuais é a fascinação mórbida que suas vidas despertam nos heterossexuais com uma obsessão pela mecânica dos seus atos e o não interesse pelo seu conteúdo emocional.

Existe farto material que estuda as reações fisiológicas e emocionais de heterossexuais homofóbicos diante da exibição de vídeos de sexo gay. Um estudo clássico foi desenvolvido nos Estados Unidos envolvendo dois grupos de estudantes heterossexuais. De um lado, os que odiavam gays; de outro, os não-homofóbicos. Diante da exibição de filmes com conteúdo homoerótico, somente os homofóbicos tiveram ereção e aumento dos batimentos cardíacos (os voluntários tinham eletrodos conectados nessas partes do corpo).

O escritor ativista João Silvério Trevisan analisa no seu livro “Seis Balas num Buraco Só” que todo o medo que alguns homens heterossexuais têm dos gays está muito ligado a um pavor inconsciente da própria castração, algo que tem relação com as figuras parentais, quando o filho desenvolve pelo pai (macho alfa protetor), uma relação ambígua, ao mesmo tempo de admiração e de ternura recalcada. Cria-se uma dissociação de sentimentos devido ao medo do pai como objeto de afeto da mãe e seu concorrente mais forte que simbolicamente pode vir a castrá-lo.

O casamento heterossexual, nas palavras da psicanalista Melanie Klein, facilita a transferência desses papéis onde, em grande número de casos, a esposa acaba assumindo o papel de mãe do seu marido, numa refinada, camuflada, e mesmo sublimada, vivência do tabu do incesto.

O sexo entre homens é visto como um risco para a virilidade masculina e, nesse sentido, a sociedade machista reproduz uma imagem parcial da condição dos homossexuais, disseminando o estereótipo do gay afeminado quando não há uma necessária relação entre ser homossexual e ser afeminado. Inclusive a História registra (mas não se divulga amplamente) grandes generais, comandantes de tropas ferocíssimas, como Ricardo Coração de Leão e Alexandre o Grande, imperadores romanos como Adriano e Julio César, entre tantos outros e ídolos símbolos da masculinidade e que tinham amantes do mesmo sexo, como Rock Hudson, Rodolfo Valentino, Marlon Brando e tantos outros.

Na era clássica Grega havia outra visão da homossexualidade, como registra fartamente a história sobre o amor entre iguais como o temível batalhão sagrado tebano, formado por guerreiros amantes que lutavam lado a lado impondo terror nas batalhas.

Mas a partir do avanço do cristianismo em Roma, quando a religião tornou-se oficial a partir da conversão do imperador Constantino e do édito do imperador Teodósio, a perseguição aos homossexuais passou a ocupar o lugar da perseguição que os próprios cristãos sofriam. Eles, que foram as vítimas, passaram a algozes.

Os registros da perseguição cristã mostram que o horror ao sexo entre homens chegava ao requinte de condenar à morte até mesmo aqueles homens que sofreram violência sexual. Se os violentados não provassem que gritaram por socorro, teriam o mesmo destino dos violadores: a morte.

A hipocrisia sempre reinou no âmago da Igreja Católica com inúmeros casos de homossexualidade entre padres, bispos e até papas. O papa Julio III era reconhecidamente homossexual e presidiu o Conselho de Trento no qual se condenou com veemência a sodomia sendo que era público o seu relacionamento amoroso com um protegido de 15 anos, Inocenzo, que ele tornou cardeal.

Na igreja anglicana, a repressão não era menor do que na católica. Na Inglaterra vitoriana, não somente a homossexualidade era proibida e passível de prisão por trabalhos forçados, como aconteceu com o escritor Oscar Wilde, mas mesmo a masturbação mútua de dois homens adultos e solteiros no interior dos seus próprios lares era um ato criminoso. 

Nos Estados Unidos, ex-colônia britânica, havia pena de morte para os homossexuais. Somente no século XVII, Thomas Jefferson conseguiu convencer o governo da Virgínia a substituir a pena de morte pela castração. Ainda nos Estados Unidos, nas décadas de 1940 e 1950, a era de terror do macartismo, no auge da guerra fria, quando se temia o comunismo como se teme o demônio, o governo americano perseguia os gays com negativa de emprego, demissões e até prisões.

