5.6.18

DOIS GAROTOS SE BEIJANDO


Narrado por uma miríade de vozes de uma geração que morreu vítima da Aids, Dois Garotos Se Beijando, de David Levithan, é um livro de rasgar o coração. Intercala-se a leitura de suas páginas com lágrimas.

Acompanhamos Harry e Craig, dois adolescentes de 17 anos, ex-namorados, na sua tentativa de passar 32 horas se beijando para figurar no Livro dos Recordes. O desafio é fazer desse um ato público e político, em frente à escola em que ambos estudam e assim dar visibilidade a um tema tabu e ampliar o espaço da luta contra a homofobia e o preconceito.

Curiosamente, essa história é inspirada em um fato real. Os universitários Matty Daley e Bobby Canciello se beijaram sem parar por 32 horas, 30 minutos e 47 segundos no campus da Universidade de Nova Jersey.

Pelas regras do Guinness, o ato tinha que ser público e eles não podiam se sentar, usar o sanitário ou fraldas de adultos e tiveram que suportar o calor, o desconforto e as fortíssimas dores musculares sem desgrudarem os lábios por sequer um segundo.

Mas o livro ainda conta três outras histórias paralelamente: a de Peter e Neil, dois jovens que estão juntos há um ano; a de Ryan e Avery, que se conhecem num baile gay e um deles tem que se decidir como revelar que é transexual; e Cooper, um garoto solitário que atravessa suas noites em salas de bate papos na internet com homens desconhecidos e precisa enfrentar o drama de ter seu segredo descoberto pelos pais da pior maneira.

Todos os narradores unem-se em uma só voz para contar as histórias desses adolescentes. Eles, os narradores, já conhecem todas aquelas emoções por já terem vivido os mesmos dramas e afetos, enfrentaram os mesmos preconceitos e sentiram as mesmas dores quando estavam vivos. Somos os fantasmas da geração mais velha que sobrou. Você conhece algumas das nossas músicas. Não queremos assombrar você com melancolia demais. Nós te ensinamos a dançar.” Dizem.

Ao mesmo tempo em que os narradores demonstram empatia pelos dramas dos novos jovens, recordam a ironia do seu próprio tempo, refletindo “quando paramos de querer nos matar, começamos a morrer. Quando estávamos sentindo força, ela foi tirada de nós. Isso não deve acontecer com vocês.”

O conhecidíssimo poema Filtro Solar, versão do original de Mary Schmich diz: “Conselho é uma forma de nostalgia. Compartilhar conselhos é um jeito de pescar o passado do lixo, esfregá-lo, repintar as partes feias e reciclar tudo por mais do que vale.”

É isso que se vê em Dois Garotos se Beijando. Há uma dor subjacente ao fato de que estamos diante de conselhos de homens mortos tentando ajudar jovens vivos, evitando assim que eles passem pelos mesmos dissabores. Mas sabemos que isso é inútil não apenas porque os conselheiros estão mortos e nada podem fazer, mas porque conselhos são meras formas de nostalgia vã.

Por outro lado, há uma beleza imensa em poder ler essas páginas, esses conselhos mesmos, como se ainda houvesse alguma esperança. Mas eles, os narradores reconhecem: “Raramente somos unânimes em relação a alguma coisa. Alguns de nós amaram. Alguns não conseguiram. Alguns foram amados. Alguns não foram. Alguns nunca entenderam para que tanta confusão. Alguns queriam tanto que morreram tentando. Alguns juram que morreram de coração partido, não de AIDS”

Ao final da história, uma espécie de grito de desafio, uma ode à visibilidade com a qual não vejo outra forma mais perfeita de encerrar esse comentário: “Se juntarmos armários suficientes, temos o espaço de um quarto. Se juntarmos quartos suficientes, temos o espaço de uma casa. Se juntarmos casas suficientes, temos o espaço de uma aldeia, de uma cidade, de uma nação, do mundo”.


