28.2.08

É O BICHO! É O BICHO!

Europa em 1995 não passava de um sonho, mas as coisas mais extraordinárias acontecem quando você não estava fazendo planos. Era mais ou menos isso que John Lennon chamada de vida....mas essa é outra história.

Lembro-me do telefonema e do convite: “Você quer ir à Europa comigo?”. Pensei que era uma brincadeira da minha amiga gaúcha milionária, cujo marido, grande fazendeiro de soja, não tinha interesses em outros continentes. Menos de um mês depois recebi um envelope contendo os bilhetes aéreos e todos os vouchers de uma viagem que incluía 10 países europeus em um roteiro de um mês.

Achei que estava sonhando e lhe telefonei tremendo. Expliquei que pensava ser a proposta uma brincadeira, que eu não poderia dar a ela aquela despesa etc. Ela disse que eu não precisaria me preocupar com nada pois era seu convidado e se eu pudesse pagar pelas minhas refeições estava tudo certo.

Argumentei que não poderia pedir férias para dali a menos de um mês pois elas já estavam marcadas para meses depois e que para antecipá-las precisava de uma justificativa do meu chefe. Expliquei a ele que ganhara a viagem de presente, mas nem precisei entrar em detalhes. Ele logo autorizou.

Já contei aqui episódios estranhos de viagens que fiz com amigos esquisitos, perdidos em Miame e no Bronx e um passeio inesquecível por uma ilha grega onde almocei com o pai de uma traficante que não falava nenhum idioma que eu conhecesse. Essa é uma daquelas.

Depois de percorrermos vários países numa excursão composta por muitas velhinhas de diversos países latino-americanos e alguns brasileiros, vi que meu dinheiro estava acabando. Comida na Europa é muito caro e eu tinha combinado com minha amiga que eu pagaria minhas refeições já que ela estava pagando tudo: hotéis, museus, passeios, passagens aéreas etc.
Eu acabara de comprar meu primeiro apartamento e estava duríssimo de grana. E ainda tinha que economizar ao máximo em comida para gastar o pouco dinheiro que me restava em caríssimas ligações internacionais para o Brasil onde havia ficado uma fonte dispendiosa de emoções, aflições e desejos que, por sorte ou azar, eu conhecera um mês antes da viagem. Um romantismo quase literário ter que escolher entre gastar o dinheiro com comida ou cartões telefônicos já que em 1995 ainda não sonhavam com celulares.

Estava eu nesse dilema quando descobri uma forma de comer de graça. Primeiro foi esconder os pãezinhos, frios, frutas e geléias dos cafés da manhã para devorar mais tarde. Os hotéis têm vigilantes para isso já que não é permitido. Acho que desconfiam especialmente dos brasileiros. Muitas vezes não consegui levar meu farnelzinho.

Mas fiz amizade com a maior parte dos passageiros do ônibus da excursão e a amizade com as coroas do grupo permitiu que eu bolasse uma outra estratégia. Nos almoços ou jantares em grupo eu sempre pedia o prato mais barato, normalmente uma pizza ou uma salada, e quando a comida de todos chegava, eu comia de tudo e pagava só a minha pequena porção. As coroas achavam lindo como eu comia e falava, falava e comia. Elas nem desconfiavam de que eu estava era duro.

Mas nem assim o dinheiro sobrava, pois as ligações me dilapidavam e comecei a vender as minhas coisas. Primeiro a máquina fotográfica novinha, depois os poucos presentes que comprei pelo caminho. Fui me desfazendo de tudo para gastar com telefonemas.

Até que após Atenas, Bruxelas, Londres, Paris, Amsterdã, Zurique, Frankfurt, Colônia e Verona chegamos a Florença. E meu dinheiro estava no fim. Ainda passaríamos por Veneza, Roma, Pisa, Nápoles, Nice, Barcelona, Madri...o que fazer? Eu jamais pediria dinheiro a minha amiga. Eu tinha que me virar para comer, afinal eu era um homem ou um rato?

Chegamos a Florença numa noite muito quente e na manhã seguinte fizemos um passeio lindo, mas cansativo por museus, praças e catedrais. Quando fomos almoçar já eram quase 5 da tarde e meu estômago só tinha visto comida às 7 da manhã. Nem um sanduichezinho do hotel consegui roubar.