Já na Rússia, na época czarista havia grande tolerância à homossexualidade ao ponto de que vários nobres eram abertamente gays, mas essa tolerância não se limitava à aristocracia pois mesmo entre os camponeses, vicejava a seita skoptsy em que a regra era que os jovens amantes herdassem os bens dos mais velhos e os transmitissem aos amantes seguintes. O político Vladimir Nabokov, pai do escritor homônimo, publicou artigo argumentando que o Estado não deveria intervir em relacionamentos privados. A igreja ortodoxa russa também não perseguia os gays naquela época.

Por incrível que pareça os mais ferrenhos homofóbicos eram exatamente os intelectuais Marx e Engels, que condenavam reiteradamente as relações gays apesar do propalado compromisso com o “amor fraternal socialista”. Engels escreveu que detestava a “abominável prática da sodomia”. Para ele, se um trabalhador fosse homossexual, a culpa seria do recrutamento e da corrupção por elementos da desprezível burguesia. 

Com a ascensão de Stálin, cresceu a perseguição soviética aos gays e a homossexualidade se tornou comparável ao nazismo. Ser homossexual na Rússia comunista era equivalente a ser dissidente político e inúmeros foram deportados para as prisões siberianos para trabalhos forçados e uma morte lenta. A histeria contra os gays fundava-se numa ênfase do governo à urgente necessidade de aumento populacional para habitar a imensa Rússia, gerar alimento e soldados para as guerras.

Não precisamos atravessar o mundo para verificar como o comunismo odeia os gays. Aqui perto de nós, em Cuba, os homossexuais continuam a ser discriminados, como relatou o escritor Reinaldo Arenas em seu famoso livro Antes que Anoiteça, adaptado para o cinema. Arenas, que morreu após fugir para os EUA, escreveu que Cuba possui as piores prisões do mundo, sendo que dentre elas, as piores são as dos dissidentes políticos. Pois bem, num nível inferior ainda em relação a esses horríveis cárceres, estão os destinados aos prisioneiros homossexuais.

A campanha nazista contra os gays na Alemanha de Hitler não se limitava às pessoas, mas também às ideias. Milhões de documentos e décadas de importantes estudos sobre o comportamento sexual foram destruídos quando os nazistas invadiram o renomado Instituto de Ciências Sexuais de Berlim e saquearam sua valiosíssima coleção de mais de 12 mil livros e mais de 35 mil fotografias. Tudo foi queimado em uma gigantesca fogueira junto com milhares de outras obras confiscadas.

Na Alemanha nazista mais de 100 mil homens foram presos apenas pela suspeita de ser homossexuais e grande parte foi enviada para os campos de concentração onde a morte era certa. Para esses homossexuais, marcados com o triângulo rosa, os trabalhos eram piores do que aqueles destinados aos judeus, ciganos ou comunistas. Ser homossexual em um campo de concentração nazista era das condições mais humilhantes e eles eram vítimas preferenciais de castrações e das terríveis experiências médicas.


Atualmente, no mundo inteiro, há pouquíssimos monumentos aos gays mortos no holocausto, diferentemente dos monumentos aos judeus. O filme Bent retrata esse tempo de terror para os homossexuais alemães.

Enquanto os comunistas perseguiam os homossexuais, comparando-os a nazistas, os nazistas faziam o mesmo comparando-os aos comunistas. Aparentemente, este era um dos poucos pontos em que as duas doutrinas concordavam.

Após a queda do nazismo, muitos gays presos continuaram encarcerados, obrigados a cumprir o restante da pena, uma vez que o parágrafo 175 do Código Penal Nazista continuou vigorando. Em 1957, passados 12 anos do fim da guerra, não somente as leis anti-homossexuais foram mantidas como ainda tentaram fazer que as penas fossem dobradas. Somente em 1969, quase 25 anos após a queda do nazismo, o temível parágrafo 175 foi removido e as poucas vítimas restantes puderam contar sua história de terror.

