9.10.10

Tropa de Elite 2 - Aguenta, Nascimento!

Assisiti ao lançamento do esperadíssimo filme Tropa de Elite 2 na última sexta-feira, dia da sua estreia nacional. No Iguatemi está em cinco salas; em Salvador está em 20 cinemas e no Brasil são 636 salas. Fiquei imensamente feliz em constatar que todas as sessões tinham lotação esgotada. Após longa espera na fila, adquiri meu ingresso e desfrutei da segunda parte da alegria: o filme é ainda melhor do que o primeiro, que já era ótimo.

Tropa de Elite 2 traz de volta o polêmico Capitão Nascimento, agora Coronel, encarnado soberbamente pelo ator Wagner Moura, dez anos mais velho e mais intenso ainda do que no primeiro filme. Nascimento agora foi alçado a um cargo na Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro e lá do alto enfrenta inimigos mais perigosos do que os traficantes dos morros e favelas cariocas que o infernizavam e a corrupção da PM. Agora, como diz o subtítulo do filme: "O inimigo é outro".

Se o inimigo é outro, é mais forte e peigoso. Os políticos!

O filme radiografa com todas as suas cores sórdidas a relação promíscua entre políticos oportunistas com as milícias paramilitares e os traficantes cariocas. O filme não é maniqueísta. Nascimento não é um santo e Wagner Moura revela em inúmeras cenas o porquê do sucesso do personagem: sua sinceridade. Nascimento consegue a proeza de ser transparente mesmo fugindo da dicotomia bom ou mau; preto ou branco; bandido ou mocinho. Está muito mais em uma zona cinzenta mas é justamente aí que mais revela sua translucidez. Em uma cena muito forte de um filme repleto delas, revela num discurso: "Meu filho, aos dez anos, me perguntou porque a minha profissão era matar. E eu não soube como responder".

O filme do diretor José Padilha é espetacular. Normalmente fico com o pé atrás quando o filme tem narativa em off. Entendo que uma obra dramaturgica deve se sustentar pelas próprias imagens, cenas, edição, efeitos, fotografia, iluminação e diálogos. Narrativa é para literatura. Mas em Tropa de Elite 2 a narrativa do protagonista é precisa, sem redundância, entra nos momentos e pontos certos. Cirúrgica!

Nascimento está mais experiente, separou-se da mulher, está em conflito com o filho, em conflito com antigos companheiros do BOPE, em conflito consigo mesmo. Um homem a ponto de explodir. Um homem a ser eliminado. Esse perfil psicológico muito mais profundo torna o protagonista dono de uma densidade inquestionável. Impossível não vibrar com ele a cada fibra de sua amargura.

José Padilha escolheu um elenco afiadissimo, uma edição ágil, sonoplastia de primeira e uma trilha sonora pancadão: "Tropa de Elite/Osso duro de roer/Pega um, pega geral/Também vai pegar você". Bate no coração, no ritmo de marcha acelerada. Aguenta, Nascimento!

O crítico de cinema Luiz Carlos Mertem escreveu que se o filme fosse lançado antes da realização do 1º turno, teria causado um estrago muito grande no processo eleitoral. "Dilma e Serra vão ter que encarar o problema da segurança e discutir o Tropa de Elite 2 no segundo turno. O filme pega essa questão do legislativo, do político ficha suja, do deputado federal, do estadual...e no final ele amplia isso para Brasília".

Para contribuir um pouco para tal alálise, sugiro ao leitor que verifique no site: Mapa da Violência(www.institutosangari.org.br/mapadaviolencia) que é uma verdadeira anatomia dos homicídios no Brasil, uma série publicada desde 1998 que se tornou referência internacional sobre o tema.

Ali você verá que na cidade de São Paulo, a violência cresce menos do que no Brasil. Entre 2002 e 2007, os homicídios por cada 100 mil habitantes no Nordeste cresceram 32,4%. Na Bahia, o aumento foi de 97% enquanto em São Paulo a queda foi de 60,5%. A redução de 11,57% no país como um todo se deveu a São Paulo.

Na cidade do Rio de Janeiro a taxa de homicídios é 35,1. Salvador fica em 152º posição no ranking de cidades mais violentas do pais enquanto São Paulo, que tem a maior população do Brasil está com índice de 17,4 e fica em 1,358º lugar no ranking de violencia. Se em Salvador a violencia só aumenta a cada ano: 2003 (730); 2004 (739); 2005 (1.062); 2006 (1.187); 2007(1.357). São Paulo registra queda constante 2003 (5.591); 2004 (4.275); 2005 (3.096); 2006 (2.556); 2007 (1.927).

Números são áridos. Melhor é falar em cinema e política. Vá assistir a Tropa de Elite 2 e depois vá votar.

