1.12.11

Por que não deixam os ateus em paz?

Outro dia, almoçando com minha amiga Conceição Moraes e outra colega, comentei que Conceição reza a Ave Maria todos os dias. Conceição então apontou para mim e disse: “Ele é ateu! Tenho pena desses ateus!”.

Respondi: “Também tenho. Seria uma vida tão mais fácil se eu acreditasse em Deus”.

O mais interessante foi o choque da outra colega. Em seu rosto uma miríade de expressões: incredulidade, como se eu fosse uma aberração; pena: como se eu precisasse de socorro; incômodo: por respirar o mesmo ar que eu. Tive vontade de dizer-lhe: “Ela disse que sou ateu e não que sou pedófilo”.

Eu já deveria estar acostumado. Poucas classes são mais mal vistas do que a dos ateus. Pesquisa do Gallup nos EUA mostrou que entre 95% e 80% dos americanos votariam em uma mulher, um católico, um judeu, um negro, um mórmon ou um homossexual para presidente, mas menos de 50% votariam em um ateu. No Brasil, 84% votariam em um negro para presidente, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% votariam em um homossexual, mas apenas 13% votariam em um ateu. Entre as minorias (racial, sexual, de gênero...), a mais rejeitada é a anti-religiosa.

A historiadora Eliane Moura Silva, especialista em religião, analisa: "O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral. É um entendimento que se espalha de modo homogêneo por todas as classes sociais.”

A jornalista Eliane Brum escreveu o artigo: “A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico” em que descreve o diálogo com um taxista. O homem afirmara ser evangélico e perguntou sua religião. Quando a jornalista disse que era ateia o motorista saiu com um

- Deus me livre!

Eliane retrucou – Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha. Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?

Eliane reflete sobre como a vida dos ateus é dura num Brasil cada vez mais evangélico pentecostal. “Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais são constituídas no modo capitalista. Nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel” obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações. O templo é um shopping da fé”.

A Igreja Católica, atualmente mais tolerante com os ateus do que as pentecostais, tem também uma história de forte mercantilismo e utiliza movimentos carismáticos para reduzir a sangria de fiéis.

“Não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso não tem qualquer apelo. Tenho muitos amigos ateus que me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil.”

No site de uma igreja a jornalista encontra um aviso: “O perigo da tolerância” e afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”.

“A liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele.”, concluiu.

Já na Folha de São Paulo do dia 24/11 deparo-me com o artigo do jurista Ives Gandra Martins intitulado: “Fundamentalismo ateu”. Quase ri do inevitável oximoro, mas não havia nenhuma poesia na contradição dos termos como no Claro Enigma de Drummond.

Ives Gandra diz que sustentou, pela CNBB, no STF, a inconstitucionalidade da destruição de embriões para fins de pesquisa. E recorre a um silogismo (“pois são seres humanos, já que a vida começa na concepção”).

Esse é um tipo de argumento fraudulento. O pois indicaria que a opinião do jurista é suficiente para servir de premissa. O pois seria apenas uma “conclusão lógica do argumento e o argumento é a própria opinião”. E continua “já que a vida começa na concepção”.

Isto é que é fundamentalismo! Se a vida começa na concepção, resta saber se aquela vida é um ser humano. Aliás, há vida em um pedaço de carne que se tira numa cirurgia. Um amontoado de células é vida, mesmo que seja num tumor. A questão é mais profunda. Esta vida é protegida como um ser humano é? Deve-se dar a um embrião de dez dias o mesmo tratamento de um ser humano? E a se crer nesse argumento, há milhões de “seres vivos” congelados em laboratórios de fertilização, embriões fertilizados. Essa “gente” não tem direitos não?

Ives Gandra, ao sustentar que a Igreja é a detentora da verdade, esquece dos milhõesque morreram por desafiar a verdade da Igreja Católica.

Seria cômico se não fosse perigoso ler um jurista dizer que há uma “guerra ateia contra aqueles que vivenciam a fé cristã e cumprem seu papel, nas mais variadas atividades, buscando a construção de um mundo melhor”.

Se dependêssemos do mundo melhor dos religiosos ainda estaríamos com o Sol girando em torno da Terra e queimando mulheres e cientistas nas fogueiras da inquisição.

Para Gandra, ateus só não são iguais aos fundamentalistas do Oriente Médio porque não há terroristas entre eles. Puxa, uma diferença realmente pequena....Uns saem matando pessoas e explodindo prédios e jornais que publicam caricaturas de Maomé enquanto os ateus não explodem ninguém, não queimam ninguém. Não querem convencer ninguém a nada. Só querem que os deixem em paz.

A capacidade de influenciar pessoas é tão desproporcional entre religiosos e os poucos ateus que surpreende que possamos incomodar tanto essas sumidades. Não fosse falta de humildade seria por arrogância ou pura falta de bom humor. Recentemente, a Benetton foi obrigada a suspender parte da sua sempre polêmica campanha publicitária em que mostrou líderes mundiais trocando selinhos. Sob o sugestivo nome de UNHATE (Não ao ódio),sintomaticamente, o único cartaz suspenso foi o que do papa beijando um imã.

Se eles se beijassem mais talvez se esquecessem de nós.