28.7.07

O Punhal do Silêncio


Parecia ter acontecido em outra vida, não a sua, o dia em que ela vira aquele homem pela primeira vez. Nem se lembrava de que fora uma gota de suor que lhe despertara um desejo incontrolável por ele. Não lembrava que aquela era uma tarde pastosa, enviesada de calor modorrento e ela decidira sentar-se num café para tomar um suco que, por mais esforço que faça, jamais se lembrará de que era de hortelã.


O toldo verde clarinho fazia da sombra sobre a calçada externa do bar uma bênção em meio à praga bíblica do calor. Foi quando aquele homem apareceu à sua frente, materializado, subitamente, num terno azul marinho e gravata de seda para trocar o pneu furado do carro.

Ele havia tirado o paletó e arregaçado as mangas. Havia um misto de limpeza e masculina segurança naquele homem à sua frente, trocando um pneu com uma habilidade que a encantaram. Mas nada disso também ela se lembrava. Não lembrava da camisa branquíssima e de um cinto de couro combinando e nem lembrava que havia uma gota de suor, bailando, esplêndida. Uma equilibrista precária, toda feita de luz e calor, dependurada em uma das suas sobrancelhas.

Ela ficou hipnotizada com a bailarina gota de suor presa à berrante masculinidade da sobrancelha dele, em meio a um calor estupidificante. Alheia a tudo, transbordando de vida, refletindo o brilho de um sol de Saara, havia aquela gota cheia de virilidade, pendurada perigosamente numa sobrancelha que emoldurava o rosto dele.

Ela, absorta, imaginava que a gota fosse despencar após tanto se debater e desafiar a lei da gravidade, teimando em agarrar-se àquele homem como numa espécie de posse.

Foi então que ele, ignorando o drama daquela gota, num gesto espontâneo, virou-se para o sol - e seu rosto brilhou como o de um herói de bronze -, e esfregou na testa as costas sujas da mão. Ela, decidida como jamais seria depois disso, levantou-se, segura, e foi até onde ele estava. Com um lenço branco, molhado com algumas gotas de Chanel, ela limpou a mancha de graxa na testa daquele homem, exatamente no lugar onde estava antes uma perfeita gota de suor.

Mas nada disso ela se lembrava mais e, provavelmente, ele também não, pois sequer se perguntavam onde fora parar a lembrança daquele encontro encharcado de sol em que ela o conquistara com o gesto único de secar-lhe o rosto com um lenço perfumado. Onde foi parar a lembrança da tarde inteiramente mágica que passaram juntos para só se separarem quando os pedaços estivessem tão moídos que ninguém pudesse colar? E onde foram parar aquelas tardes douradas quando eram tão felizes? A partir de quando se iniciou a ausência das lembranças dos primeiros dias em parques floridos, onde passeavam de mãos dadas e que, de tão distantes na memória, pareciam ter ocorrido em outra vida. ?

O silêncio que se cristalizava a cada dia carregava o peso das onipresentes ausências e ela sentia uma falta esquisita da companhia daquela amiga que desprezava e ele ansiava, estranhamente, pela gargalhada incômoda daquele amigo que detestava. O silêncio opaco, uma lua nova em céu de chumbo denso, era como a escuridão que se abate sobre um domingo chuvoso que se finda, traduzindo a dor de um amor que acaba.

Os gestos pequenos pareciam urrar e os mais banais, carregar uma dose mortal de veneno. Antes, cada olhar era pleno de significados decifráveis. Hoje, nada dizem a não ser o vazio em si mesmo, a ausência total de interesse pelo que não tem mais importância e o doce das madrugadas frias que se transforma em amargores e ânsias.

Nem mesmo se lembram quando pararam de darem-se as mãos que se esvaem como animais que se escondem no fundo lodoso das fossas de mágoa, nos mares profundos de rancor, procurando extinguir toda a luz para que não sejam vistas, como houvesse uma dor imensa em serem atingidas por qualquer réstia de sol ou mesmo o menor toque.

As mãos são as primeiras vítimas e nelas reside a primeira memória do começo do fim, com suas unhas sujas e roídas, com os nós dos dedos pontudos ameaçando romper a carne, nas alianças que não deixaram sequer as marcas nos dedos médios, nos esmaltes partidos, nas cutículas feridas, nos pêlos que começaram a ficar esbranquiçados e nas manchas que vieram muito tempo antes do tempo.

