28.8.21

MATADOURO CINCO

“Billy Pilgrim ficou solto no tempo”.

Assim o norte-americano Kurt Vonnegut começou o livro que o colocou no panteão dos grandes autores do século XX: o clássico moderno Matadouro Cinco. 

O livro caiu como bomba ao ser lançado em 1969 bem durante a Guerra do Vietnã, sendo imediatamente abraçado pela contracultura e pelos hippies, chegando a ser banido de alguns estados norte-americanos, o que foi revertido pela Suprema Corte do país.

Este libelo contra o absurdo das guerras tem como pano de fundo a horrorosa destruição da bela cidade alemã de Dresden, conhecida como “A Florença do Elba” no finzinho da Segunda Guerra Mundial, ato covarde dos britânicos e americanos. Este episódio vergonhoso, dentro de uma guerra já suficientemente vergonhosa, mostra sua face mais amarga por ter ficado obscurecido pelas duas bombas atômicas despejadas logo depois no Japão. Mais inocentes morreram na destruição de Dresden do que em Hiroshima e Nagazaki e até hoje isto está relegado aos escaninhos da História.

O personagem central, Billy Pilgrim, sobreviveu como soldado americano à destruição de Dresden e esta marca profunda faz com que ele atravesse a sua vida alternando viagens no tempo e no espaço, abduzido por extraterrestres, navega entre passado, presente e futuro. Dá para suspeitar de uma síndrome de stress pós-traumático e fuga da cisão da mente, mas brilhantemente, o autor não deixa isso explícito nem apela para sentimentalismo, recorrendo até mesmo a pitadas de humor.

Atualmente, o livro é lançado no Brasil pela editora Intrínseca com uma bela capa dura comemorativa do cinquentenário da obra-prima, mas a edição que li é mais antiga, da L&PM, e que tem basicamente uma grande diferença na tradução, que é exatamente o bordão do livro, repetido infinitamente ao longo de cada página. O original “So it Goes” foi traduzido por “É Assim Mesmo” pela Intrínseca, mas na L&PM era traduzido por “Coisas da Vida”. Parece implicância minha, mas de tanto ser repetido, fica evidente que “Coisas da Vida” traduz mais a ideia da falta de livre arbítrio exposta do original do que “É Assim Mesmo”.

O livro tem o subtítulo de “A Cruzada das Crianças" e contextualiza a origem daquela horrível Cruzada na Idade Média. Há uma potente passagem quando o narrador se defronta com a raiva da esposa do amigo com quem lutou na Guerra: “Vocês farão de conta que eram homens em vez de crianças e suas vidas serão interpretadas no cinema por Frank Sinatra, John Wayne ou algum outro desses velhos safados e glamorosos defensores da guerra. E a guerra parecerá formidável e teremos muitas guerras mais, que serão lutadas por crianças”.

Então o autor lhe promete: “Mary, não creio que esse meu livro jamais chegue a ser terminado. Devo ter escrito umas cinco mil páginas e rasguei todas. Mas uma coisa eu lhe prometo: se algum dia eu terminá-lo, não terá papéis que sirvam para Frank Sinatra ou John Wayne. E vou chamá-lo de A Cruzada das Crianças”. 

Este livro é uma preciosidade como ficção científica, como resgate da História, como exercício de literatura moderna e elegante narrativa repleta de metalinguagem. Trata-se surpreendentemente de uma leitura muito fluida, irônica e mesmo simples, artifício inteligente para ao abordar um tema tão difícil, torná-lo mais acessível a todos.

Como paralelo da destruição bíblica de Sodoma e Gomorra, Kurt Vonnegut vê-se como a mulher de Ló, que desobedeceu a ordem divina de não assistir ao horror, não olhar para trás: “Mas ela olhou. E eu a amo por isso, porque foi um ato muito humano. Aí ela virou uma estátua de sal. É assim mesmo. As pessoas não devem olhar para trás. Eu garanto que não vou fazer mais isso. Já terminei meu livro sobre a guerra. O próximo vai ser divertido. Este é um fracasso, e tinha mesmo de ser, pois foi escrito por uma estátua de sal.”.

 Coisas da vida ! É assim mesmo!


21.8.21

UM LUGAR SILENCIOSO - PARTE 2

 

 “Silêncio, por favor, /Enquanto esqueço um pouco/A dor no peito”

Paulinho da Viola


A sequência de Um Lugar Silencioso parte de onde o filme de 2018 terminou, mas é uma pena que a história de terror psicológico num futuro distópico não traga muitas novidades, caindo na armadilha de muitos filmes do gênero ao gerar inevitáveis sequências que perdem muito na comparação com o original. Parece até que os produtores estão chupando o osso, mas isso jamais aconteceria em Hollywood, não é mesmo? (contém ironia).

