27.9.07

Isto não é uma tese


Não! Tese, não é! Talvez uma hipótese, uma obsessão, vá lá! Quem dera atingisse o nível de aprofundamento que a perfeição em forma de texto, tipo: “Não esqueça a minha caloi” ou “compre batom! compre batom!”, slogans que quem está em torno dos 40 deve, obrigatoriamente, conhecer....mas, je divague...

Falava de hipótese. Pois bem, a minha hipótese, que carece de qualquer comprovação científica, pressupostos epistemológicos ou consistência lógica, é a de que Dona Canô é uma invenção da mente de Caetano Veloso.

Parece uma frase de impacto não é? Mas, como em toda boa teoria de conspiração, há mais perguntas do que respostas. Relembrando: isto não é uma tese, mas uma obsessão.

Pergunta: Quem não nasceu em Santo Amaro da Purificação, não tem sobrenome Veloso nem namorou/casou/dormiu/cantou/tocou/fumou/bebeu ou comeu moqueca com um dos muitos Velosos, por que precisa ser bombardeado com informações completamente irrelevantes sobre a criatura Dona Canô?

Para qualquer leonino, a fama que Caetano possui já seria suficiente. Só que leoninos têm o péssimo hábito da generosidade. Isso não é divulgado. Costuma-se criticar leoninos pela sua vaidade, mas quem consultar qualquer bom horóscopo vai encontrar lá, como característica do leonino a generosidade.

Então aqui temos a primeira parte da teia da conspiração. Caetano é tão generoso em sua vaidade que precisa despejar sua fama excessiva sobre a mãe, Canô? Pausa para explicar as terminologias utilizadas nessa conspiração. Canô existe sim. A mãe de Caetano e Bethânia, bem entendidos. Já Dona Canô são outros quinhentos. Repito: é uma criação de Caetano.

Dona Canô seria uma criatura nascida do profundo complexo de Édipo de Caetano. Acompanhe meu raciocínio conspiratório: Quando você ouviu falar na criatura Canô pela primeira vez? Seria em 1986 quando Caetano dirigiu Cinema Falado? Seu filme experimental muito falado e pouco assistido? Ali Canô já dava as caras velhas (aparentemente ela sempre foi velha) debaixo das asas do filho famoso. Mas, convenhamos, para Caetano não era suficiente, a velha precisava de mais apelo popular. E cinema brasileiro, ainda mais experimental, não renderia a fama de que ele precisava.


Em 1978 ele lançara o LP Muito, em cuja capa branca via-se um círculo azul com a foto de Caetano deitado no colo na mãe. Meio Édipo meio Pietá. E o que se diz da letra de Jenipapo Absoluto, do disco Estrangeiro, de 1989?: “Tudo são trechos que escuto: vêm dela / Pois minha mãe é minha voz”. No mesmo ano, ele escreveu para a Mana Bethânia cantar a música Reconvexo cujos versos pergunta: “Quem não rezou a novena de Dona Canô?”. Mas como a letra da canção prendia a velha Canô em rimas como “suingue de Henri Salvador/ Olodum balançando o Pelô/ risada de Andy Warhol/ mendigo Joãozinho Beija-Flor/elegância sutil de Bobô”, a velha senhora ficou ali, meio perdida entre Pelô e Bobô. Fama, fama ainda não estava garantida, mas, de qualquer modo, já dava para a pessoa sentir que se perdeu a tal novena canônica teve ter perdido uma bela de uma farra. Pelo menos a ela acompanhavam as palavras suingue, balançando, risada, elegância sutil....que novena essa deve ser....


Mas aí Caetano, persistente, escreveu, em 1997, seu livro Verdade Tropical. Livro pouco lido (eu li), mas que dá certo charme espinafrar, como, de resto, dá charme criticar Caetano que debocha dos críticos porque além não atingirem sua capacidade intelectual, ninguém além dele e Canô, sabe dançar aquela dancinha, com as costas de uma das mãos na cintura, corpo arqueado para frente e passinhos miudinhos para trás: a Canô dance.


Voltando ao livro que poucos leram, Caetano narrava ali a frase que a mãe teria dito referindo-se a Gilberto Gil: “Caetano, venha ver aquele preto que você gosta”. Tal frase e sua velha autora continuariam no ostracismo santamarense e Canô não seria alvo de romarias e promessas se Caetano, novamente achando que cinema, música e livro não eram suficientes para aplacar a sua culpa/fama edipiana, fez em 1998 seu cd/show/dvd Prenda Minha.


A indústria cultural é um novelo sem fim. Devidamente desenrolado gera famas e fortunas. Em um momento do cd/show/dvd, dramaticamente, Caetano abre o próprio livro Verdade Tropical e lê textualmente: “Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo dizendo Caetano, Venha ver aquele preto que você gosta....”


Eu estava no TCA e assisti a este show. Vi a platéia aplaudir cada gesto de Caetano, como o simples ato de ele pegar o próprio livro...aplausos....abrir o estojo de óculos, ajeitar os óculos no rosto...aplausos.... fechar o estojo com certa afetação e um clic amplificado pelos microfones....aplausos para o clic....Caetano precisava desesperadamente derramar sua fama sobre a mãe. Um espírito em busca de um corpo para ungir, uma idéia vagando em busca de uma antena para reverberar. O filho gemia em plena ribalta: incensem minha mãe!!!


Até que atenderam suas preces. Neguinho do Samba entendeu o recado e compôs para Daniela Mercury gravar nos últimos anos daquele milênio: “Dona Canô chamou, eu vou Dona Canô chamou, eu já me vou Dona Cano”. A música, ótima, pega mesmo, principalmente devido à voz privilegiada de Daniela e ao arranjo percursivo do genial Neguinho do Samba. Pronto. Era a senha.


Dona Canô levanta e anda! Deixa definitivamente os bastidores e vem à boca de cena cercada de pompa e circunstância. ACM, nos seus tempos de vivo, pedia-lhe a bênção, hoje isso já é uma cláusula pétrea. Cerca-a a entourage, a criadagem de iaiá e as rodrigas. Canô não anda, desfila. Claudica e a cada claudicar velhas, menos velhas, estão ali para ampará-la numa queda que nunca chega. Cada frase que diz é ouvida com uma pausa reverente, como um pronunciamento repleto de significados sapientíssimos. Se ela diz: “Eu gosto de moqueca de tainha”, logo reina um silêncio denso. Lábios se franzem, cabeças balançam. Todos se calam em respeito. Canô sabe o efeito que causa. Se algo não lhe falta é lucidez. Caetano criou um monstro.