As noites, agora sem nada pedir em troca, abrigavam aquele homem em cafés empoeirados onde o amor já acabara, ou em inferninhos onde a vida pulsa ou lateja com arremedo de alegria anestesiada de uísque e cervejas, em garrafas e espelhos pontilhados de ferrugem que refletem rostos puídos, corpos amassados que avançam insones pela madrugada, e a rompem, tontos de angústias e simulacros de desejo, à procura de reflexos de outros solitários.

Ela escolhera aquele homem e após esse tempo nem mais sabia se fora uma escolha movida pelo desejo ou pelo desespero ou um pouco de cada. Mas ao menos quando não agüentava mais a solidão da carne, do corpo que treme de febre e de desejo, empreendia buscas sombrias pelas madrugadas, quando se sentia caçadora solitária. Às vezes eram empresas rápidas, mesmo sorrateiras, algo rudes. Outras vezes parecia haver um certo carinho, quase romance, na areia de alguma praia ou sobre lençóis de linho ou cambraia, como se ela precisasse da energia que pensava faltar, mas que na verdade transbordava. Mas às vezes nada.

Antes não desejasse esses pêlos ásperos, essas peles secas de odores masculinos, cheiros fortes de suores em corpos sujos ou machucados de embates esportivos, repletos de testosterona saindo pelos poros, estourando pelas veias salientes e bigodes espessos, esvaindo-se, plenos da vida que ela desejava mais que ar puro.

Antes fosse envolta nos desejos suaves de travesseiros de plumas, de fronhas e lençóis, limpos, coarados ao sol e com essências aromáticas como jasmim ou sândalo, nas coxas lisas e nas ancas largas das mulheres, nos seios fartos e nos ventres densos e acolhedores. Mas sabia que ilusões são chacais à espreita, prontos para pegar sonhadores de assalto, pois não há perfeição em um lado ou em outro quando sempre o que se quer é o que o outro tem e o desejo pelo exótico e pelo estranho vem quando o corpo se acostuma demais aos prados ensolarados, aos montes verdes ou aos mares límpidos onde o amor pode estiolar e morrer de repente sem que se sinta como isso aconteceu, sem sobressaltos.

E nos fins-de-semana, quando a razão não sobrevive, incólume, a dois dias sem a rotina do trabalho, quando os horários vazios os enlouquecem nas manhãs de sábado de sol e nas tardes de domingo repletas de mormaço pegajoso, ela grita, chorando, bêbada, ridícula e com a maquiagem borrada, na frente das visitas:

_ Você nunca mais me chamou de bem! Você nunca mais me beijou na boca com a língua molhada! Você nunca quis um filho meu!

Ela finge que não sabe, e finge tão bem que acredita, ou finge que acredita, que a dor das perdas dos fetos também doeu nele. Ele, que tantas vezes chorou escondido quando pensava em como ambos foram murchando, em como o sexo deixou de ser vertiginoso e em como a morte dos fetos passou também a fazer parte da rotina.

Hoje, a economia de olhares e de toques, a mesquinharia das palavras não ditas sepulta e diluem o amor, transformado em moléculas de solidão, partículas de desencanto, minúsculas sobras afetivas perdidas no caldo amorfo dos sentimentos de dois delinqüentes conjugais.

Melhor do que sepultarem o que de feliz viveram era nunca terem experimentado a felicidade que tiveram um dia se são incapazes de aceitar que, se não foi possível com eles, ainda pode ser com outros se pudessem libertar-se de tanta dor. Mas eles nada dizem, ou dizem o que jamais deveria ser dito, pois uma só palavra pode destruir todo um mundo e um silêncio pode ferir mais fundo que um punhal.

21.7.07

Ainda há vida debaixo dessa vaia




“...Capital do sangue quente do Brasil /
capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil/
cidade sangue quente/maravilha mutante” *

O Rio de Janeiro continua lindo...O Rio é uma cidade maravilhosa...O Rio lavou, enxaguou, amaciou e coarou a minha alma amarfanhada ao sol do Maracanã...O Rio de Janeiro é o inferno dos petistas...Purgatório da beleza e do caos. Ufa...ainda existe gente com sangue no olho! Salve o Rio!!!

Há duas maneiras básicas de se falar sobre as memoráveis vaias que os cariocas dedicaram ao presidente. Uma, é analisar os fatos; outra é discorrer sobre versões. E lutar com palavras até romper, em vão, a manhã.