Pesquisa da Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Trans e Intersexo mostra que 76 países ainda perseguem pessoas com base em sua orientação sexual – sete dos quais punem os atos homossexuais com a morte. No Irã, desde a ascensão dos aiatolás, mais de 4 mil gays e lésbicas foram executados, na maioria das vezes de modo violento. Durante dez anos, o Irã matou mais homossexuais do que a Santa Inquisição no seu auge persecutório na Europa.

Para efeito de provas, são aceitas na Justiça iraniana confissões sob tortura e aos acusados são negados advogados. A perseguição no Irã se estende às salas de bate papo na internet onde são criados flagrantes. Os clérigos, nas suas recomendações escritas, descrevem nos mínimos detalhes horripilantes como deviam ser mortos os gays. Todas as prescrições terminavam com a mesma frase: louvado seja Deus.

Não bastasse o risco real de serem mortos, quando muitos gays fogem do Irã para outros países, em muitos deles não lhes é concedido asilo político. Mesmo na liberal Holanda, durante anos os gays iranianos tiveram o pedido de asilo negado e eles foram deportados para o Irã para uma morte certa. Só em 2006, após pressão pública, a Holanda mudou a prática.

Na Arábia Saudita, os homens que têm relações sexuais com outros homens só são considerados homossexuais se exercerem o papel de passivo. Ao ativo da relação atribui-se uma simples satisfação de um desejo físico.

Em diversos países católicos da África os gays são perseguidos e mortos. Em Uganda, pastores evangélicos norte-americanos têm exortado os fiéis a apoiar uma lei que pune os homossexuais com a pena de morte. O pastor evangélico Scott Lively diz considerar bons os motivos que levaram à criação do projeto de lei de Uganda. “Querem proteger a sociedade deles de ser homossexualizada. O mesmo está acontecendo em outros países. Estão preservando a liberdade religiosa e os valores da família” avalia.

Na Nigéria, com 99% da população entre católicos e muçulmanos, a homossexualidade é ilegal e a pena chega a 14 anos de prisão. No norte islâmico as relações homossexuais são punidas com 100 chibatadas até a morte por apedrejamento. Em 2007, o governo nigeriano copiou Uganda e aprovou uma lei estabelecendo prisão para quem tolera, incita, testemunha, auxilia ou consuma um casamento entre pessoas do mesmo sexo e proíbe qualquer demonstração de afeto entre gays. Isto mostra que o ódio aos gays une católicos, evangélicos e muçulmanos.

A escritora lésbica Patricia Highsmith declarou, referindo-se à literatura do escritor russo Dostoievsky: “A história do Cristianismo é mais excitante, perigosa e terrível do que qualquer história de assassinato que ele já escreveu”.

Encerro com Fernando Pessoa, tentando, mesmo que não consiga, deixar alguma poesia nesse texto tão pesado: “O amor é que é essencial / O sexo é só um acidente / Pode ser igual / Ou diferente”. 

1.11.13

E ACABOU A FESTA! ACABOU A MOSTRA!


Acabou a 37ª Mostra de Cinema em São Paulo e este ano cravei 41 filmes. Dez abaixo do meu recorde de anos atrás. Foi difícil, na verdade, impossível, entrar no site oficial da Mostra no último dia para saber quais os filmes vencedores da crítica e do público.

Finalmente, quando consegui a informação, fiquei feliz porque dois dos filmes de que mais gostei foram os vencedores. Isso me deixou aliviado porque em muitas Mostras, os vencedores foram filmes que não consegui ver ou dos quais não gostei. Pois bem, o júri deu o 1º lugar para o filme do Cazaquistão: Lição de Harmonia e a menção honrosa para o filme mexicano La Jaula de Oro. E a crítica fez o oposto dando para o filme do Cazaquistão o prêmio especial e para o mexicano o melhor filme. Nada mau quando se concorria com mais de 300.