Descobrimos um restaurante. Lotado. Entramos numa imensa fila que parecia nunca se mover, a comida, caríssima, vinha em porções individuais que ficavam numa vitrine e eram cobertas por um filme de plástico. Comprei minha saladinha básica confiando que meus amigos pediriam pratos fartos que me alimentassem como sempre acontecia. Subimos três andares de escada para achar uma mesa vaga, pois todos os lugares estavam ocupados. Sentamos e devoramos a comida. Quando terminei de comer notei que meus colegas também comeram tudo. Não deixaram nada para mim. E eu ainda estava morrendo de fome e sem dinheiro.

Eu tinha que pensar rápido num modo de comer. A alternativa era descer 3 andares de escada, enfrentar aquela fila enorme, pedir uma comida caríssima, subir de novo 3 andares ou pedir dinheiro a minha amiga. Nenhuma dessas alternativas me agradava. Foi quando aquela mulher me salvou. Abençoadas sejam todas as portuguesas chamadas Gilda.

Ela estava sentada à mesa vizinha e resplandecendo sobre aquela mesa à sua frente uma linda, enorme e intocada lasanha. A mulher tinha afastado o prato para o lado. Percebi que ela não iria comê-la. Eu precisava comer aquela lasanha nem que fosse a última coisa que eu fosse fazer. Quase invoquei a memória de Scarlett O’Hara diante de uma Tara em ruínas: “....Eu jamais passarei fome!”. O que Scarlett estava disposta a fazer, eu não sei, mas eu precisava inventar algo. Não podia simplesmente pedir a comida à mulher desconhecida. Afinal eu ainda tinha um pouco de dignidade.

Eu tinha que comer aquela lasanha. Como sou uma pessoa sem muita vergonha, dei um jeito de perguntar:

– Com licença, a senhora é de Portugal?

Ela me olhou surpresa e respondeu com um sorriso:

–Sim. Sou portuguesa. – E, com o sotaque inconfundível perguntou: – Você é do Brasil?

Confirmei mantendo o sorriso faminto no rosto. Perguntei seu nome:

– Gilda.

– “Nunca houve uma mulher como Gilda” – Citei.

Seus olhos brilharam como se encontrasse outro fã do mesmo filme:

– Ahhh, tu também gostas da Rita Hayword? Meu nome é em homenagem ao personagem dela naquele filme.

Conhecimentos cinematográficos vêm a calhar em certos momentos

– Como te chamas? De que parte do Brasil tu vens? – Ela perguntou. Eu estava progredindo.

– Chamo-me Luiz. Sou da Bahia.

Ela bateu uma palminha e deu um gritinho

– Ahh, então tu és da Terra do Bicho!

Não entendi. Ela explicou, após cantarolar com sotaque português “É o Bicho/ É o Bicho/Crocodilo eu sou!”, que Ricardo Chaves fizera turnê por Portugal e essa música era sucesso por lá. Foi até jingle da campanha do candidato a presidente do país.

Então Gilda gostava de música baiana! Perguntei se também gostava de fado. Ela afirmou que obviamente gostava, pois era de Portugal. Então eu lhe disse:

–Vou cantar um fado para você !

– Vais cantar um fado para mim? – Ela não acreditou.

Antes que ela pensasse muito comecei a cantar baixinho o fado Estranha Forma de Vida, de Amália Rodrigues, convenientemente gravado por Caetano Veloso no disco Totalmente Demais e que eu sabia de cor e com sotaque português e tudo: “Foi por vontad’Deus / Que vivo nest’ansiedade/ Que todos os ais são meus/ Que é tod’minha a saudade/ Foi por vontad’Deus / Que estranha forma de vida/ Vive est’meu curação...”

Ao final da minha apresentação particular a portuguesa tinha os olhos cheios de lágrimas. Chorava e dizia:

– Que fado lindo! Meu finado marido cantav’ele para mim!

O que eu havia feito? Levei a mulher às lagrimas! Como eu ia pedir a lasanha agora? Mas ela logo se recuperou e para minha surpresa chamou seu pai que estava sentado próximo. Apresentou-me a ele e disse-lhe que eu sabia cantar aquele fado.