Belíssimas vaias! Lindas! Fruto do mais íntimo do sangue carioca, um povo notoriamente desabusado. Vaias que se ensaiadas não dariam tão certo. 90 mil no maracanã. 10% (9.000 almas) eram convidadas dos patrocinadores oficiais do Pan: Caixa, Petrobrás, Banco do Brasil e outros parentes estatais...Convidados vaiando os anfitriões? Que mal-agradecidos, não?

Mas petista que é petista gosta mesmo é de versões. Eles escrevem na cabeceira da cama e repetem todo dia ao acordar: “Onde houver fatos, prefira as versões”. Há versões para todos os gostos. Petistas jogam várias ao mesmo tempo na parede. A que gritar está viva.

Versão 1: A claque golpista do demo César Maia teria levado a maior parte dos vaiantes e ensaiado tudo. Esta daqui miou fraquinha quando bateu contra o muro do fato. A prefeitura do Rio só tinha distribuído 600 convites contra 9 mil dos patrocinadores. E também vaiou-se o governador aliado, não foi? Ahh, esses tucanos e demos quando se juntam....Com o tempo tinham que aprender as lições de terrorismo psicológico e desonestidade intelectual com os mestres e PHDs petistas, não tinham?

Versão 2: Essa elite não engole um operário na Presidência da República...Essa aqui sempre cola. Jogue essa versão na parede que ela sempre grita. Hoje, ela já mia, meio moribunda, meio desenxabida, mas sempre tem um Marcos Profeta ou um Raimundo Luiz, uma Márcia Rocha, um Cláudio Carvalho ou Melo, uma Conceição Moraes ou um Ricardo Gurgel para ouvir esse mio quase inaudível. É uma gente capaz de engolir versões mulistas com a desenvoltura de cuspidores de fogo dos circos de horrores ou dos engolidores de espadas das antigas feiras de aberrações itinerantes.

Detalhe: Cito nominalmente os 7 colegas mulistas acima apenas porque são meus amigos. Não vou atirar contra outros mais perigosos. Sei que posso levar golpes baixos e não ando com muita resistência para certas gentes...Mas há carapuças disponíveis em tamanhos P, M e G.

Mas sabe uma coisa? Entre fatos e versões não há como conciliar. Não há A verdade. Petistas só acreditam no que querem: vaias como fruto de lavagem cerebral coletiva, mensagem subliminar na letra do Hino Nacional cantada por Elza Soares, orquestração das elites...há versões ao agrado de todos os matizes e neurônios

Petistas e saúvas não são abalados por vaias. Nem a urna os extermina. Como cisticercos, vivem anos fingindo-se de mortos e, ao ressurgiram trazem dólares na cueca, dossiês fajutos e, dependurados em CUTs, UNEs ou MSTs, vão logo se reproduzindo e gritando por verbas e cargos. São diagnosticados a bordo de ambulâncias superfaturadas, onde relaxam e gozam das misérias alheias. Seu habitat favorito é o Planalto, onde se protegem de vaias em torno de espelhos d’águas e rampas. Ali, dificilmente se distinguem dos caititus.
Ah. Eles têm também a patente da vaia. Quem quiser vaiar precisa lhes pagar royalties: “O povo, unido, jamais será vencido”, “Um dois três, quatro cinco mil....” Cuidado com essa gente! “Ainda há vida debaixo dessa vaia”.

*Rio 40 graus (F.Abreu/F.Fawcet)

Cobre, porque é um circo! Cerca, porque é um hospício! Relaxa e goza, porque é um bordel!


Respeitável público. Com vocês, o Grande Circo-Bordel Brasil! No centro do picadeiro podemos ver a performance do palhaço Nove Dedos Teflon e da sua partner Marisa Parede Bege. Rodopiando nos trapézios, vemos a família inteira da estrela vermelha. Veja como eles dão entrevistas e equilibram, ao mesmo tempo, cargos e benesses com a desenvoltura das profissionais dos calçadões.

O globo da morte da TAM explode em chamas, vítimas por todos os lados, mas o palhaço Nove Dedos Teflon disfarça, assobia e olha para os lados. Sua partner, com cara de paisagem, traz o tom certo do bege no rosto. Tailleur combinando.