Minha teoria da conspiração iria adiante se eu fosse analisar o papel dos demais filhos, netos e agregados, mas eu não terminaria jamais....A mulher já fez 100 anos, foi canonizada em vida, o que é que eu quero mais falando dessa velha e da sua família folgazã?

16.9.07

Duendes, jegues, Canô e outras crenças


Duendes crescem nos jardins como taturanas lisérgicas. Acredite nos duendes, pois eles, devidamente cativados, serão eternamente responsáveis por você. Quem sabe um dia você esteja participando de um concurso de Miss Sauípe Folia e a prova que lhe dará o cetro e a coroa será desenhar um carneiro em uma redoma ou uma jibóia grávida....hmmm... bem avisei que duendes são lisérgicos.

Recomeçando: Acredito em duendes de jardim e em jegues, mas em Canô eu não sei se acredito. Mesmo Canô aparecendo, dia sim, dia também, na coluna social do Correio da Bahia, desfilando no Barra Fashion...Essa mulher insuportável desafia minha credulidade com sua voz enjoadinha como doce de abóbora. Não suporto esse doce. Prefiro o bom e velho jegue.

Terceira tentativa: Santa Canô do Subaé, rogai por nós pescadores, marisqueiros e discípulos de Edith do Prato. Canô é uma invenção, um case de marketing, uma ilusão histérica coletiva em uma missa barroca, uma imagem como aquelas que choram lágrimas de....digamos...dendê. A velha Canô vale para mim tanto quanto uma rave ao som do Arrocha. Acredito em lulas gigantes, no Arrocha e em papos de bêbado, mas em Canô não acredito.

Já que cheguei a esse nível de confissão vou acrescentar à lista da minha falta de crença: Deus, o Hino Nacional, a Seleção Brasileira de Futebol, Anúbis, Bento 16 e os habitantes do lado escuro da lua. Em ETs acredito, mas acho que eles é que não acreditam em mim.

Pronto. Falei mesmo! Não creio nessas coisas que todo mundo crê. Quando rezam o Pai Nosso eu recito, mentalmente, a letra de Festa no Apê! Quando cantam o Hino Nacional, imagino que é a Marselhesa. Quando o Brasil joga na Copa do Mundo sempre torço pelo adversário. Qualquer adversário. Um empate já acaba comigo. E quando vejo Canô na tv imagino que estou vendo um jegue. Logo as coisas ficam mais engraçadas. Essa técnica não falha e eu consigo fingir ser normal. Só não me peçam para gritar gol quando o Brasil marca. Aí já é pedir demais!

Prometi a mim mesmo que hoje fugiria da pauta, mas não sou bom com promessas feitas a mim mesmo. Sou auto enganável. Promessas feitas aos chefes sempre cumpro, mas comigo mesmo a história é outra. Por isso estou me traindo e falando do útero do século de Santo Amaro da Purificação no seu centenário, quando eu poderia estar roubando, seqüestrando, traficando influências no Senado, mas estou aqui, trabalhando honestamente.

É um deliro vão essa tentativa de fugir da pauta, pois meu contracheque exige atenção aos fatos do dia, demanda escrever sobre o seminário da semana, a comemoração e o evento da vez...Isso está incrustado na minha ficha funcional como uma ostra num rochedo. Preciso raspar bem o cérebro para ver se aparece algo por trás da pátina da pauta lúcida, algo mais irracional. Um duende bêbado já estaria de bom tamanho.

Essa página é uma bóia revolta num oceano de calmaria. Santa Canô da Purificação, salvai-me da pauta diária...Dai-me algo para gritar que não soe banal demais...Delírios de um pauteiro...Canô me assombra. Pelo menos eu acredito em jegues!

11.8.07

Travessuras da Menina Má


Quase larguei esse livro de Mário Vargas Llosa na metade. Cheguei a comunicar ao colega Dida Santiago, que me emprestou seu exemplar, que estava desistindo de lê-lo, pois o casal de protagonistas não me conquistara. Beiravam o desprezível e o livro me parecia uma cópia ruim do genial Servidão Humana de Somerset Maugham. Dida, levemente, insistiu. Argumentou que se eu era mesmo obcecado pelo sadomasoquismo deveria ir adiante.

No passado, sentia alguma culpa por largar livros na metade. Ia até o fim, mesmo que a história não me envolvesse, que a tradução fosse ruim, que o enredo fosse fraco. Hoje, não sinto culpa em largar, meio lidos, livros que não me agradam, quando vejo a infinidade de clássicos que ainda não tive tempo de ler. O tempo está contra mim e obras primas teimam em surgir sem esperar que eu antes leia os Kafkas, Borges, Calvinos, Faulkners, Tolstois...que me olham do alto das minhas prateleiras.

Mas a menina má finalmente me pegou em Londres. Quis abandoná-la em Lima e em Paris, mas acompanhei suas maldades. Senti um prazer sutil em ver as barbaridades que ela aprontava com o pobre diabo peruano Ricardo, mesmo detestando a vulgaridade e a vigarice da menina má, mesmo achando o bom mocismo do protagonista beirando o inverossímil, lembrei dos personagens de Servidão Humana, em que Philip se deixava humilhar e torturar pela intragável Mildred. Fui com o casal até o fim. Sábia decisão. Obrigado, Dida.

O bom menino e a menina má, em um mundo perfeito, jamais se encontrariam. Mas o mundo não é perfeito e talvez esse seja realmente o seu encanto. O que reservaria um mundo hostil para um bobo como Ricardo, um garoto sem ambições? Se bem que a única meta que ele tinha na vida fosse viver toda a vida em Paris...e ele realizou. Não é mesmo um grande feito? Mas o peruanito acabou mesmo foi tendo uma vida atribulada e amargurada pelas idas e vindas dessa vampira pragmática, dessa cascavel aventureira, dessa alpinista social de segunda. A única cor em sua vida cinzenta.