No meu último dia em São Paulo, encontrei novamente a velhinha que estava no meu hotel. Desta vez não consegui escapar dela que me abduziu para saber minha opinião sobre os filmes e o número dos que assisti. Quando disse o número recebi uma bronca: “Ahh, mas você não sabe escolher. O que você fez que só viu 41? Eu vi 64!” Quando eu disse-lhe que, muitas vezes, tive que deixar de ver alguns filmes para encontrar alguns amigos ela fez outro discurso: “Não, não, não! Não se pode fazer isso. Você tem que fazer como eu, ficar incógnito. Não tem nada que encontrar com amigos, deixe pra fazer isso no resto do ano”

Bem, ela tem mais de 70 anos, é aposentada e já tem mais experiência nessa logística da Mostra do que eu que só frequento há 11 anos. Além disso comprou o passaporte integral que dá direito a ver quantos filmes quiser. Fiquei me sentindo um cocozinho diante da velhinha. Depois lembrei que ela contou que deixou vários filmes pela metade, então não sei se na contabilidade dela os 64 filmes são somente os completos ou se ela inclui na conta os que viu só a primeira meia hora.

Após meu primeiro post, onde comentei 14 filmes, e o segundo, onde falei sobre outros 12, aqui vai o último texto sobre os últimos 15 filmes a que assisti.


CANTOS - Um documentário cubano que me emocionou pela sua singeleza e pela forte mensagem. O diretor estava na sala e fiz questão de parabeniza-lo ao final. São quatro histórias diferentes que se passam em Cuba e que têm em comum a busca de pessoas pobres por um pouco de dignidade e que não conseguem conduzir os próprios destinos em decorrência da pobreza da ilha dos Castro e da repressão cruel à liberdade de opinião. A ideologia moribunda comunista faz com que essas pessoas, para sobreviver e se comunicar, flertem com a ilegalidade. Como diz a sinopse, “um olhar poético sobre uma sociedade à deriva, distante de suas antigas utopias”. 

A frase final de um blogueiro é como um tapa na cara e que reverbera na memória por muito tempo. Fique dias pensando naquilo. Ele relata como é difícil para alguém usar a internet em Cuba que além de ser lenta e cara, é vigiada pelo governo, então essas pessoas que querem denunciar a violência contra direitos humanos têm que suportar toda sorte de dificuldades e riscos de prisão, sendo que muitos foram mesmo presos. Um homem diz, emocionadíssimo que após tantas dificuldades ele viu pela primeira vez um texto dele ser publicado na Espanha, viu pela internet e naquele momento ele se lembrou de todas as dificuldades por que passou, o ensino precário na escola, a luta para se manter lúcido na prisão e de repente ele viu que sua voz era ouvida. Nesse momento ele disse que chorou muito em frente do computador. Então ele se emociona mesmo e estende a mão para que a câmera pare de filmá-lo. Há um corte e vemos esse homem de perfil olhando ao longe pela janela. Ele diz a frase cortante: “Hoje eu tenho mais medo de perder a internet do que perder a vida”. 

Ficamos com essa frase e tantas imagens que ela evoca sobre pessoas que aprenderam que existe uma liberdade de pensamento possível e de que há gente fora de Cuba que se interessa pelas suas terríveis histórias de vida. É como se, após muito tempo nas trevas, alguém experimentasse a beleza da luz ou como se alguém vivesse na prisão, metafórica ou real e subitamente vislumbrasse a liberdade. Para alguém que passou por isso, perder a liberdade, no caso, a internet, é pior mesmo do que perder a vida. Fiquei pensando naquelas pessoas que ficam horas em frente a uma internet veloz e barata e usam esse tempo em bobagens e banalidades irrelevantes. Enquanto isso, alguém diz que prefere perder a vida a perder a internet porque esta é sinônimo de liberdade. Quantos contrastes....Depois não querem que eu me irrite quando vejo uns cretinos defendendo o regime da ditadura de Cuba. Queria que esses intelectuais e artistas de miolo mole fosse viver lá para depois falar das suas experiências.