Senta que o leão é manso! gritam dos bastidores. Editoriais de jornais pipocam, o fogo consome a lona verde e amarela comprada sem licitação. O público, estupefato, é um torpor só. O fogo é apagado pelos bombeiros. Ambulâncias e olhos vermelhos de lágrimas e fumaças. Chagam os médicos e os analistas políticos. O palhaço Nove Dedos Teflon desaparece de cena. Breves vaias são ensaiadas.

Enquanto isso, vacas sagradas pastam no curral do Senado, bezerras douradas pululam no Planalto Central, transposição de verbas nas veias abertas das águas da integração alimentam a sanha das empreiteiras que irrigam as campanhas da companheirada, saraivadas de vaias reverberam em vão, águas profundas da Petrobrás, sanguessugas, mensalões, cuecões e dossiês para todos são oferecidos no programa do bordel Brasil. Cada um pegue o seu, pois a sacanagem foi liberada.

A trilha sonora da orgia é interpretada pela orquestra do maestro Gil e suas Pretas, que canta o samba enredo: “Nunca antes neste paiz” tema que acompanha a insânia. A mulher barbada Marta Suplício relaxa e goza, o domador Guido Manteiga saúda o caos do desenvolvimento, o contorcionista Waldir Moleza pede um aumento. O equilibrista Nelson Peleguinho se esconde nos camarotes.

Alheio à balbúrdia, o contra-regras Marco Aurélio Gracinha faz top top para a platéia com a vulgaridade dos subdesenvolvidos. É...nós ainda precisaremos subir muito para atingir o nível da baixaria comum. Por enquanto, ainda estamos no subterrâneo. Esses tipinhos barrigudos e barbudos do picadeiro-bordel Brasil, auxiliados pela gangue dos 300 picaretas não brincam em serviço.

Perdoem-me as piranhas, os esquizofrênicos e os palhaços, mas eles não são nada comparados a essa quadrilha profissional do Grande Circo-Bordel Brasil.

Tragam de volta a lona, as camisas-de-força e os lubrificantes. Cubram tudo porque é um circo. Cerquem tudo porque é um hospício. Relaxem e gozem porque é um bordel.

Apagam-se as luzes.

15.7.07

Uma linda casa debruçadas sobre o Egeu


Há mais de dez anos trabalhei em uma Vara Federal. Digitava audiências e traduzia depoimentos de réus que falavam inglês. Um dia ela foi parar lá: alta, olhos verdes. Presa. Cinco quilos de cocaína na bagagem. Ela jurou que a droga não era sua. Uma grega.

Falava inglês, grego e africâner. Traficante internacional? Ela jurou que a droga não era sua. Fui chamado para digitar seu depoimento e traduzi-lo. Uma audiência estranha: o juiz fazia as perguntas, eu traduzia para ela, ela respondia, eu traduzia para o juiz que me mandava digitar o que eu acabara de traduzir.

Antes de a grega chegar eu já estava indócil, ansioso por vê-la. Na foto xérox do passaporte anexado ao processo lembrava uma femme fatale do cinema noir: misteriosa e loura. Artificial!, dizia, com desdém, minha colega Altenir. Não me importava. Ela era grega e os gregos estarão sempre no panteão da minha admiração. Li seu depoimento na Policia Federal. Ali ela já jurava: a droga não era sua.

Chegou algemada e com a roupa e o cheiro do cárcere. Sentou-se à minha frente. Fiz as perguntas costumeiras: nome, estado civil...Seu inglês tinha um sotaque lindo...As gregas seriam sempre assim? Helena, Penélope, Antígona? Até as traficantes?

No meio do seu depoimento o juiz saiu rapidamente para atender uma ligação. Aproveitei para perguntar-lhe: “De que cidade grega você é?”

Surpresa pelo meu interesse, ela respondeu: “Aegina”.

Repeti como autômato: “Aegina”....Perguntei ainda: “Sua família mora lá?”

Ela respondeu com uma tristeza infinita, mas com um brilho novo no olhar. Ele, o brilho, não estava lá antes. Surgiu quando ela disse, quase gaguejante: “Sim. Meu pai tem uma linda casa debruçada sobre o Egeu”.

Não lembro de mais nada daquele dia. Somente a imagem fixa de uma linda casa sobre o Egeu. Ninguém que possui uma casa assim, debruçada, lindamente sobre o Egeu, pode ter uma filha traficante. Ela jurou que a droga não era sua, mas o juiz discordou e condenou-a a quatro anos e meio de cadeia.

