27.10.21

BILLY SUMMERS, “SUA DISGRAÇA”

Dos 34 livros que li do mestre do terror Stephen King, este foi o mais fraco. E digo isso com alguma tristeza, pois um fã sempre espera o melhor de um escritor querido quando lê o seu livro mais novo.

São vários os problemas do livro e a premissa não é um deles, pelo contrário, a história de Billy Summers, um matador de aluguel com passagem pela guerra do Afeganistão e prestes a realizar o seu último trabalho antes de se aposentar, aparenta render um bom enredo, principalmente quando se sabe que tudo pode dar errado.

Billy Summers tem uma regra: só mata quem merece.  Daí que o mestre Stephen King viajou numa caracterização do personagem como alguém de quem vamos ter que gostar de qualquer modo. Toda a construção parece forçada para impor códigos morais e altruísmo ao protagonista. 

O fato de ele já ser um matador e só matar pedófilos e outros assassinos em si já impõe uma camada dupla à sua persona, mas King exagerou ao ponto de, em certas passagens, a gente se perguntar como alguém com tantas regras morais e que sobreviveu ao Afeganistão consegue deixar alguns bandidos perigosos vivos, mesmo intuindo que isso poderia cobrar-lhe um preço. Ah, sem esquecer que Billy teve uma infância barra pesadíssima e que levaria qualquer moleque nas mesmíssimas circunstâncias a uma juventude desajustada e traumas. Mas não o perfeito Billy Summers.

Vamos falar com todas as letras: o livro se arrasta com tantos detalhes desnecessários que isso tem um nome, um nome feio em literatura: reiteração. Qual a necessidade, por exemplo, de a gente ler várias e várias vezes o que foi que fulano ou beltrana comeram no café da manhã?

O livro tem um rumo e um ritmo razoáveis até a metade, quando a história de Billy se mistura com outra história (não vou dar spoiler) ficando ainda mais arrastado. E tem o final mais previsível de todos os livros de King.

Um comentário sobre a tradução de Regiane Winarski, responsável por ao menos 14 livros do mestre King no Brasil. Irritou-me a repetição do adjetivo “arrombado”, um termo da gíria carioca (terra da tradutora) e não frequente em outras regiões. O termo aparece ao menos seis vezes no livro como tradução para palavras como “fuckwith” ou para frases como “worthless piece os shit” e “fucking fuck”. No original, as palavras têm conotações sexuais ou escatológicas, assim como em “arrombado”, mas para ser inclusiva ao leitor de outras partes do Brasil, em vez da regional “arrombado”, poderiam ser usados termos amplamente conhecidos como “seu escroto do caralho” ou “seu pedaço de merda” ou “vacilão fudido”, até porque ela usou o mesmo termo para expressões diferentes.

No baianês (linguagem da minha terra), há a expressão “sua disgraça” corruptela de “sua desgraça”, frequentemente usada com as mesmas conotações de "seu arrombado" (inclusive, pasmem, com uma acepção carinhosa). Mas um bom tradutor jamais optaria por tal terminologia fora da Bahia.

17.10.21

CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Escrito pelo mineiro Lúcio Cardoso em 1959, esta obra-prima integra o livro 1.001 Livros Para Ler Antes de Morrer e é considerado um dos dez melhores romances brasileiros de todos os tempos. Acabo de lê-lo e, em minha opinião, está empatado em 1º lugar com Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, e ganha de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro, de Machado de Assis, tal sua qualidade.

A obra, pouco lida e comentada no Brasil, ficou esgotada por anos, chegando a ser comercializada por mais de um salário mínimo. Felizmente, este ano, a Cia das Letras relançou o romance em uma edição caprichada.

Crônica da Casa Assassinada é um romance epistolar, composto por cartas, diários e depoimentos de dez personagens com narrativa não linear e fragmentada por pontos de vistas diferentes e às vezes contraditórios. O capítulo inicial é um soco no estômago e o capítulo final deixa o leitor de queixo caído pela capacidade de ainda ser surpreendido, após quase 550 páginas num desfecho inimaginável. A pessoa que terminou de ler esse livro, dificilmente será a mesma que iniciou sua leitura, tal o impacto que continuará por um bom tempo na sua memória.

Essa é a história de uma família em decadência no interior de Minas Gerais vivendo na sede da Chácara dos Menezes, uma casa dilapidada que é talvez o personagem mais importante da obra, já que não só é habitada pelos Menezes, como os aprisiona a um passado que jamais retornará.

Os Menezes são três irmãos totalmente diferentes: Demétrio, primogênito mais afetado pelo passado, Valdo, o mais comum, e Timóteo, homossexual e vergonha para todos, meio louco, eternamente escondido num dos quartos da velha casa,  engordando imensamente e tramando uma vingança contra os demais.