TOM NA FAZENDA - Esse foi um dos filmes que eu mais ansiava ver na Mostra, pois há quatro anos vejo filmes do diretor Xavier Dolan nas Mostras e sempre são muito bons. O primeiro: Eu Matei a Minha Mãe; o segundo: Os Amores Imaginários; e o terceiro: Lawrence Anyways, assim como este último, são consagrados e Dolan atua em três deles com temas sempre em torno das dores dos amores desfeitos ou das dificuldades da homossexualidade. O diretor, canadense tem hoje 24 anos, é gay assumido e seus filmes sempre se passam no Canadá e são falados em francês. O seu primeiro filme foi premiado em Cannes e indicado pelo Canadá para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro. O detalhe é que Dolan além de atuar, dirige e roteiriza seus filmes, o primeiro quando ainda tinha 19 anos.

Aqui ele faz o papel título, Tom, um jovem que viaja ao interior rural do Canadá para o funeral do namorado de 25 anos quando percebe que nem a mãe nem o irmão do namorado sabia quem ele era ou que o morto era gay. O irmão do morto demonstra ser, apesar de belíssimo, um tipo violento e machista que enreda o visitante numa teia doentia e a mãe do jovem passa a fazer parte dessa intrincada relação de dominação e obsessão. Aos poucos, Tom descobre que está numa armadilha da qual não tem certeza se pode ou se quer sair, mesmo após muita violência física, pois envolve muitos aspectos psicológicos que são fantasmas dele próprio. O diretor foi extremamente corajoso em se colocar nesse papel que não tem nada de edificante. Acredito que os gays engajados devam querer crucificar o diretor. Eu aplaudo seu cinema, como sempre.

Xavier Dolan sabe escolher seus atores pelo talento e pela beleza masculina e sabe muito bem escolher as músicas dos seus filmes, como fica claro na canção Bang Bang, ouvida em Kill Bill na gravação original de Nancy Sinatra, mas usada em seu filme Os Amores Imaginários na voz da cantora Dalida.

Destaques marcantes vários, entre eles uma belíssima cena de tango, involuntariamente e ao mesmo tempo explicitamente homoerótica ao som da canção “Milonga De Mi Amor” do grupo argentino Gotan Project e a música de encerramento, Going to a Town, na voz rouca do cantor canadense Rufus Wainwright: “I'm going to a town that has already been burned down/I'm going to a place that is already been disgraced/I'm gonna see some folks who have already been let down./I'm so tired of America” ou “Estou indo para uma cidade que já foi incendiada/Estou indo para um lugar que já foi degradado/Vou ver alguns camaradas que já foram decepcionados/Estou tão cansado dos Estados Unidos”. A música foi gravada também por George Michael. 

OLHOS FRIOS – Mais um ótimo filme da Coreia do Sul, um filme policial e de perseguição que poderia ser perfeitamente refilmado por Hollywood tal a pegada universal dele. Conta o dia a dia de um grupo de policiais altamente especializados e da elite do Departamento de Crimes Especiais da polícia coreana especializado em atividades de vigilância a criminosos de alto perfil e sua busca incessante pelo líder de uma perigosa organização de assaltantes.

WAKOLDA – Este é o candidato da Argentina ao Oscar de filme estrangeiro. Um filme muito bom, como é comum no cinema argentino, mas um título péssimo. Um filme de época que se passa em 1960 na Patagônia quando um médico alemão conhece uma família argentina cuja filha mais nova reacende sua obsessão pela pureza e perfeição. Os argentinos desconhecem a identidade do médico que aceitam como hóspede, mas logo descobrem que estão abrigando um dos maiores criminosos nazistas, o médico Josef Mengele, conhecido como "o Anjo da Morte". Um filme à altura do bom cinema argentino dirigido por Lucia Puenzo, a mesma diretora do ótimo XXY

UM PERDÃO NECESSÁRIO – Acho que esse foi o primeiro filme do Quênia a que assisti e o tema é semelhante ao do filme Hotel Ruanda que trata do genocídio que se seguiu após uma guerra civil em 2007 que abalou o país. Uma enfermeira que tinha uma fazenda e vivia com seu marido e seu filho são atacados por uma turma de arruaceiros assassinos e estupradores. Seu marido é morto, a fazenda é queimada e o filho fica em coma. Ela é estuprada seguidas vezes e acaba engravidando. Um dos membros da gangue, profundamente arrependido, tenta se aproximar da vítima, procurando um modo de se perdoar e sem que ela saiba, começa a ajudar a reconstruir sua fazenda. Ambos precisam apagar as memórias trágicas do passado para poder seguir com a vida. Mas não será fácil para eles, mesmo sem jamais se defrontarem novamente, evitar os perigosos obstáculos para conseguirem se reconstruir.