Ainda tive a oportunidade de vê-la uma segunda vez antes da sentença quando traduzi o depoimento de uma testemunha, seu namorado sul-africano.

Dois anos se passaram e eu pouco me lembrava dela. Sabia que o seu processo era complicado, tinha dupla cidadania e tentavam deportá-la ou expulsá-la do Brasil.

Até que em 1995 ganhei de presente uma viagem para a Europa. A viagem, além da França, Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha, Suíça, Bélgica e Holanda incluía a Grécia. E além de Atenas, haveria um passeio pelas ilhas gregas. E entre as ilhas que eu visitaria estava exatamente a ilha de Aegina. Lembrei-me de uma linda casa debruçada sobre o Egeu. Eu precisava encontrar novamente a grega. Talvez ela ainda estivesse presa. Quem sabe eu não encontraria o seu pai?

Usando os conhecimentos de um estagiário que trabalhava na mesma Vara, durante uma manhã e fora do nosso horário de expediente, fomos à penitenciária feminina. Lá eu perguntei por ela. Ainda estaria ali? Teria sido deportada?

Continuava presa. Chamaram-na. Fiquei ansioso. Afinal, passaram-se mais de dois anos. Quando caminhou em minha direção quase não a reconheci. Emagrecera. Seus cabelos tinham agora fios brancos e ela estava pálida. Mas ela me reconheceu imediatamente e abriu um enorme sorriso. Abraçou-me. Para provar que se lembrava de mim disse corretamente o meu nome.

Não recebia visitas há dois anos. Contei que iria para a Grécia. Para Aegina. Seus olhos brilharam.
“Você vai para minha cidade. Para minha ilha?”

Ofereci-me para levar um presente para o seu pai, afinal ele tinha uma linda casa debruçada sobre o Egeu não tinha?

Ela sorriu e perguntou: “Quando você chegará lá?”

Respondi: “20 de setembro”.

Ela não acreditou. Era o dia do seu aniversário.

Ali estava eu, na penitenciária feminina, sendo abraçado por uma traficante grega que tinha os olhos molhados e um enorme sorriso no rosto. Uma virginiana que aniversariava no dia em que eu chegaria à sua ilha do mar Egeu no dia 20 de setembro de 1995

“Que coincidência”, disse eu e me ofereci para tirarmos uma foto que eu levaria para o seu pai. Havia levado a minha velha Yashica pré-histórica. Ainda nem se falava em máquina digital.

Ela agradeceu, comovida, e contou que o pai não sabia da sua prisão. Não lhe escrevia para que ele não descobrisse a origem das cartas: a cadeia. Nada sabia do pai nesses anos.

Determinado a encontrar aquele homem, dois meses depois pousei em Atenas. Jamais conseguirei descrever a sensação única que foi estar na cidade que me encantava desde garoto. Se havia um lugar no mundo que sempre sonhei conhecer desde pré- adolescente, não era a Disney, mas Atenas. Nunca fui um menino normal mesmo.

Foram dias inesquecíveis com minha melhor amiga, passeios pela cidade histórica, edifícios de mármores milenares, museus, noites com sol às 9 da noite, jantares em restaurantes ao ar livre com música grega ao vivo em lindas praças iluminadas, repletas de árvores frutíferas, figueiras, oliveiras e limoeiros. Tardes de passeios pela Acrópole, Teatro de Herodes, Tempo das Cariátides, Areópago e o Partenon. Senti-me pisando onde Sócrates, Platão e Aristóteles haviam pisado.

Terceiro dia: viajamos para o Peloponeso, passando por Corinto e sobre o famoso canal que liga o Mar Jônico ao Egeu. Seguimos para Epidavros onde conferimos a lendária acústica do seu famoso teatro construído há séculos. Continuamos o passeio por Náuplias, Mégara, Argos e Micenas, onde conhecemos, nas montanhas, as ruínas do palácio e da tumba de Agamenon. Atravessamos a famosa e milenar porta dos dois leões.Um privilégio.

No penúltimo dia da viagem pela Grécia seguimos até o porto de Pireu e embarcamos em um cruzeiro pelas ilhas de Hydra, Poros e Aegina. Finalmente eu iria tentar encontrar o pai da minha “amiga” traficante.