Acompanhei essa dupla improvável desde Lima nos anos 50, passando por uma Paris revolucionária nos 60, por uma Londres de drogas e amor livre nos anos 70, por uma Tókio sombria e mafiosa e, finalmente terminamos em uma multicultural Madri dos anos 80. Foram boas companhias e tiveram um final digno de um romance de Mario Vargas Llosa, um autor que me encantou desde o primeiro livro seu que li, há muitos anos: o fabuloso A Guerra do Fim do Mundo em que ele tratou, com incrível exuberância, da Guerra de Canudos.

Travessuras da menina má está há várias semanas nos primeiros lugares da lista dos livros mais vendidos. Pode ser comprado por R$ 26,00. Para quem não faz questão de qualidade, o cd de Ivete no Maracanã custa o mesmo preço. Na banca do pirata, Ivete sai por R$ 3,00. Travessuras, na mão do meu colega Dida, sai de graça e ainda mexe com o cérebro.

28.7.07

O Punhal do Silêncio


Parecia ter acontecido em outra vida, não a sua, o dia em que ela vira aquele homem pela primeira vez. Nem se lembrava de que fora uma gota de suor que lhe despertara um desejo incontrolável por ele. Não lembrava que aquela era uma tarde pastosa, enviesada de calor modorrento e ela decidira sentar-se num café para tomar um suco que, por mais esforço que faça, jamais se lembrará de que era de hortelã.


O toldo verde clarinho fazia da sombra sobre a calçada externa do bar uma bênção em meio à praga bíblica do calor. Foi quando aquele homem apareceu à sua frente, materializado, subitamente, num terno azul marinho e gravata de seda para trocar o pneu furado do carro.

Ele havia tirado o paletó e arregaçado as mangas. Havia um misto de limpeza e masculina segurança naquele homem à sua frente, trocando um pneu com uma habilidade que a encantaram. Mas nada disso também ela se lembrava. Não lembrava da camisa branquíssima e de um cinto de couro combinando e nem lembrava que havia uma gota de suor, bailando, esplêndida. Uma equilibrista precária, toda feita de luz e calor, dependurada em uma das suas sobrancelhas.

Ela ficou hipnotizada com a bailarina gota de suor presa à berrante masculinidade da sobrancelha dele, em meio a um calor estupidificante. Alheia a tudo, transbordando de vida, refletindo o brilho de um sol de Saara, havia aquela gota cheia de virilidade, pendurada perigosamente numa sobrancelha que emoldurava o rosto dele.

Ela, absorta, imaginava que a gota fosse despencar após tanto se debater e desafiar a lei da gravidade, teimando em agarrar-se àquele homem como numa espécie de posse.

Foi então que ele, ignorando o drama daquela gota, num gesto espontâneo, virou-se para o sol - e seu rosto brilhou como o de um herói de bronze -, e esfregou na testa as costas sujas da mão. Ela, decidida como jamais seria depois disso, levantou-se, segura, e foi até onde ele estava. Com um lenço branco, molhado com algumas gotas de Chanel, ela limpou a mancha de graxa na testa daquele homem, exatamente no lugar onde estava antes uma perfeita gota de suor.

Mas nada disso ela se lembrava mais e, provavelmente, ele também não, pois sequer se perguntavam onde fora parar a lembrança daquele encontro encharcado de sol em que ela o conquistara com o gesto único de secar-lhe o rosto com um lenço perfumado. Onde foi parar a lembrança da tarde inteiramente mágica que passaram juntos para só se separarem quando os pedaços estivessem tão moídos que ninguém pudesse colar? E onde foram parar aquelas tardes douradas quando eram tão felizes? A partir de quando se iniciou a ausência das lembranças dos primeiros dias em parques floridos, onde passeavam de mãos dadas e que, de tão distantes na memória, pareciam ter ocorrido em outra vida. ?

O silêncio que se cristalizava a cada dia carregava o peso das onipresentes ausências e ela sentia uma falta esquisita da companhia daquela amiga que desprezava e ele ansiava, estranhamente, pela gargalhada incômoda daquele amigo que detestava. O silêncio opaco, uma lua nova em céu de chumbo denso, era como a escuridão que se abate sobre um domingo chuvoso que se finda, traduzindo a dor de um amor que acaba.

Os gestos pequenos pareciam urrar e os mais banais, carregar uma dose mortal de veneno. Antes, cada olhar era pleno de significados decifráveis. Hoje, nada dizem a não ser o vazio em si mesmo, a ausência total de interesse pelo que não tem mais importância e o doce das madrugadas frias que se transforma em amargores e ânsias.

Nem mesmo se lembram quando pararam de darem-se as mãos que se esvaem como animais que se escondem no fundo lodoso das fossas de mágoa, nos mares profundos de rancor, procurando extinguir toda a luz para que não sejam vistas, como houvesse uma dor imensa em serem atingidas por qualquer réstia de sol ou mesmo o menor toque.

As mãos são as primeiras vítimas e nelas reside a primeira memória do começo do fim, com suas unhas sujas e roídas, com os nós dos dedos pontudos ameaçando romper a carne, nas alianças que não deixaram sequer as marcas nos dedos médios, nos esmaltes partidos, nas cutículas feridas, nos pêlos que começaram a ficar esbranquiçados e nas manchas que vieram muito tempo antes do tempo.

As noites, agora sem nada pedir em troca, abrigavam aquele homem em cafés empoeirados onde o amor já acabara, ou em inferninhos onde a vida pulsa ou lateja com arremedo de alegria anestesiada de uísque e cervejas, em garrafas e espelhos pontilhados de ferrugem que refletem rostos puídos, corpos amassados que avançam insones pela madrugada, e a rompem, tontos de angústias e simulacros de desejo, à procura de reflexos de outros solitários.

Ela escolhera aquele homem e após esse tempo nem mais sabia se fora uma escolha movida pelo desejo ou pelo desespero ou um pouco de cada. Mas ao menos quando não agüentava mais a solidão da carne, do corpo que treme de febre e de desejo, empreendia buscas sombrias pelas madrugadas, quando se sentia caçadora solitária. Às vezes eram empresas rápidas, mesmo sorrateiras, algo rudes. Outras vezes parecia haver um certo carinho, quase romance, na areia de alguma praia ou sobre lençóis de linho ou cambraia, como se ela precisasse da energia que pensava faltar, mas que na verdade transbordava. Mas às vezes nada.