ALGO NO CAMINHO – Um filme indonésio do tipo de pouca ação. Li um comentário de um crítico da Folha refletindo que estes filmes em que não há qualquer ação são feitos para festivais e fora desse ambiente têm a vitalidade e duração de uma bolha de sabão. Ele isenta, dessa categoria os lentíssimos filmes de Antonioni, Bergman e Takowski, provavelmente por serem clássicos consagrados. Engraçado é que ele falou isso sobre um filme de que eu particularmente eu gostei, que mesmo com pouca ação tinha uma boa história e que me agradou e não foi sobre esse filme indonésio que conta a história de um taxista muçulmano de Jacarta viciado em sexo e que vive na base da constante masturbação e do sexo pela tv praticamente sem qualquer contato real com alguém. Um dia ele se apaixona pela vizinha prostituta e começa a levar a ela e seus clientes a motéis até que o cafetão violento da jovem intervém nesse relacionamento e o conflito do taxista entre seus desejos carnais, sua repressora religião, a pressão do patrão para que ele renda mais no trabalho e as ameaças do cafetão devastam a vida e ele só enxerga um modo de salvar a prostituta: arriscando sua própria vida ao destruir a vida do cafetão. Sua decisão leva-o a uma meia vitória: ele salva a moça, mas não a si. A grande ironia é que ela não consegue sequer agradecer a ele e nem ele sabe que conseguiu salvar a moça por quem se apaixonou. Como diria Guimarães Rosa, “viver, viver de verdade, é muito perigoso”.

CARACÓIS NA CHUVA – Um filme israelense que, creio, deve ter desagradado a muitos homossexuais que esperavam outro final. Mostra a relação de um belo casal de estudantes de 25 anos que vive em Tel Aviv e o belíssimo jovem começa a receber cartas de amor anônimas e obsessivas de outro homem que ainda está “no armário”. Como o admirador secreto demonstra saber tudo da vida do estudante ele começa a ficar ao mesmo tempo intrigado, assustado e excitado com isto e passa a reparar em todos os homens com que cruza. Lembra dos tempos do exército em que participava de inocentes (mas nem tanto) affaires homoeróticos e despertou um discreto interesse por pessoas do mesmo sexo, algo que ele havia sublimado, confundindo com camaradagem mas as chegadas das cartas despertam um desejo adormecido. A curiosidade da noiva que descobre as cartas e mesmo assim luta para manter o relacionamento prova que ela realmente o amava e estava disposta a enfrentar esse “pequeno” obstáculo para manter o seu homem. Apesar do final desapontador, para muitos, admirei a construção dessa personagem feminina com tantas nuances e força. O diretor foi ardiloso ao utilizar um ator com uma rara beleza e mostrar breves cenas de contato homoafetivo. Pôs o doce na boca das crianças e depois retirou. Está perdoado

DUAS VIDAS – Este filme foi o candidato da Alemanha ao Oscar e conta com a atriz Liv Ullmann no elenco. Um filme que me agradou muito pela sua história cheia de reviravoltas, contando uma face secreta e pouco explorada da guerra fria após a queda do Muro de Berlim. Naquela ocasião, a temível Stasi, a polícia secreta da Alemanha Oriental, antes da reunificação do país mantinha inúmeros espiões infiltrados nos diversos países da Europa. Aqui vemos a história de uma mulher que passou a infância em um orfanato da Alemanha Oriental, mas fugiu de lá e vive na Noruega há duas décadas onde reencontrou a mãe, casou-se e tem filha e neta. Ela foi uma “criança da guerra” como eram chamados os filhos das relações entre norueguesas e soldados alemães durante a Segunda Guerra. Um dia, um advogado pede que ela testemunhe num julgamento contra o estado norueguês a favor das crianças da guerra e ela resiste, pois sabe que esse depoimento revelará segredos que ela não pode nem quer revelar. A história é bem urdida e com flash backs ficamos sabendo desses segredos. E não são poucos nem inocentes. Logo ela não terá alternativa senão enfrentar seus fantasmas.