A produção é de fato bem caprichada, com a qualidade notável da edição de som que utiliza o silêncio opressivo para manter a tensão esticada no limite, ao ponto de qualquer som se tornar assustador numa atmosfera pós-apocalíptica.

O único acréscimo realmente digno de nota — o caminhozinho de areia continua ali —, é a chegada dos monstros à Terra, mas se ficamos sabendo como eles chegaram até nós, nada se diz sobre o porquê. Não tiro, entretanto, o mérito da sequência da queda das naves alienígenas que lembra A Guerra dos Mundos.

Como se sabe, a família Abbott não está mais completa após a perda do pai e marido Lee (John Krasinski). Emily Blunt, como Evelyn Abbot, sempre excelente, carrega parte do filme nas costas e divide a tarefa a partir de certo ponto com o casal de filhos (Millicent Simmonds, deficiente auditiva na vida real, e Noah Jupe), dois atores juvenis totalmente sem carisma.

O diretor, roteirista e ator dos dois filmes, John Krasinski (esposo de Blunt na vida real), faz uma participação pequena na sequência e a presença masculina fica a cargo de Cillian Murphy, adicionado nesta história e que dá conta do recado, ficando à altura do trabalho de Blunt.

A matança segue o padrão do original sem o frescor da novidade (a morte do garotinho na ponte no primeiro filme por causa do brinquedo barulhento é icônica). O calcanhar de Aquiles dos monstros já estava no original e dar sequência à história sabendo que os monstros são destrutíveis (esse era o clímax do primeiro) quebra muito do seu vigor.  Sou uma voz destoante já que o filme recebeu 91% de aprovação no Rotten Tomatoes. Para mim foi no nível mediano.

Ah, a citação de Paulinho da Viola no subtítulo foi só pra ficar mais bonito mesmo.


6.8.21

TEMPO

 

O novo filme do diretor indiano M. Night Shyamalan, Tempo (Old), baseado na HQ "Castelo de Areia", merece ser visto como uma subcategoria dos filmes de terror, onde se enquadram as obras de Alfred Hitchcock. Como no caso do britânico, Shyamalan sempre usa inteligentemente o recurso do plot twist, além de fazer breves participações nas suas películas.

Merece elogio a ousadia de realizar um filme de terror à beira-mar em que as cenas se passam em um dia de sol e um mérito extra por transformar uma praia iluminada num ambiente claustrofóbico onde os personagens são oprimidos por uma enorme falésia por trás e o céu e mar infinitos acima e à frente, não conseguindo escapar dessa “caixa solar”. Curiosamente, a HQ que inspirou o filme teve como influência, a trama da película espanhola "O Anjo Exterminador", de Luis Buñuel, que se passa toda à noite numa mansão claustrofóbica.

Na história, hóspedes de um resort de luxo são levados a uma idílica praia isolada em que, aos poucos, cada um deles envelhece vários anos em poucos minutos. O elenco, aparentemente, foi escolhido para representar algum tipo de multiculturalismo: um mexicano (Gael Garcia Bernal), um negro, uma negra, um oriental, uma neozelandesa, duas australianas, uma luxemburguesa, um sueco, três crianças e uma velha. Norte-americanos são minoria.

Aplaudo a sempre criativa câmera do diretor que consegue, repetidamente, surpreender a plateia com tomadas inspiradas, com a câmera postada em pontos inusitados, o que deve enlouquecer o diretor de fotografia. Talvez por isso este seja o quarto filme seguido que o excelente diretor de fotografia Mike Gioulakis realiza com Shyamalan.

O uso inspirado do extracampo é outro ponto forte do diretor que retoma esse recurso quando retarda ao máximo a exibição de imagens que os expectadores aguardam ansiosos, enquanto mostra os diálogos da cena. Isso chega a ser angustiante, o que convenhamos, é a essência de um bom filme de terror.

Mas para não dizer que só falei de flores, foi irritante a repetição de cenas em que os atores se pegam, abraçam, agridem ou se matam....Praticamente todas as cenas em que os atores contracenam, eles estão se tocando. Também não ganha meu ouro o final que me pareceu muito amarradinho e que desceu redondo demais.

Gosto imensamente dos filmes Sexto Sentido, Sinais e A Vila, não tanto de Vidro e Corpo Fechado, e não sou fã de A Visita e Fragmentado (aliás, tenho muitas ressalvas, mas essa é outra história), então a filmografia de Shyamalan está ganhando medalha de prata na minha avaliação.