Antes não desejasse esses pêlos ásperos, essas peles secas de odores masculinos, cheiros fortes de suores em corpos sujos ou machucados de embates esportivos, repletos de testosterona saindo pelos poros, estourando pelas veias salientes e bigodes espessos, esvaindo-se, plenos da vida que ela desejava mais que ar puro.

Antes fosse envolta nos desejos suaves de travesseiros de plumas, de fronhas e lençóis, limpos, coarados ao sol e com essências aromáticas como jasmim ou sândalo, nas coxas lisas e nas ancas largas das mulheres, nos seios fartos e nos ventres densos e acolhedores. Mas sabia que ilusões são chacais à espreita, prontos para pegar sonhadores de assalto, pois não há perfeição em um lado ou em outro quando sempre o que se quer é o que o outro tem e o desejo pelo exótico e pelo estranho vem quando o corpo se acostuma demais aos prados ensolarados, aos montes verdes ou aos mares límpidos onde o amor pode estiolar e morrer de repente sem que se sinta como isso aconteceu, sem sobressaltos.

E nos fins-de-semana, quando a razão não sobrevive, incólume, a dois dias sem a rotina do trabalho, quando os horários vazios os enlouquecem nas manhãs de sábado de sol e nas tardes de domingo repletas de mormaço pegajoso, ela grita, chorando, bêbada, ridícula e com a maquiagem borrada, na frente das visitas:

_ Você nunca mais me chamou de bem! Você nunca mais me beijou na boca com a língua molhada! Você nunca quis um filho meu!

Ela finge que não sabe, e finge tão bem que acredita, ou finge que acredita, que a dor das perdas dos fetos também doeu nele. Ele, que tantas vezes chorou escondido quando pensava em como ambos foram murchando, em como o sexo deixou de ser vertiginoso e em como a morte dos fetos passou também a fazer parte da rotina.

Hoje, a economia de olhares e de toques, a mesquinharia das palavras não ditas sepulta e diluem o amor, transformado em moléculas de solidão, partículas de desencanto, minúsculas sobras afetivas perdidas no caldo amorfo dos sentimentos de dois delinqüentes conjugais.

Melhor do que sepultarem o que de feliz viveram era nunca terem experimentado a felicidade que tiveram um dia se são incapazes de aceitar que, se não foi possível com eles, ainda pode ser com outros se pudessem libertar-se de tanta dor. Mas eles nada dizem, ou dizem o que jamais deveria ser dito, pois uma só palavra pode destruir todo um mundo e um silêncio pode ferir mais fundo que um punhal.

21.7.07

Ainda há vida debaixo dessa vaia




“...Capital do sangue quente do Brasil /
capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil/
cidade sangue quente/maravilha mutante” *

O Rio de Janeiro continua lindo...O Rio é uma cidade maravilhosa...O Rio lavou, enxaguou, amaciou e coarou a minha alma amarfanhada ao sol do Maracanã...O Rio de Janeiro é o inferno dos petistas...Purgatório da beleza e do caos. Ufa...ainda existe gente com sangue no olho! Salve o Rio!!!

Há duas maneiras básicas de se falar sobre as memoráveis vaias que os cariocas dedicaram ao presidente. Uma, é analisar os fatos; outra é discorrer sobre versões. E lutar com palavras até romper, em vão, a manhã.

Belíssimas vaias! Lindas! Fruto do mais íntimo do sangue carioca, um povo notoriamente desabusado. Vaias que se ensaiadas não dariam tão certo. 90 mil no maracanã. 10% (9.000 almas) eram convidadas dos patrocinadores oficiais do Pan: Caixa, Petrobrás, Banco do Brasil e outros parentes estatais...Convidados vaiando os anfitriões? Que mal-agradecidos, não?

Mas petista que é petista gosta mesmo é de versões. Eles escrevem na cabeceira da cama e repetem todo dia ao acordar: “Onde houver fatos, prefira as versões”. Há versões para todos os gostos. Petistas jogam várias ao mesmo tempo na parede. A que gritar está viva.

Versão 1: A claque golpista do demo César Maia teria levado a maior parte dos vaiantes e ensaiado tudo. Esta daqui miou fraquinha quando bateu contra o muro do fato. A prefeitura do Rio só tinha distribuído 600 convites contra 9 mil dos patrocinadores. E também vaiou-se o governador aliado, não foi? Ahh, esses tucanos e demos quando se juntam....Com o tempo tinham que aprender as lições de terrorismo psicológico e desonestidade intelectual com os mestres e PHDs petistas, não tinham?

Versão 2: Essa elite não engole um operário na Presidência da República...Essa aqui sempre cola. Jogue essa versão na parede que ela sempre grita. Hoje, ela já mia, meio moribunda, meio desenxabida, mas sempre tem um Marcos Profeta ou um Raimundo Luiz, uma Márcia Rocha, um Cláudio Carvalho ou Melo, uma Conceição Moraes ou um Ricardo Gurgel para ouvir esse mio quase inaudível. É uma gente capaz de engolir versões mulistas com a desenvoltura de cuspidores de fogo dos circos de horrores ou dos engolidores de espadas das antigas feiras de aberrações itinerantes.

Detalhe: Cito nominalmente os 7 colegas mulistas acima apenas porque são meus amigos. Não vou atirar contra outros mais perigosos. Sei que posso levar golpes baixos e não ando com muita resistência para certas gentes...Mas há carapuças disponíveis em tamanhos P, M e G.

Mas sabe uma coisa? Entre fatos e versões não há como conciliar. Não há A verdade. Petistas só acreditam no que querem: vaias como fruto de lavagem cerebral coletiva, mensagem subliminar na letra do Hino Nacional cantada por Elza Soares, orquestração das elites...há versões ao agrado de todos os matizes e neurônios

Petistas e saúvas não são abalados por vaias. Nem a urna os extermina. Como cisticercos, vivem anos fingindo-se de mortos e, ao ressurgiram trazem dólares na cueca, dossiês fajutos e, dependurados em CUTs, UNEs ou MSTs, vão logo se reproduzindo e gritando por verbas e cargos. São diagnosticados a bordo de ambulâncias superfaturadas, onde relaxam e gozam das misérias alheias. Seu habitat favorito é o Planalto, onde se protegem de vaias em torno de espelhos d’águas e rampas. Ali, dificilmente se distinguem dos caititus.
Ah. Eles têm também a patente da vaia. Quem quiser vaiar precisa lhes pagar royalties: “O povo, unido, jamais será vencido”, “Um dois três, quatro cinco mil....” Cuidado com essa gente! “Ainda há vida debaixo dessa vaia”.