Hidra e Poros são ilhas paradisíacas, repletas de templos e história, tudo muito bem contado pelo nosso guia. Seus portos eram fervilhantes de vida, cor e alegria com grandes navios transatlânticos ao lado de pequenos barcos de pesca dos marinheiros locais. Então chegamos a

Aegina sob um lindo sol de outono. O mar Egeu inebriava os olhos com seus matizes de azul indescritíveis. Muito mais belo do que eu jamais imaginara. Ficaríamos ali apenas três horas. No programa, um almoço em um hotel, mas minha amiga se enturmou com um grupo de brasileiros e aceitou que eu fizesse outros planos.

No píer de Aegina procurei um morador que falasse inglês e indaguei pelo nome do pai da grega. Após várias perguntas, indicaram-me o local. Não compreendi direito, mas arrisquei. Subi várias ladeiras e me perdi seguidas vezes, indo parar em vielas e becos sem saída. As crianças e velhas a quem eu fazia perguntas não me compreendiam. Todas as casas eram pintadas com o mesmo branco e as mesmas janelas azuis. As ruas estreitas serpenteavam, sempre subindo e os números das casas não obedeciam a qualquer lógica. Suando muito, faminto, sedento e vendo o mar se afastar cada vez mais, à medida que eu subia a montanha já estava pronto para desistir dessa aventura impossível.

Aegina, sob o sol de mais de 40 graus acabava comigo. Já passava há tempos do meio-dia. Com fome e sede, e nenhum dracma no bolso (em 95 ainda não existia o euro) para comprar uma coca cola eu imaginava a minha amiga já almoçada e tomando banho de mar na praia do hotel ou se afogando em daikiris, pelo que eu conhecia dela.

Em menos de uma hora meu barco partiria e ali estava eu, no alto de uma montanha, molhado de suor e faminto...

Ao sentar-me sob a única oliveira que encontrei numa pequena pracinha vi a casa que procurava. Era igual às demais, mas o número da porta batia. Dei um pulo e apertei a campainha. Demorou uma eternidade. Apertei de novo até que o velho apareceu à porta. Cabelos e bigodes brancos, olhos claros, camisa de manga comprida abotoada até o colarinho e boina marrom. Uma réplica de todos os velhos que eu vira desde que chegara a Aegina.

Educadamente, eu disse Parakaló, seguido do seu nome, como a filha dissera.

Ele respondeu: Kalispéra e abriu o portão

Foi quando me vi em um lindo pátio de uma casa exuberantemente arejada, com um pórtico de madeira branca coberto de trepadeiras e samambaias que se debruçava sobre um belíssimo mar Egeu de um azul turquesa que estava além da minha imaginação.

Ele e eu não falávamos uma única língua comum, mas nos entendemos com vários gestos e sorrisos. Ele compreendeu que eu conhecera sua filha no Brasil. Ofereceu-me deliciosos pistaches e azeitonas pretas, colhidos de árvores do seu jardim. Sentei-me sob a sombra formada pelo beiral do telhado e, com a fome que estava, devorei aquele prato. Ele, então, serviu-me ouzo, o vinho grego com gosto de anis e pães temperados com azeite de oliva, além de uma ótima salada de polvo que ele se gabou de ter pescado naquela manhã, pelo que entendi.

Eu estava muito emocionado. Tudo aquilo parecia irreal. Há quase três anos eu ouvira falar daquela linda casa num depoimento de uma traficante grega e agora ali estava eu, bebendo e comendo com o seu pai. E não podia contar que a filha estava presa. Mas podia registrar tudo aquilo em fotografias.

Ao me despedir do velho, recebi um beijo no rosto. Alguma coisa me dizia que ele sabia da verdade, mas teve a nobreza de não perguntar. Seu sorriso era idêntico ao que vi no rosto da sua filha, um mês depois, quando apareci novamente na penitenciária, levando as fotos tiradas naquela bela casa de Aegina.

Contei a ela do vinho, dos pistaches, do azul do mar...Seu olhar de gratidão encheu-me de profundo orgulho. Custou-me tão pouco e, no final, fui eu quem teve um dia e um almoço maravilhoso ao lado de um velho grego que nunca me vira na vida. Despedi-me da minha traficante grega sem lhe perguntei se a droga era realmente sua. Não importava, ela perdera aquele jogo e, afinal, já estava presa mesmo.

Jorge Luis Borges já dissera: “Há uma dignidade no fracasso que dificilmente encontramos na vitória”.