11.4.18

ABRIL DESPEDAÇADO e LAVOURA ARCAICA

 Esta semana acabei de ler dois livros excelentes, ambos adaptados para o cinema por dois diretores brasileiros: Abril Despedaçado — dirigido por Walter Salles e com Rodrigo Santoro como protagonista—, e Lavoura Arcaica, do brasileiro Raduan Nassar, filmado por Luiz Fernando Carvalho e com Selton Mello no papel principal. Os dois livros foram publicados originalmente na década de 70 e giram em torno de profundas tradições familiares.

ABRIL DESPEDAÇADO – Obra do escritor albanês Ismail Kadaré, foi adaptado no cinema para o sertão brasileiro e aborda um círculo infinito de vinganças entre membros de duas famílias rivais. Um dos temas mais caros da dramaturgia universal é o da vingança e se o livro se passa nas montanhas da Albânia, a transposição da trama para a aridez sertaneja, no cinema, não lhe fica nada a dever. É o mesmo orgulho estéril. A mesma mesquinhez patriarcal.

Nas montanhas da Albânia, resiste por cinco séculos até hoje o código de conduta conhecido como Kanum, costume arraigado na vida dos agricultores, que prevê regras estritas sobre o direito das famílias de ter as mortes de seus entes vingadas à bala. Trata-se de um romance, mas o Kanum existe realmente e estima-se que mais de 20 mil pessoas se envolveram em lutas entre famílias, com quase 10 mil mortos somente a partir de 1991 com o fim do regime comunista na região, quando houve um ressurgimento das rixas.

Acompanhamos um mês na vida do jovem Gjorg desde o momento em que ele se vê imerso na rede de vingança, obrigado a cobrar de uma família rival a morte do irmão, matando também ele um membro do clã inimigo e assim submetido ao circulo de vendetas. Ele morrerá após 30 dias, a trégua chamada de bessa. Mas, na prática, sua vida já acabou, ou acabará em algum dia do mês de abril. É impossível não recordar do notável romance do Nobel colombiano Gabriel Garcia Márquez, Crônica de Uma Morte Anunciada, também adaptada para o cinema.

No seu derradeiro mês de vida, Gjorg vislumbra, por uma única e breve oportunidade, a bela jovem Diana e entre os dois se instala uma urgente e súbita paixão silenciosa. Para Gjorg, será uma busca desesperada pela carruagem que transporta Diana pelas montanhas e para a jovem letrada, a estupefação diante de tradições que ceifam a vida de centenas de jovens numa sociedade em que o nascimento de um menino é saudado com o seguinte desejo: “Que ele viva muito. E morra de bala!”

LAVOURA ARCAICA - Também um livro duro, difícil, construído a partir de uma narrativa que se assemelha a um mergulho em apneia ou a um caleidoscópio de cicatrizes abertas.

A história segue os caminhos — ou os descaminhos — de André, filho do meio de uma família religiosa de agricultores imigrantes, uma verdadeira metáfora invertida sobre a parábola bíblica do filho pródigo. Já na primeira página, André é encontrado pelo irmão mais velho Pedro (não à toa, nomes de dois irmãos apóstolos) em um quarto sujo de pensão após ter fugido da opressiva família cristã sobre a qual o pai, libanês rígido, impunha uma disciplina feroz, em contraste com a mãe, pura ternura e afeto.

O jovem André sofre sob essa pressão e se sente cindir nas tensões desses polos em permanente disputa por sua alma. Em torno dele, gravitam os demais irmãos, entre eles a meiga Ana (Simone Spoladore, nas telas), que desperta em André convulsivos desejos incestuosos. 

O livro tem uma construção não linear de prosa poética como um jorro de fluxo de consciência, levando o leitor a mergulhar nas suas páginas sem qualquer garantia. Um clássico obrigatório que precisa ser lido sem pressa, com o devido tempo.

E sobre o tempo, sobre a virtude da paciência, transcrevo trecho de um dos discursos do patriarca da família, belissimamente interpretado no cinema por Raul Cortez: “... rico só é o homem que aprendeu, piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira...”