*Rio 40 graus (F.Abreu/F.Fawcet)

Cobre, porque é um circo! Cerca, porque é um hospício! Relaxa e goza, porque é um bordel!


Respeitável público. Com vocês, o Grande Circo-Bordel Brasil! No centro do picadeiro podemos ver a performance do palhaço Nove Dedos Teflon e da sua partner Marisa Parede Bege. Rodopiando nos trapézios, vemos a família inteira da estrela vermelha. Veja como eles dão entrevistas e equilibram, ao mesmo tempo, cargos e benesses com a desenvoltura das profissionais dos calçadões.

O globo da morte da TAM explode em chamas, vítimas por todos os lados, mas o palhaço Nove Dedos Teflon disfarça, assobia e olha para os lados. Sua partner, com cara de paisagem, traz o tom certo do bege no rosto. Tailleur combinando.

Senta que o leão é manso! gritam dos bastidores. Editoriais de jornais pipocam, o fogo consome a lona verde e amarela comprada sem licitação. O público, estupefato, é um torpor só. O fogo é apagado pelos bombeiros. Ambulâncias e olhos vermelhos de lágrimas e fumaças. Chagam os médicos e os analistas políticos. O palhaço Nove Dedos Teflon desaparece de cena. Breves vaias são ensaiadas.

Enquanto isso, vacas sagradas pastam no curral do Senado, bezerras douradas pululam no Planalto Central, transposição de verbas nas veias abertas das águas da integração alimentam a sanha das empreiteiras que irrigam as campanhas da companheirada, saraivadas de vaias reverberam em vão, águas profundas da Petrobrás, sanguessugas, mensalões, cuecões e dossiês para todos são oferecidos no programa do bordel Brasil. Cada um pegue o seu, pois a sacanagem foi liberada.

A trilha sonora da orgia é interpretada pela orquestra do maestro Gil e suas Pretas, que canta o samba enredo: “Nunca antes neste paiz” tema que acompanha a insânia. A mulher barbada Marta Suplício relaxa e goza, o domador Guido Manteiga saúda o caos do desenvolvimento, o contorcionista Waldir Moleza pede um aumento. O equilibrista Nelson Peleguinho se esconde nos camarotes.

Alheio à balbúrdia, o contra-regras Marco Aurélio Gracinha faz top top para a platéia com a vulgaridade dos subdesenvolvidos. É...nós ainda precisaremos subir muito para atingir o nível da baixaria comum. Por enquanto, ainda estamos no subterrâneo. Esses tipinhos barrigudos e barbudos do picadeiro-bordel Brasil, auxiliados pela gangue dos 300 picaretas não brincam em serviço.

Perdoem-me as piranhas, os esquizofrênicos e os palhaços, mas eles não são nada comparados a essa quadrilha profissional do Grande Circo-Bordel Brasil.

Tragam de volta a lona, as camisas-de-força e os lubrificantes. Cubram tudo porque é um circo. Cerquem tudo porque é um hospício. Relaxem e gozem porque é um bordel.

Apagam-se as luzes.

15.7.07

Uma linda casa debruçadas sobre o Egeu


Há mais de dez anos trabalhei em uma Vara Federal. Digitava audiências e traduzia depoimentos de réus que falavam inglês. Um dia ela foi parar lá: alta, olhos verdes. Presa. Cinco quilos de cocaína na bagagem. Ela jurou que a droga não era sua. Uma grega.

Falava inglês, grego e africâner. Traficante internacional? Ela jurou que a droga não era sua. Fui chamado para digitar seu depoimento e traduzi-lo. Uma audiência estranha: o juiz fazia as perguntas, eu traduzia para ela, ela respondia, eu traduzia para o juiz que me mandava digitar o que eu acabara de traduzir.

Antes de a grega chegar eu já estava indócil, ansioso por vê-la. Na foto xérox do passaporte anexado ao processo lembrava uma femme fatale do cinema noir: misteriosa e loura. Artificial!, dizia, com desdém, minha colega Altenir. Não me importava. Ela era grega e os gregos estarão sempre no panteão da minha admiração. Li seu depoimento na Policia Federal. Ali ela já jurava: a droga não era sua.

Chegou algemada e com a roupa e o cheiro do cárcere. Sentou-se à minha frente. Fiz as perguntas costumeiras: nome, estado civil...Seu inglês tinha um sotaque lindo...As gregas seriam sempre assim? Helena, Penélope, Antígona? Até as traficantes?

No meio do seu depoimento o juiz saiu rapidamente para atender uma ligação. Aproveitei para perguntar-lhe: “De que cidade grega você é?”

Surpresa pelo meu interesse, ela respondeu: “Aegina”.

Repeti como autômato: “Aegina”....Perguntei ainda: “Sua família mora lá?”

Ela respondeu com uma tristeza infinita, mas com um brilho novo no olhar. Ele, o brilho, não estava lá antes. Surgiu quando ela disse, quase gaguejante: “Sim. Meu pai tem uma linda casa debruçada sobre o Egeu”.

Não lembro de mais nada daquele dia. Somente a imagem fixa de uma linda casa sobre o Egeu. Ninguém que possui uma casa assim, debruçada, lindamente sobre o Egeu, pode ter uma filha traficante. Ela jurou que a droga não era sua, mas o juiz discordou e condenou-a a quatro anos e meio de cadeia.

Ainda tive a oportunidade de vê-la uma segunda vez antes da sentença quando traduzi o depoimento de uma testemunha, seu namorado sul-africano.

Dois anos se passaram e eu pouco me lembrava dela. Sabia que o seu processo era complicado, tinha dupla cidadania e tentavam deportá-la ou expulsá-la do Brasil.