O homem, um português bonachão de uns 60 anos, barrigão, fartos bigodes e uma alegria típica de excursionistas pegou-me pela mão e exigiu que eu cantasse novamente o fado, mas desta vez no meio do grupo. Foi então que notei que todo aquele 3º andar estava ocupado por uma excursão de Portugal.

Eu, que não suporto aparecer, achei aquilo um desafio estimulante. Segui o portuga que me apresentou a todo o grupo como um brasileiro que iria cantar-lhes um fado. Meus amigos à minha mesa não acreditavam naquilo.

Foi uma experiência! Cantei o fado aos berros. Os portugueses adoraram. Fui muito aplaudido. Eles gritavam em coro: Luiz! Luiz! Luiz! Obviamente haviam bebido vários vinhos italianos a mais.

Gilda e o seu pai bigodudo me abraçaram dizendo:

- Quando fores a Cuimbra prucuras Gilda no Automov’Club’. Agora tens amigos em Portugal!

Antes de eles deixarem o restaurante aproveitei a nova amizade e perguntei:

– Gilda, você não vai querer comer a lasanha?

Essa história poderia acabar aqui e eu poderia contar a todos que cantei para comer na Europa, mas incrivelmente ela teve um desdobramento.

Quem já fez uma dessas excursões para a Europa sabe que todas elas seguem o mesmo roteiro pelas mesmas cidades e os ônibus fazem os mesmos trajetos. Quatro dias depois do episódio com os portugueses em Florença minha amiga e eu estávamos em Roma. Ao atravessarmos uma rua em direção ao Monumento a Vitório Emanuel e ao Soldado Desconhecido, ouvi várias pessoas gritando meu nome.

Foi quando os gritos ficaram mais altos e exatamente do meu lado passou o ônibus dos portugueses. Estavam em pleno city tour por Roma e, pendurados nas janelas, uns dez gritavam meu nome. No meio deles se destacava Gilda. Ela jogava vários beijos com as mãos e gritava:

– É o bicho! É o bicho! Crocodilo eu sou!!!

27.2.08

Quantas missas vale Canô ?


Adoraria mudar de assunto e não falar mais do útero do século do Recôncavo, quem sabe encerrar um ciclo após dois artigos seguidos sobre o tema (pois as boas - e as más - trilogias vêm sempre em três). Então talvez com este terceiro artigo encerre a implicância com a velha Canô.

Se eu tivesse um pouco de inteligência esse texto teria um estofo mais filosófico, adentraria o terreno da psicologia social e analisaria a atávica tendência humana de construir seus mitos e heróis para depois simplesmente destruí-los. Penso nisso quando calculo quantas matérias da Folha, Veja, Istoé, Caras, Quem... eu suportarei até que enjoem da ladainha. Afinal chegamos a um bom número redondo. 100 já está de bom tamanho. Que graça ou novidade teriam as matérias: "Canô completa 101!" "Canô comemora 102!" se jornalistas adoram um epitáfio.

Canô vale quantas missas? Henrique IV da França achava que Paris valia uma, justificando qualquer sacrifício por seu proselitismo católico. Penso nisso quando vejo seguidamente o ateu Caetano ajoelhado ao lado da mãe na matriz de Nossa Senhora da Purificação. Afinal, quantas missas vale Canô? Se minha mãe fosse católica fervorosa, como Canô e eu, como Caetano, ateu, me sujeitaria a essas coisas? Gosto menos da minha mãe do que Caetano da dele? Mas minha mãe não me arrastaria para uma Igreja sabendo que eu não creio no Deus dela. Penso que minha mãe respeita mais minhas descrenças do que Canô as do filho ateu dela.

Ora, direis: um filho tem que respeitar a fé da mãe. Mas o que vejo é a figura e os valores da velha Canô devorando a incredulidade do filho, como ela já fizera com a fama conseguida de segunda mão, via Caê. Lembro a pintura simbólica e sombria de Goya que retrata Saturno devorando o filho Zeus. Saturno é Cronos, o tempo inexorável, o velho devorando o novo. Canô, qual Cronos, quer se perpetuar sinistramente devorando tudo.