1.6.18

OS POLICIAIS GELADOS DE JO NESBØ



Há um ano eu nunca tinha ouvido falar no escritor norueguês Jo Nesbø. Somente com o lançamento do filme “O Boneco de Neve”, passei a prestar atenção à sua literatura policial e consumi-la como um faminto. Recentemente, li três livros da sua série sobre o detetive alcoólatra e viciado Harry Hole (Morcego, Baratas e Boneco de Neve). Há ainda quase dez títulos para serem degustados com o mesmo protagonista.


A literatura policial escandinava é quase um subgênero à parte na galeria de livros de suspense, envolvendo complicadas investigações e tramas policiais na linhagem dos mestres Agatha Christie (e seu detetive com TOC Hercule Poirot); Edgar Alan Poe (e o pai de todos os detetives de ficção, Auguste Dupain); Georges Simenon (com seu comissário Jules Maigret); Raymond Chandler (com seu detetive pinguço Philip Marlowe) e Arthur Conan Doyle (com o mais famoso de todos, Sherlock Holmes). Assim como o detetive Harry Hole, de Jo Nesbø, os protagonistas dessas novelas policiais são poços de idiossincrasias e dramas pessoais carregando cérebros brilhantes.

Autores suecos, dinamarqueses, finlandeses e noruegueses, como comprovam o sucesso da Série Millenium e vários outros, estão ganhando notoriedade no mundo inteiro com suas obras de forte impacto e seus personagens cheios de dores e amargores internos com seus próprios fantasmas para exorcizar. Os livros de Nesbø são traduzidos em mais de quarenta línguas e ele já chegou a ter três livros, simultaneamente, no topo da lista dos mais vendidos na Noruega.

Infelizmente, as adaptações das suas obras para o cinema não têm sido felizes. O filme baseado em “Headhunters” teve má recepção e Nesbø só aceitou vender os direitos porque os royalties iriam para sua fundação que ajuda crianças carentes a ler e escrever. A adaptação para as telas de Boneco de Neve também foi um fiasco como roteiro, edição e atuações e nem mesmo a presença de Michael Fassbender (X-Men e Shame) no papel do icônico detetive Harry Hole salvou a empreitada.

Em O Morcego, como nas obras seguintes, a editora Record refez o projeto gráfico das capas nas cores branco, preto e vermelho com detalhes em relevo e os livros passaram a ter melhor qualidade editorial. Aqui, Hole é enviado de Oslo para desvendar um misterioso assassinato de uma jovem norueguesa na Austrália. No meio da trama, o detetive luta contra seu alcoolismo e a tendência à autodestruição e enfrenta boxeadores aborígenes, traficantes, maníacos sexuais e a corrupção policial. Nesbø se esmera na contextualização da atmosfera da cultura australiana com seu passado colonial e racista.

No livro seguinte, Baratas, o detetive Hole é enviado para a Tailândia para investigar, com o máximo de brevidade e sigilo, a morte de um embaixador norueguês apunhalado em um motel barato de Bangkok. A missão no fundo é evitar um escândalo diplomático. Em uma atmosfera de trânsito barulhento e caótico e calor e umidades asfixiantes, Hole vê-se em uma trama que envolve antros de ópio, bares vagabundos de striptease, templos budistas e pedofilia. No decorrer da investigação, após um rastro de crimes, ele percebe que pode ser a próxima vítima do assassino. 

E finalmente, em Boneco de Neve, o policial norueguês enfrenta um serial killer em Oslo que mata mulheres, aparentemente de modo aleatório, no primeiro dia de inverno de cada ano e deixa um boneco de neve no jardim de suas casas usando uma peça de roupa da pessoa morta. O jornal inglês The Guardian considerou este o livro mais ambicioso de Jo Nesbø. O The Times o comparou ao Silêncio dos Inocentes, de Thomas Harris. Cada capítulo é eletrizante, como costumam ser todas as aventuras de Harry Hole.

Boneco de Neve é o sétimo romance de Nesbø e vendeu 160 mil exemplares apenas na semana do lançamento e é o romance policial norueguês mais vendido até hoje. 
Todos os livros têm em comum finais surpreendentes, que fazem valer cada minuto da leitura e desejar mais livros com o atormentado Harry Hole.