Até que em 1995 ganhei de presente uma viagem para a Europa. A viagem, além da França, Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha, Suíça, Bélgica e Holanda incluía a Grécia. E além de Atenas, haveria um passeio pelas ilhas gregas. E entre as ilhas que eu visitaria estava exatamente a ilha de Aegina. Lembrei-me de uma linda casa debruçada sobre o Egeu. Eu precisava encontrar novamente a grega. Talvez ela ainda estivesse presa. Quem sabe eu não encontraria o seu pai?

Usando os conhecimentos de um estagiário que trabalhava na mesma Vara, durante uma manhã e fora do nosso horário de expediente, fomos à penitenciária feminina. Lá eu perguntei por ela. Ainda estaria ali? Teria sido deportada?

Continuava presa. Chamaram-na. Fiquei ansioso. Afinal, passaram-se mais de dois anos. Quando caminhou em minha direção quase não a reconheci. Emagrecera. Seus cabelos tinham agora fios brancos e ela estava pálida. Mas ela me reconheceu imediatamente e abriu um enorme sorriso. Abraçou-me. Para provar que se lembrava de mim disse corretamente o meu nome.

Não recebia visitas há dois anos. Contei que iria para a Grécia. Para Aegina. Seus olhos brilharam.
“Você vai para minha cidade. Para minha ilha?”

Ofereci-me para levar um presente para o seu pai, afinal ele tinha uma linda casa debruçada sobre o Egeu não tinha?

Ela sorriu e perguntou: “Quando você chegará lá?”

Respondi: “20 de setembro”.

Ela não acreditou. Era o dia do seu aniversário.

Ali estava eu, na penitenciária feminina, sendo abraçado por uma traficante grega que tinha os olhos molhados e um enorme sorriso no rosto. Uma virginiana que aniversariava no dia em que eu chegaria à sua ilha do mar Egeu no dia 20 de setembro de 1995

“Que coincidência”, disse eu e me ofereci para tirarmos uma foto que eu levaria para o seu pai. Havia levado a minha velha Yashica pré-histórica. Ainda nem se falava em máquina digital.

Ela agradeceu, comovida, e contou que o pai não sabia da sua prisão. Não lhe escrevia para que ele não descobrisse a origem das cartas: a cadeia. Nada sabia do pai nesses anos.

Determinado a encontrar aquele homem, dois meses depois pousei em Atenas. Jamais conseguirei descrever a sensação única que foi estar na cidade que me encantava desde garoto. Se havia um lugar no mundo que sempre sonhei conhecer desde pré- adolescente, não era a Disney, mas Atenas. Nunca fui um menino normal mesmo.

Foram dias inesquecíveis com minha melhor amiga, passeios pela cidade histórica, edifícios de mármores milenares, museus, noites com sol às 9 da noite, jantares em restaurantes ao ar livre com música grega ao vivo em lindas praças iluminadas, repletas de árvores frutíferas, figueiras, oliveiras e limoeiros. Tardes de passeios pela Acrópole, Teatro de Herodes, Tempo das Cariátides, Areópago e o Partenon. Senti-me pisando onde Sócrates, Platão e Aristóteles haviam pisado.

Terceiro dia: viajamos para o Peloponeso, passando por Corinto e sobre o famoso canal que liga o Mar Jônico ao Egeu. Seguimos para Epidavros onde conferimos a lendária acústica do seu famoso teatro construído há séculos. Continuamos o passeio por Náuplias, Mégara, Argos e Micenas, onde conhecemos, nas montanhas, as ruínas do palácio e da tumba de Agamenon. Atravessamos a famosa e milenar porta dos dois leões.Um privilégio.

No penúltimo dia da viagem pela Grécia seguimos até o porto de Pireu e embarcamos em um cruzeiro pelas ilhas de Hydra, Poros e Aegina. Finalmente eu iria tentar encontrar o pai da minha “amiga” traficante.

Hidra e Poros são ilhas paradisíacas, repletas de templos e história, tudo muito bem contado pelo nosso guia. Seus portos eram fervilhantes de vida, cor e alegria com grandes navios transatlânticos ao lado de pequenos barcos de pesca dos marinheiros locais. Então chegamos a

Aegina sob um lindo sol de outono. O mar Egeu inebriava os olhos com seus matizes de azul indescritíveis. Muito mais belo do que eu jamais imaginara. Ficaríamos ali apenas três horas. No programa, um almoço em um hotel, mas minha amiga se enturmou com um grupo de brasileiros e aceitou que eu fizesse outros planos.

No píer de Aegina procurei um morador que falasse inglês e indaguei pelo nome do pai da grega. Após várias perguntas, indicaram-me o local. Não compreendi direito, mas arrisquei. Subi várias ladeiras e me perdi seguidas vezes, indo parar em vielas e becos sem saída. As crianças e velhas a quem eu fazia perguntas não me compreendiam. Todas as casas eram pintadas com o mesmo branco e as mesmas janelas azuis. As ruas estreitas serpenteavam, sempre subindo e os números das casas não obedeciam a qualquer lógica. Suando muito, faminto, sedento e vendo o mar se afastar cada vez mais, à medida que eu subia a montanha já estava pronto para desistir dessa aventura impossível.

Aegina, sob o sol de mais de 40 graus acabava comigo. Já passava há tempos do meio-dia. Com fome e sede, e nenhum dracma no bolso (em 95 ainda não existia o euro) para comprar uma coca cola eu imaginava a minha amiga já almoçada e tomando banho de mar na praia do hotel ou se afogando em daikiris, pelo que eu conhecia dela.

Em menos de uma hora meu barco partiria e ali estava eu, no alto de uma montanha, molhado de suor e faminto...

Ao sentar-me sob a única oliveira que encontrei numa pequena pracinha vi a casa que procurava. Era igual às demais, mas o número da porta batia. Dei um pulo e apertei a campainha. Demorou uma eternidade. Apertei de novo até que o velho apareceu à porta. Cabelos e bigodes brancos, olhos claros, camisa de manga comprida abotoada até o colarinho e boina marrom. Uma réplica de todos os velhos que eu vira desde que chegara a Aegina.

Educadamente, eu disse Parakaló, seguido do seu nome, como a filha dissera.

Ele respondeu: Kalispéra e abriu o portão

Foi quando me vi em um lindo pátio de uma casa exuberantemente arejada, com um pórtico de madeira branca coberto de trepadeiras e samambaias que se debruçava sobre um belíssimo mar Egeu de um azul turquesa que estava além da minha imaginação.

