2.8.09

Deus uma Biografia - 1ª parte


Esta não é uma obra tão nova, lançada em 1995, provocou pouca controvérsia se comparada aos recentes best sellers em que Deus é desancado e as religiões são atacadas. Seu autor, Jack Miles, que ganhou, graças à obra, o cobiçado Prêmio Pulitzer, não escreveu um arrazoado contra a divindade nem detonou a religiosidade, mas elaborou uma fantástica obra em que a Bíblia, o maior de todos os best sellers, é tratada como obra literária e Deus como seu personagem principal

Talvez o livro, mesmo inspiradíssimo, não tenha causado tanto furor por se tratar de uma obra mais sóbria, não se preocupando em tentar provar se Deus existe ou não, mas na abordagem do Criador não como personagem histórico, mas como personagem literário - e como personagem, inegavelmente, ele existe e é o mais fascinante e extraordinário já criado.

Desde o lançamento, tenho o meu exemplar, mas somente há poucas semanas o li. É fascinante o poder que um livro tem. Ele pode passar anos na sua estante, você diz que um dia irá lê-lo, e ele fica lá, com seu conteúdo guardadinho entre as páginas, até que um dia você resolve assumir a tarefa de lê-lo. E, como um bom vinho envelhecido, ele se impõe, e você descobre como foi bom saboreá-lo quando ambos estavam prontos.

Jack Miles, doutor em línguas orientais, em estilo literário ao mesmo tempo fluente (ele também é jornalista) e erudito, parte do Gênesis e segue todo o Velho Testamento, livro por livro, decifrando os mistérios do personagem Deus. Como numa biografia, o personagem Deus não surgiu pronto e completo, mas foi desenvolvendo aos poucos sua rica e complexa personalidade.

A aventura é fascinante e a jornada começa com o surgimento de Deus, personagem solitário, sem outros deuses para interagir, sem irmãos, pais, amigos ou companheira. Um vazio imenso o habitava e uma solidão assim é algo imensurável. Os registros literários até então existentes mostravam os personagens divinos como seres múltiplos e cercados por seus iguais. Somente Deus surgiu envolto no vazio e até mesmo o vazio seria sua própria criação.

Deus cria as coisas a partir do nada e não tem com o que compará-las. Os animais, as coisas e até o próprio homem, são primeiro criadas e depois constatadas como sendo boas. Deus, sem qualquer parâmetro, precisa primeiro do objeto criado para só depois emitir sua avaliação, ao contrário dos personagens da obra de Lady Barberina, de Henry James, que têm respostas porque, em suma, podem fazer comparações. A comparação é condição básica de quem precisa decidir se algo é bom, ruim ou mais ou menos. Mas Deus, ao contrário, somente após criar algo dizia que era bom. Nunca fez algo que não julgasse bom. Se o homem foi feito à sua semelhança, a comparação consigo próprio é inevitável, já que o próprio Deus devia se julgar suficientemente bom. Mas o homem não saiu tão bom e a Bíblia demonstrou isso fartamente. Por outro lado, a criatura talvez fosse exatamente isso, uma cópia de um molde que não era tão perfeito assim.

Sem qualquer julgamento, mas utilizando a simples lógica, Jack Miles, ele próprio um cristão, percebe que Deus é um personagem em constante auto-conhecimento, que passa a aprender com a sua própria criação. Até a própria moral ainda não existia para ele, já que a única proibição que impôs ao homem era a de comer o fruto da árvore do conhecimento.

A morte só é percebida por Deus como algo imoral quando Caim mata Abel. Os atos dos homens fazem com que Deus defina o que é errado e não antes pois matar não era proibido. Idem para os episódios de Sodoma e Gomorra e da Torre de Babel. Não havia proibição alguma de que os homens agissem como quisessem. Os homens, pelos seus atos, incultem em Deus as noções de certo e errado, justo e injusto, moral e imoral. Não é Deus quem ensina aos homens, mas o contrário.

Os atributos de Deus vão, ao longo da historia da Bíblia, se descortinando. Ele mesmo descobre a sua própria vaidade infinita quando submete o bom e justo Jó a inúmeros tormentos apenas para provar seu próprio poder a Satanás. E mais do que descobrir-se vaidoso, Deus se irrita quando Jó questiona seus motivos.