O GRANDE MESTRE – Não sou capaz de perder qualquer filme do diretor taiwanês Wong Kar Wai. Sou fã incondicional do seu cinema desde que vi Amor à Flor da Pele, 2046, Amores Expressos, Felizes Juntos, Um Beijo Roubado e Cinzas do Passado Redux. O diretor já concorreu quatro vezes à Palma de Ouro em Cannes e conquistou o prêmio de melhor diretor em 1997 por Felizes Juntos. Essa é a história verídica de Ip Man, mestre de artes marciais e mentor de Bruce Lee.  Aqui, vemos novamente o mesmo ator de praticamente todos os filmes do diretor, o excelente Tony Leung como protagonista. O ator quebrou o braço duas vezes durante as filmagens. Só a luta inicial debaixo da chuva tomou 30 noites ininterruptas e só na ilha de edição foram mais dois anos. O filme retrata um painel de muitos anos na China desde a luta pela unificação do país, a guerra civil, a participação na 2ª Guerra Mundial e a invasão japonesa. O Mestre Ip Man derrota outro mestre respeitado e sua filha jura vingar a honra do seu pai e desafia Ip para uma luta. Mas a eclosão da Segunda Guerra Mundial faz com que outro complicador apareça na pessoa de um perigoso e talentoso pupilo do velho mestre que passa para o lado inimigo. Como em todos os filmes de Kar Wai, belíssimas coreografias e câmeras lentíssimas que lembrar algumas cenas dos filmes Herói e O Clã das Adagas Voadoras.

PEIXE E GATO- Não sei se este foi o pior ou um dos piores filmes que já vi na Mostra em todos os anos. Fiquei interessado em assistir por ser um filme iraniano, e eu costumo admirar o cinema do Irã, e pela sinopse que dizia que o diretor fizera todo o filme com mais de duas horas seguidas em plano- sequência. Grande ilusão. Mesmo dormindo parte do filme, não acreditei na baboseira que o homem estava filmando e fiquei até o final para ver até onde ele iria chegar. É a história de alguns estudantes que acampam na região do mar Cáspio para uma competição de pipa, algo que é mania naquela região. Perto dali numa cabana, três cozinheiros procuram carne. Baseado na história real de um restaurante que servia carne humana moída. Não sei como encontrar adjetivos suficientemente agressivos para xingar esse filme em que nada acontece. Se há um grande filme com um longuíssimo plano sequência que vi na Mostra há alguns anos foi o fantástico Arca Russa, de Alexander Sucurov. Depois disso, toda comparação é injusta. Aqui a movimentação dos atores é tão aparentemente aleatória e a direção e os diálogos parecem ser idealizados por um suricato em crise de depressão.

OS ANOS FELIZES - Um filme italiano que não me agradou tanto, mas que não foi dos piores. Conta a história de um jovem artista plástico, sua bela esposa e seus dois filhos pré-adolescentes. Os dois meninos roubam algumas cenas, pois são divertidos. O personagem central é um artista ingênuo e autocentrado, que faz umas obras bobas, hoje já muito datadas, mas que ele julgava muito revolucionárias e engajadas. Ao ser destroçado pela crítica, ele vive uma crise de identidade criativa, a esposa descobre que ele a traía com as modelos que posavam para suas obras, sua família de intelectuais não dá a mínima para seu talento e para complicar tudo a esposa traída se separa dele e se apaixona por outra mulher.
                                                                                                          
O LOBO ATRÁS DA PORTA – Um dos melhores filmes brasileiros dos últimos anos. No dia da apresentação na Mostra o diretor teve um ataque reclamando que o filme não era para ser exibido no formato que o cinema o exibiria, pois assim a plateia iria ver o filme com metade do tamanho em que ele deveria ser visto. Na verdade, esse detalhe não me fez desgostar nem um pouco da obra e ao final fui elogiar o diretor dizendo que ele estava de parabéns e que o formato não prejudicou a fruição do filme. Ele agradeceu, mas não diminuiu sua expressão carrancuda. Deve ter ficado mesmo muito puto e eu também não sou tão observador assim para essas coisas de formato, pois muitas vezes vejo na tv um filme wide screem em formato letter box ou vice versa e nem percebo. A Folha de São Paulo fez uma pequena matéria reverberando o ódio do diretor.