Ele e eu não falávamos uma única língua comum, mas nos entendemos com vários gestos e sorrisos. Ele compreendeu que eu conhecera sua filha no Brasil. Ofereceu-me deliciosos pistaches e azeitonas pretas, colhidos de árvores do seu jardim. Sentei-me sob a sombra formada pelo beiral do telhado e, com a fome que estava, devorei aquele prato. Ele, então, serviu-me ouzo, o vinho grego com gosto de anis e pães temperados com azeite de oliva, além de uma ótima salada de polvo que ele se gabou de ter pescado naquela manhã, pelo que entendi.

Eu estava muito emocionado. Tudo aquilo parecia irreal. Há quase três anos eu ouvira falar daquela linda casa num depoimento de uma traficante grega e agora ali estava eu, bebendo e comendo com o seu pai. E não podia contar que a filha estava presa. Mas podia registrar tudo aquilo em fotografias.

Ao me despedir do velho, recebi um beijo no rosto. Alguma coisa me dizia que ele sabia da verdade, mas teve a nobreza de não perguntar. Seu sorriso era idêntico ao que vi no rosto da sua filha, um mês depois, quando apareci novamente na penitenciária, levando as fotos tiradas naquela bela casa de Aegina.

Contei a ela do vinho, dos pistaches, do azul do mar...Seu olhar de gratidão encheu-me de profundo orgulho. Custou-me tão pouco e, no final, fui eu quem teve um dia e um almoço maravilhoso ao lado de um velho grego que nunca me vira na vida. Despedi-me da minha traficante grega sem lhe perguntei se a droga era realmente sua. Não importava, ela perdera aquele jogo e, afinal, já estava presa mesmo.

Jorge Luis Borges já dissera: “Há uma dignidade no fracasso que dificilmente encontramos na vitória”.

24.1.07

Tudo Por um Passaporte!!!


Recentemente aproveitei para tirar um novo passaporte, algo que venho adiando há meses. Compreendi porque o processo de expedição de um passaporte assemelha-se a uma via-crucis.

São necessários vários passos: ir ao SAC e descobrir quais são esses passos; tirar fotos para passaporte que não podem ter mais de seis meses; comprar um formulário e preenchê-lo; pagar uma taxa no Banco do Brasil; voltar ao SAC com tudo preenchido; descobrir que os comprovantes de votação não são suficientes, mas que preciso de uma certidão do TRE atestando que sou um cidadão que cumpre com as obrigações eleitorais; descobrir que todos os documentos têm que ser originais e, portanto, meu certificado de reservista (só possuo uma cópia autenticada há anos) não serve.

Pausa para conseguir a segunda via do certificado que só é expedida das 7 às 11 da manhã no quartel do Exército do Forte de São Pedro.

Dirijo-me ao quartel num dia sempre adiado. Finalmente, aproveitando uma noite de insônia em que vi o sol nascer, decido que vai ser aquele dia. Mesmo me arrastando de sono vou ao quartel. E aqui começou de fato a segunda parte da via crucis.

Manhã de mormaço úmido. Atravesso o grande portão de madeira e passo por uma espécie de túnel onde seis soldados armados de fuzis fazem caras de maus. A sala onde vou tem uma porta e várias janelas abertas para um grande pátio onde se acumulam poças de água da chuva. Soldados circulam com aspecto de torpor. O dia começa a ficar mais quente, parece que vai chover de novo.

Numa tv passa o programa de Ana Maria Braga. Cinco longarinas com quatro assentos cada acomodam mais de dez homens que aguardam atendimento enquanto assistiam a tv. Alguém me diz, sem que eu pergunte, que eu preciso de uma senha.

Então vejo a velha! Apesar de ter pouco mais de 50, já era velha ao nascer. Pela aparência de estupor, sua única função ali é essa: entregar senhas. Antes que eu me aproximasse, ela já estendia a mão com um papelzinho: 22. Na verdade ela já estava com a mão estendida, com ar vago, assim que entrei na sala. Um gesto automático. Aqueles eram seus momentos altos do dia: entregar as senhas que retira de um bloquinho. Apesar do seu aparente catatonismo, o ato era algo sagrado. Sonha com isso quando dorme, sem culpas, sob o lençol de chenile.

Uma outra mulher com uma voz muito irritada e em um tom excepcionalmente grave, como um surdo de bateria, grita: “senha 12”. Diria que aquela mulher não deve ser fácil. Chove!

Enquanto isso Louro José ensina a fazer polenta dando preciosas dicas sobre as inúmeras vantagens de um forno pré-aquecido. No dia em que eu precisar fazer polenta devo me lembrar dessas instruções.

Reparo melhor no local. São 8h e há 10 guichês alinhados. Apenas dois são ocupados. Um pela mulher obtusa das senhas e outro pela mulher da voz grossa. Pessoas são chamadas e atendidas. A voz da atendente está ficando ameaçadora.

Observo a decoração. Um quadro de Olavo Bilac, uma árvore de natal anã, uma magra guirlanda e dois festões decorativos raquíticos pendem de uma parede no fundo. Um verde e um vermelho. Restos do último Natal. Soldados batem continências

A chuva pára. O calor aumenta e os três grandes ventiladores não dão conta do recado. As pessoas chamadas parecem se arrastar com preguiça infinita até o guichê. Mais gente chega, a mulher das senhas está à toda. Não dá uma palavra, mas seu bloquinho está a mil.

Ouço alguém dizer que vai ter que jurar a bandeira. Estremeço. Isso sim é que é um castigo de verdade. Lembro que quando precisei fazê-lo, aos 18 anos, dublei enquanto, mentalmente, recitava “Batatinha quando nasce”. Meu único gesto de rebeldia silenciosa naquele local.

Agora sim, alguém com um c.c. de verdade! Nada desses perfumes baratos para disfarçar o verdadeiro e indefectível suor baiano. Penso no que pode vir de bom em estar naquele calor úmido, cheirando suor dos outros, ouvindo Ana Maria Braga comer polenta enquanto uma mulher irada grita senhas e ainda a ameaça real de jurar a bandeira...O que não se faz por um passaporte!