1.10.10

Caim e o preconceito da crítica


Recentemente terminei a leitura de Caim, último livro do escritor José Saramago. Costumo ler todos os artigos a respeito dos livros que estou lendo no momento e, com relação à última obra de Saramago, impressionou-me a quantidade de críticas preconceituosas.

A maioria das críticas acusa Saramago de fazer em Caim um livro menor, de ter deixado de lado a literatura para fazer um libelo ateísta, de transformar a arte em panfleto ou um manifesto. Vejo intolerância da parte desses críticos. É como se Saramago fizesse do ateísmo uma profissão
de fé (desculpe o trocadilho).

O escritor já publicou 26 livros que tratam de temas diversos como em A Caverna, Memorial do Convento, Ensaio Sobre a Cegueira, Todos os Nomes, A Jangada de Pedra, Ensaio Sobre a Lucidez, O Homem Duplicado, A Viagem do Elefante, As Intermitências da Morte... todos eles livros espetaculares. Só no incomparável O Evangelho Segundo Jesus Cristo Saramago demonstra fartamente sua implicância com a religião. E o faz de modo brilhante em livro memorável.

Caim é um romance de ficção como todos os demais do Nobel Saramago, com o mesmo estilo de escrita bem humorado e único, com parágrafos imensos e pontuação original. A narrativa pode ser fantasiosa ou fantástica, mas isso não destoa do seu tipo de ficção que tanto agrada a milhões.

Creio que quase todos que lêem Saramago sabem do seu comunismo e do seu ateísmo e não se incomodam com isso, pois seus livros vendem muito. O que me impressiona não é nem a má vontade da crítica com o livro, mas o evidente preconceito dos que ao escreverem a respeito, não percebem que deixam escapar sua intolerância com o direito desse brilhante escritor de abordar ao seu modo, uma história com todos os ingredientes da boa ficção.

Entre várias críticas na mesma linha, selecionei a de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, que dá ao título da sua coluna o nome Ensaio sobre o Fanatismo. Diz que Saramago não somente não crê em Deus, mas detesta-o com a força de um fanático. Diz, com ironia, que Saramago é a criatura mais religiosa da literatura contemporânea. Uau. E o homem só escreveu dois livros sobre o tema entre 26 obras.

Talvez o problema seja que faltem autores que escrevam com a coragem de Saramago. Se ele tivesse mais concorrentes não seria...como é mesmo... “a criatura mais religiosa da literatura contemporânea”.

E o crítico desfia seu rosário: “A narrativa é pobre, sobretudo nas descrições sexuais, vulgar e risível... o Deus de Saramago é uma caricatura das divindades pagãs, colérico, mesquinho, traiçoeiro, cruel”. Para Coutinho, Caim é pintado como um terrorista disposto a sabotar um sistema absurdo e demencial. “Uma visão dessas só é possível na cabeça maniqueísta de um fanático", opina.

Para o crítico estão enganados os que dizem que a ideologia política de Saramago deve ser separada da sua criação literária. “Em Saramago, ideologia e literatura cumprem o mesmo papel. Doutrinar.” E vemos a seguir uma defesa de quem? Da Bíblia. Previsível!

Saramago expõe sem meias palavras ou retoques as chagas de Jó, as misérias de Abraão e o sacrifício de Isaque; as carnificinas perpetradas por Josué e Moisés em suas limpezas étnicas no Sinai, em Jericó e Canaã; o genocídio dos inocentes de Sodoma...O trecho seguinte é da mais fina ironia: “Naquela época as maldições eram autênticas obras-primas literárias, tanto pela força da intenção como pela expressão formal em que se condensavam. Não fosse Josué a crudelíssima pessoa que foi, até o poderíamos tomá-lo como modelo estilístico pelo menos no importante capítulo das pragas e maldições, tão pouco freqüentado pela modernidade”.


As qualidades ou defeitos do livro deveriam ser analisados unicamente no campo da literatura. A
crítica à personalidade do autor não deveria interferir na fruição do texto. Eu prefiro Saramago a Deus, mas muita gente pode ter uma escala de preferência diferente e ainda assim gostar de Caim, principalmente na hilária parte em que ele ensina ao criador o princípio de Arquimedes e explica porque a arca de Noé não flutuaria se construída no seco, forçando deus (assim mesmo, em minúscula), a mudar toda a engenharia do dilúvio. São só 172 páginas, não vai matar ninguém.

*Ilustrando este texto, quadro do pintor expressionista alemão Lovis Corinth. Em Caim e Abel, o artista congela o dramático momento do fratricídio. A pintura está no Kunst Palast Museum de Dusseldorf. A foto foi tirada por mim em janeiro deste ano em visita ao museu.