O elenco afiadíssimo com atores de quem gosto imensamente como Milhem Cortaz, Fabíula Nascimento e Juliano Cazarré. A história se passa no Rio de Janeiro sobre o rapto de uma criança numa creche pela amante de um homem casado. Na delegacia, após depoimentos contraditórios do pai, da mãe, da dona da creche e da sequestradora, esta conta a verdadeira história para o investigador e, num longo flash back  ficamos sabendo a intrincada teia que levou à tragédia. Excelentes atuações, bastante naturalistas, sem exageros ou histrionismos, direção segura e eficiente e roteiro inteligente.

MEU CACHORRO ASSASSINO – Um filme que provavelmente não teria qualquer espaço fora de festivais pois é exatamente o tipo de cinema de não-ação e tempos mortos. Mostra a vida sem sentido de um jovem skinhead de 18 anos que mora perto da fronteira da Eslováquia com a Morávia. Ele vive num vinhedo decadente com seu pai, seus amigos hooligans e seu violento pit bull killer (assassino), seu melhor amigo. Sua mãe saiu de casa e cria seu meio-irmão de origem cigana. Os ciganos/romenos são vistos como raça inferior e ladrões oportunistas naquela região racista e os dois meio-irmãos passarão por uma situação limite quando o cachorro provoca uma tragédia. Não gostei do desenvolvimento do tema e muito menos do seu desfecho.

PROVIDENCE – Um filme de 1977 dos mais insuportavelmente pretensiosos e pedantes a que já assisti.O diretor Alain Resnais é autor de obras primas do cinema como Hiroshima Mon Amour e O Ano Passado em Marienbad, mas é considerado um daqueles cineastas cabeções, de filmes complexos, de narrativas lentas e não lineares. Seu cinema sempre causou estranheza e incompreensão das plateias, frustrando muita gente. É famoso por ser ininteligível e aqui nesse filme suponho que ele elevou o adjetivo pedante ao grau máximo. Fiquei até o final porque não imaginava onde aquela baboseira ia parar e vai parar na mais profunda cretinice. Fiquei impressionado quando o cinema inteiro aplaudiu no final e uma senhora do meu lado comentou comigo: “Que coisa extraordinária, não é?” Me deu vontade de dizer: “É mesmo, é uma merda extraordinária como poucas vezes vi pior”. E o elenco ótimo com Dirk Bogarde (dando mais pinta do que Vera Verão), Ellen Burstyn, John Gielgud e Gerard Depardieu. Lembrei de uma piada que diz que um filme de arte é aquele que acaba de repente. Hoje eu dizia outra coisa: filme de arte á aquele que não termina nunca.

O HOMEM DAS MULTIDÕES – Outro filme que eu poderia perfeitamente não ter visto. Dirigido por dois excelentes diretores Cao Guimarães e Marcelo Gomes conta uma história frouxa e praticamente sem enredo. Um condutor do metrô de Belo Horizonte passa os dias sem fazer outra coisa senão trabalhar e fora disso não tem amigos, parentes ou interesses, vive uma vida oca e sem graça e a mulher que é controladora de estação tem uma vida de isolamento social apenas conhecendo pessoas pela internet. O filme é tão pretensioso como raramente vi pior e comete o supremo requinte de em vez de usar toda a tela do cinema, usar apenas um terço dela e todo o filme é visto como se fosse através da tela de um celular. Uma cretinice dessas ainda é aplaudida e considerada arte. Foi premiado no Festival do Rio. Não consigo acreditar que Marcelo Gomes, que co-dirigiu essa porcaria é o mesmo que fez os sublimes: Cinema, Aspirinas e Urubus e Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo.

Ahh, lembra da velhinha da qual falei lá no começo. Ela achou esse filme uma "joia".