A chegada da bela Nina, recém-casada com Valdo, desencadeia todas as crises que se estabelecerão. O que se urdia no subterrâneo da família aflora e Nina torna-se o centro de uma dinâmica totalmente destoante do que até então imperava. Ela recebe o amor frio de Valdo, os ciúmes da cunhada Ana, a paixão doentia de Demétrio, a aliança de vingança com Timóteo, a relação tumultuada com o filho André, a relação passional com o Coronel e com o jardineiro Alberto. Todos os sentimentos violentos surgem com a presença de Nina e ela não poderá ficar impune. A Casa, como uma entidade, em si, ou através dos que nela habitam, não saberão aceitar paixões tão intensas.

Chico Felitti, escritor do prefácio do livro, aponta que a matriarca da casa é a própria casa com sua atmosfera fantasmagórica. O livro tem ecos do romance gótico norte-americano O Som e a Fúria, de William Faulkner, acerca da decadência de uma família através das vozes de diferentes narradores; e também de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, que aborda desavenças e paixões familiares em torno de uma velha propriedade isolada.

Neste trecho Nina aconselha o filho André sobre como lidar com o pecado: “Assuma o seu pecado, envolva-se nele. Não deixe que os outros o transformem num tormento, não deixem que o destruam pela suposição de que é um pusilânime, um homem que não sabe viver por si próprio. Nada existe de mais autêntico em sua pessoa do que o pecado— sem ele você seria um morto”. É uma exortação para a liberdade, mas para os Menezes, a liberdade é um passado voando com gaiola e tudo.

Lúcio Cardoso foi um homem inteligentíssimo e atormentado que viveu intensamente e abusou do álcool e da boemia. Muito católico e homossexual assumido, esta dualidade está fortemente representada nos seus diversos livros, sendo A Crônica da Casa Assassinada sua magnum opus e exemplo da maturidade como escritor. Em um depoimento para um documentário sobre o autor, sua amiga Raquel de Queiroz lembra que Lúcio era um homem muito bonito. Ele sumia por alguns dias do convívio dos amigos e ao ser perguntado onde esteve, respondia: “Estive no inferno”.

Crônica da Casa Assassinada foi indicado pela BBC como um dos livros que precisavam ser lidos no verão de 2016 e em 2017, ganhou o prêmio BTBA de Melhor Livro Traduzido. Seus direitos foram vendidos para uma editora holandesa e vai virar um filme.

Evoé, Lúcio Cardoso!

11.10.21

O CULPADO X CULPA

          

   O Culpado, da Netflix, é um remake do filme dinamarquês Culpa, disponível na Amazon Prime. Assisti ao filme original em 2018 na 42ª Mostra Internacional de São Paulo (algo que não perco há 18 anos) e das 38 películas que vi naquele ano, foi a melhor, como escrevi no meu blog.

     A versão de Hollywood tem direção de Antoine Fuquae e Jake Gyllenhaal como protagonista, um policial obrigado a atender ligações de emergência enquanto aguarda o julgamento por uma grave falta. Na véspera da sessão que irá julgá-lo, ele atende a ligação de uma mulher que pede socorro. Todo o filme decorre durante esta chamada, interrompida e retomada, num crescendo gigantesco de tensão.

        Antoine Fuqua é um diretor irregular amante do clichê e conhecido pela falta de sutileza e de refinamento narrativo, vide o seu fraquíssimo Rei Arthur e o previsível Nocaute, este último com o mesmo Gyllenhaal, aqui ligado no modo turbo de atuação, fazendo o oposto do que aconselhava um dos maiores atores de todos os tempos: Marlon Brando, para quem um ator deveria sempre dar 50% da sua atuação máxima. Gyllenhaal não seguiu esses conselhos e tem uma interpretação de exagero constrangedor.    

      O filme original, com ator e diretor praticamente desconhecidos, tem toda a carga dramática no potente roteiro e prende o expectador à cadeira numa ansiedade lancinante com pouco mais do que um cenário, direção de arte minimalista e interpretação contida. O remake dá pouquíssimo espaço para que o expectador tire suas conclusões, referendando a máxima de que ninguém jamais perdeu dinheiro em Hollywood por subestimar a inteligência da plateia.

       O Culpado põe o ator em conflitos adicionais e dá-lhe uma muleta na forma de uma bombinha para asma que não estão no original simplesmente porque desnecessários. A inserção no ramake das cenas de incêndio nas florestas da Califórnia são mais um recurso dramático que foge do original. São inserções legítimas mas também são dispensáveis e só estão ali para distrair. As cenas em que Gyllenhaal exerce seu histrionismo no banheiro, com direito até a vômito, deveriam estar num eventual “Manual de Canastrice”.

     A frase da supervisora do protagonista quase no fim do remake acrescentou uma ruindade que extrapolou meu nível de cortisol: “Broken people save broken people”. O sentimento é que alguém me serviu um prato não apenas requentado e já mastigado mas, não confiando na minha capacidade, aproveitou para digeri-lo para mim.