Jack Milles sintetiza a personagem Deus como uma criança grande, dotada de poder absoluto, que criou e realidade e o homem para descobrir a si mesmo e que, no final da jornada, não gosta nenhum pouco do que descobre.

Após Deus criar o homem à sua semelhança, ele dá à sua criação o poder de dominar todos os animais, fecundar e multiplicar. O homem assumiu, desse modo, não somente a imagem de Deus como também seu poder de dominar e até mesmo de criar novas imagens de si mesmos. Os filhos não se parecem com os pais? Deus criou um novo tipo de criador.

Ele não cria a humanidade por outra razão a não ser o fato de que precisa dela. Ele não precisa de um irmão, de um servo, de uma amante. Ele precisa de um espelho. Ele está inteiramente só, sem vida social ou afetiva. Não tem família, amigos, companheira. Nem sequer um animal de estimação.

Estamos no Jardim do Édem. Deus cria sua primeira proibição e ela é rapidamente violada. A serpente, uma das criações de Deus, subverte a ordem e induz a mulher a comer o fruto proibido. O criador da serpente é obrigado a se responsabilizar pelos atos dela. No politeísmo, um deus culparia outro, mas no monoteísmo isso é impossível. Deus experimenta então seu primeiro arrependimento.

A lógica mostra que se o homem falhou o sucesso de Deus na criação não foi completo. A próxima emoção enfrentada por Deus após o arrependimento é o sentimento de vingança que é tão violento que ele se contradiz em relação ao que anunciara antes: não mais o homem fora feito à sua imagem e semelhança, mas viera do pó e não de uma palavra da sua boca. Ele está envergonhado. A vergonha é um sentimento dirigido a sim próprio, mas a vingança recai sobre a criação. Deus age com paixão e não demonstra qualquer sentimento de compaixão até aqui. Ele está aprendendo com os atos humanos.

Mas eis que Deus experimenta o arrependimento do arrependimento e ao expulsar o primeiro casal do paraíso, ele próprio os veste. Se ele pune o casal com o suor do trabalho e as dores do parto, porque se preocuparia em vesti-los? Porque não deixou que eles próprios confeccionassem suas roupas? Provavelmente porque sabe que tem responsabilidade no que aconteceu. E como um pai, ele não dá simplesmente as roupas, ele próprio veste o casal.

A interpretação do pecado não surge da descoberta da própria nudez, mas do reconhecimento do desejo, conhecimento que não existe em outros animais. Deus havia criado criaturas com desejo de procriar, mas sem a vergonha do conhecimento desse desejo. Ao vê-las, repentinamente envergonhadas desse desejo recíproco de reprodução, Deus percebe que também ele se envergonha do proprio desejo da criação. Ao cobrir as vergonhas do casal, cobre sua própria vergonha. Que personagem fascinantemente complexo e simples é Deus.

Jack Miles faz uma interessantíssima analogia da figura da serpente com os bobos das cortes européias e asiáticas. Bobos, ou bufões, eram criaturas especiais, os únicos funcionários que tinham o direito de dizer aos reis a verdade. Eram como consciências reais e viviam imersos nas tramas e sub-tramas do poder, expondo o caráter ridículo dos poderosos. Sofriam castigos físicos, mas sua importância era inegável e estavam sempre prontos para continuar a dizer a verdade mais perigosa.

Deus mentira a Adão e Eva e a serpente provou isto. Deus proibiu o casal de comer o fruto do conhecimento, alegando que eles morreriam se o fizessem. A serpente mostrou que não era verdade e eles não morreram ao desobedecerem a ordem divina. Adão e Eva não viveriam para sempre, mesmo que não comessem o fruto proibido. Deus não os deixaria viver para sempre, mesmo que isso facilitasse sua ordem de crescer, multiplicar, encher a terra e subjugá-la. Ele os enganou pois não queria uma humanidade que se considere, como ele, imortal. Sua criação já era, por demais, semelhante a ele, multiplicava-se como ele, dominava como ele. Viver para sempre era pedir demais. Comendo ou não a maçã, foi a serpente quem disse a verdade.