Mas o espectro da multimidiática Canô me ronda desde que resolvi falar desse tema. Não há uma única publicação que saia sobre ela que vários amigos não me enviem cópias. Parece que não tenho outro assunto para tratar. Há os que, quando a vêm, lembram imediatamente de mim. Um fardo.

Um me mandou um link da revista Vida Simples com a matéria: "Dona Canô: A baiana que é uma lição de calma e sabedoria há 100 anos". Na reportagem ficamos sabendo, pela milionésima vez, que Canô acorda às 6 da manhã e toma café com leite e suco. Ao meio-dia ela come moqueca com azeite de dendê e leite de coco. Prefere a moqueca de arraia com feijão de leite. Além desses dados fundamentais, somos informados de que Canô, (como milhares de senhoras do interior da Bahia), celebra São João com fogueira e mesa farta, comemora São Pedro, faz caruru de Cosme e Damião, reza a trezena de Santo Antônio e (agora sim, algo inédito), comanda a lavagem da Igreja de Santo Amaro. Ficamos sabendo que Isaura é a sua cozinheira de 40 anos e as ajudantes são Fifi e Odília. Informações importantíssimas.

Outro amigo me telefona eufórico com a propaganda de Canô para o Banco do Brasil. O que posso dizer sobre isso? Para certas coisas faltam palavras. Mas não resisto à matéria do Correio da Bahia de 28 de janeiro passado. Ali, verdadeiras pérolas são escritas pelo jornalista Alexandre Lyrio. Um título que ocupa 5 colunas, acompanhado de diversas fotografias estampa: "Dona Canô comanda cortejo da Lavagem de Santo Amaro".

Selecionei as seguintes pérolas da matéria (creia, não é uma crônica) que já começa assim: "O semblante da matriarca dos Velloso carrega a mesma pureza e doçura dos santos"; "Quando surgiu, iluminada, foi recebida pela filha e diva"; Enquanto isso, crescia a `fila de fiéis´ para render homenagens à `santa Canô´; "Foi seguida de perto por um cortejo de 500 baianas, e um caloroso aglomerado de pessoas, algumas delas ávidas por tocá-la para receber sua inspiração". Um comerciante de 61 anos disse: "Em primeiro lugar está Nossa Senhora. Depois rendo minhas homenagens a Dona Canô".

Mas a simbologia mais emblemática da irrelevância de Canô eu testemunhei ao ler sua entrevista para o site EcoFuturo, um portal dedicado a educação ambiental. Ali, Canô é perguntada sobre a poluição do Rio Subaé, assunto apropriado para um site de ecologia.

Canô responde lembrando do passado quando o rio era limpo. Diz: "Hoje o rio está imundo. O povo está pouco se lixando". Então o site pergunta se os moradores mais antigos tentam de algum modo melhorar a cidade. Ora, Canô é uma moradora antiga e a esta pergunta ela poderia responder se está fazendo algo. Mas eis sua resposta:

"A população não tem direito a nada. Quando tem um governo que se interessa pelo lugar, a coisa progride, mas eles não têm interesse. Pouco se incomodam se está limpo ou sujo." Será que fui só eu que achou que ela não respondeu à pergunta?

Mas o site insiste. Dá uma chance a ela: "A senhora sempre foi muito influente, sua casa sempre é referência". Você acha que ela se tocou? Olha a resposta da velha senhora:

"Não suporto política...Não voto em ninguém. Já passou o meu tempo de votar. Fui votar por causa dos meus amigos de Salvador mas para prefeito, não"

Cara pálida, me responda: Se Canô era amiga íntima de ACM e Cia, como de todos os governadores do PFL baiano, de Lula, do ministro Gil e de toda a corriola do PT, porque ela prefere rezar missas a usar a influência para limpar o Subaé? Prioridades, não é? E o que dizer do fato de Santo Amaro ser a cidade que tem o maior índice de poluição por chumbo do mundo. Repito: do mundo! O que será que a velha acha disso? Talvez alguém consiga uma resposta dela entre uma hóstia e uma colherada de vatapá.

Canô virou uma santa, uma seita, uma histeria coletiva, um caso de marketing, um fenômeno social. Essa babação não tem fim! E pensar que depois ainda teremos que agüentar ruas, praças, viadutos, feriados, aeroportos e uma inevitável canonização.