8.8.19

Robert Mapplethorpe ainda incomoda muita gente


Atribuo a uma conspiração os eventos que me levaram a ler “Só Garotos", da multiartista americana Patti Smith. De repente, para onde olhava, alguém estava falando sobre o livro. Mas, por um tipo besta de implicância, tendo a resistir quando essas coisas acontecem. Minha birra natural me faz dizer: “Ah, é? Pois não vou ler!” Ainda mais que nunca tinha ouvido falar dessa tal Patti Smith!

É assim que a gente sabe como a gente é besta!

Talvez tenha cedido à pressão da leitura devido à bela foto da capa do livro, em que Patti Smith está ao lado do melhor amigo, o fotógrafo americano Robert Mapplethorpe, de quem eu já era fã. Ou talvez por aquela foto ser na icônica Coney Island, cenário de inúmeros filmes e lugar onde, mesmo após algumas idas a Nova Yorque, eu jamais conheci. Um pecado para um cinéfilo.

Ao ler Só Garotos, difícil foi parar. Em pouco tempo, arrastava um bonde por Patti Smith e Mapplethorpe, para quem ela escreveu o livro, cumprindo-lhe uma promessa no leito de morte. O fotógrafo foi uma das vítimas da AIDS em 1989 aos 43 anos, no auge da fama e sucesso internacionais, muito rico e aclamado como um dos maiores artistas contemporâneos e corresponsável por elevar a fotografia ao nível da arte.

No livro, imergimos na vida desses dois artistas. Smith, em 1967, aos 21 anos mudou-se para uma Nova Yorque no auge da contracultura,  com uma mão na frente e a outra atrás e uma vaga esperança de ser famosa. Viveu anos na pior, fazendo bicos e chegou a passar fome. A entrada de Mapplethorpe em sua vida fez com que tudo passasse a fazer sentido.

Em pouco tempo, o casal mudou-se para o emblemático Chelsea Hotel, habitat dos maiores cabeções daquela geração louca, onde conheceram todo mundo que um dia seria mega importante, como os beatniks Allen Ginsberg e William Burroughs, os cantores Bob Dylan, Iggy Pop, Jimi Hendrix e Janis Joplin, o artista pop Andy Warhol e toda uma geração de gente da pesada.

A partir do Chelsea Hotel, as carreiras de ambos seguiram sempre ascendente, mas ainda com muitos perrengues, quando não tinham dinheiro para pagar pelo  menor quarto do hotel e precisavam optar entre um café da manhã e material de pintura.

Robert, com um passado familiar fortemente católico, descobriu-se homossexual, prostituiu-se, experimentou uma infinidade de drogas e mergulhou de cabeça no universo gay sadomasoquista barra pesadíssima de Nova Yorque. Mas os laços com Patti permaneceram  inabaláveis.

Na sequência de Só Garotos, continuei obcecado pelo casal e emendei com a leitura da biografia de Mapplethorpe escrita por Patricia Morrisroe, atualmente fora de catálogo e disponível em sebos físicos e digitais como a Estante Virtual.

Polêmicas sempre estiveram ligadas à obra de Mapplethorpe, associado primordialmente ao nu masculino e ao homoerotismo. No ano passado, a censura a algumas das suas fotografias por um Museu de Arte Contemporânea de Portugal provocou o pedido de demissão do seu diretor artístico, levando o crítico, historiador de arte e professor da Universidade de Lisboa Pedro Lapa, ex-diretor de dois museus portugueses a declarar que “o obsceno, o abjeto, o informe, o pornográfico, tudo tem lugar na arte. A arte lida com tudo, não exclui”.

No filme Fotos Proibidas, assistimos à luta do diretor do Centro de Artes Contemporâneas de Cincinatti, Ohio, Dennis Barrie, interpretado pelo ator James Woods, para exibir as fotografias da Mostra The Perfect Moment, de Mapplethorpe, quando um xerife decide prendê-lo no dia da estreia da Mostra. O filme retrata um feroz debate ideológico no qual o júri precisa decidir se as fotos eram pornografia ou arte.

De um lado, um juiz preconceituoso e um xerife truculento e do outro um homem obstinado, enfrentando todo um sistema, os riscos de prisão e demissão, além da falta de apoio da própria família, já que a esposa não compreendia sua insistência em manter-se fiel à ideia de liberdade artística e pelo direito expresso na constituição americana de liberdade de expressão. Barrie resistiu até à tentativa de suborno, quando um cliente anônimo lhe ofereceu US$ 100 mil, o valor total das suas dívidas, para ele abandonar a causa.

Era o ano de 1990 e a América parecia enlouquecida por políticos conservadores, uma época em que a epidemia de AIDS devastava a classe artística por todo o país, tendo matado o próprio Mapplethorpe um ano antes.

O filme retrata os embates ao longo do julgamento, que envolveu especialistas de todo o país defendendo a obra de Mapplethorpe e ressaltando suas excepcionais escolhas de luz, sombra, perspectiva, profundidade de campo, composição...Os membros do júri, todos cidadãos simples que nunca tinham visitado um museu, inocentaram os acusados, liberaram a mostra e garantiram a liberdade artística. Uma frase de um dos jurados é emblemática: “Eu não entendo nem gosto de Picasso, mas quem entende diz que é arte. Então eu acho que é arte”.

No Brasil, 30 anos depois, vemos hordas de moralistas ignorantes voltarem a mostrar suas unhas sujas, novamente envolvendo o trabalho de Mapplethorpe além da exposição “Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Basileira”, cancelada pelo Santander por pressão de grupos fascistas. É impressionante que a nudez num museu gere tamanho desconforto nos pudicos de plantão, levando-os a agredirem artistas, como no MAM de São Paulo e vituperarem contra a exposição "Histórias da Sexualidade" do MASP.

Como ainda hoje fazem faltam pessoas ousadas como Robert Mapplethorpe.