Um café. Sim, um café vai dar um jeito nisso. Vejo do outro lado do pátio uma cantina. Chove, mas por um café vale à pena. Atravesso o pátio, correndo. A cantina parece ter passado por uma batida policial, os únicos lanches são sonhos gigantes cobertos de açúcar derretendo e algo que alguém resolveu chamar de empadão, mas que pode ser chamado por qualquer outro nome que não vai fazer diferença alguma. Mas o café me reabilitou.

Volto. Senha 22. A mulher me atende. A voz está mais calma, mas ainda ameaçadora. Explico que quero a segunda via do certificado de reservista e ela pergunta se eu me lembro onde fiz o meu alistamento.

Penso em dizer que isso já faz muito tempo, que aconteceu em outra vida, aliás, há várias vidas, quando eu ainda tinha 18 anos e era um adolescente complicado. Hoje, 25 anos depois, um adulto mais complicado ainda, jamais me lembraria onde o alistamento aconteceu. Mas não digo nada. Ela não entenderia. Lembro que tenho a cópia autenticada e entrego a ela. Seus olhos, juro, brilharam por um milionésimo de segundo. Cópia autenticada é coisa rara ali, onde pessoas perdem documentos com muita freqüência. Digita o número do meu documento no computador.

Mas como nada comigo é simples ela descobre que o meu cadastro não consta do seu sistema. Deve ter algum número errado. Ela pede minha carteira de trabalho. Digo que sou funcionário público e não uso mais esse documento. Ela diz que há outro sistema, ligado a Brasília, que identifica pelo CPF, mas só o tenente tem a senha e ele deu uma saída. Espero o tenente voltar.

Passa das 10h. O tenente volta, mas dessa vez o sistema de Brasília está fora do ar. Ela sugere que eu aproveite para pagar a guia na lotérica já que o horário do quartel termina às 11h. A lotérica tem uma fila gigante. Para pagar R$ 3,00 espero apostadores da mega sena, compradores de cartões telefônicos, pagadores de contas, recolhedores do INSS, sacadores de dinheiro do Bolsa Família....nunca imaginei que se fizesse tanta coisa numa lotérica.

Pago e volto, mas o sistema não voltou. Sugiro que a atendente digite os números de 0 a 9 no lugar do último dígito do meu documento. Ela digita aleatoriamente. 2, 7, 6, 4. Esquece os números que digitou e os que ainda faltam digitar. Penso sugerir que ela comece do 0 e termine no 9, pelo menos os árabes criaram essa ordem há séculos e tem funcionado bem até hoje, mas preferi respirar fundo.

Não deu certo. Só tinha um jeito. Procurar nos livros do arquivo morto, mas era um lugar muito complicado e ela não garantia nada. Mas primeiro eu precisava lembrar onde me alistei. Busquei no fundo da memória, retrocedi até o jurássico da minha adolescência quando a palavra veio de algum lugar. Falei rápido, para não perdê-la: “Barroquinha talvez?” Quase disse: “Barroquinha, esse nome faz algum sentido para você?”.

Ela se levantou e desapareceu nos fundos da sala. Voltou muito tempo depois. Descobriu qual o número errado no meio dos outros certos. Eu não quero imaginar o lugar onde ela foi. Não parece ser um lugar muito apropriado. Juro que ela voltou diferente

4.1.07

Abril Despedaçado-A História de um Filme

Esse é um livro especial da Cia das Letras com as fotos, o roteiro e os textos do filme Abril Despedaçado, do diretor Walter Salles, que vale à pena ter. O livro conta com mais de 200 páginas, tem capa dura e é muito bem impresso em papel de boa qualidade, com fotografias tão bonitas que lembram as de Sebastião Salgado e textos ricos, com informações interessantíssimas sobre o adaptação para o cinema do livro do albanês Ismail Kadaré.

Já se comentou que o fato de ser essa uma história com data e local definidos retira dela sua possível característica de fábula. Em parte concordo que o diretor poderia ter abdicado da informação quanto ao tempo e ao espaço porque saberíamos onde e quando a história se passa, mas, de qualquer modo, no livro, Walter Salles reafirma o caráter universal e até mitológico da história, lembrando a origem da obra original, a Albânia, e a lenda de Orestes na Mitologia Grega. Assim, é impossível discordar de que, independentemente de a história se passar no sertão brasileiro de 1910, sua universalidade é inegável, como lenda, mito ou como tragédia familiar. Aliás, não foi um poeta que disse: "Queres falar do mundo, fala da tua aldeia"?

Escreve Salles "No decorrer da preparação de Abril Despedaçado, uma série de episódios violentos reforçaram a escolha por uma obra aparentemente descolada da realidade, situada em tempo e espaço não muito definidos, mas que nem por isso deixaria de estar ligada à questão da violência no Brasil. A realidade atingiu um estágio em que não há ficção que possa chegar a seus pés"

Lendo os seus comentários no livro, compreendi muitas coisas que não tinha entendido antes. Não me impressionam as críticas à improvável afetuosidade entre irmãos no sertão porque, na verdade, esse é um filme sobre o amor de dois irmãos. Diz-se que no sertão os irmãos são secos, não têm esse tipo de afeto. Posso até concordar, até porque foi lá que nasci e cresci e conheço bem, mas isso não desmerece o filme e o objetivo de Walter Salles que foram perfeitos.

Muitas cenas que deram trabalho infernal ficaram de fora na montagem. Walter Salles tinha um conceito e respeito-o imensamente pela sua coragem e fidelidade ao seu princípio. Ele mesmo diz que dava dó cortar belíssimas cenas e sequências filmadas e cita Drummond: "fazer poesias é cortar palavras". Nessas horas a gente lembra da exuberância excessivamente prolixa de Lavoura Arcaica e sente a falta de um montador com conceito, mas também com coragem.

Até mesmo a cena final quando Tonho encontra o mar...alegórica, destoante do realismo com que o filme vinha caminhando até ali, só agora, no livro, compreendo seu propósito que é o de Tonho homenagear o irmão e seu sacrifício. Não sei como não percebi isso quando vi o filme.

Quando ouço as críticas ao filme e a Salles acusando-o de privilegiar a estética em detrimento da história eu não sei se rio ou se choro pelos infelizes que pensam assim. Quanta riqueza e quanta história existe por trás da imagem de uma camisa ensangüentada ao vento ? E o que mais precisa ser dito quando Clara observa, angustiada, a lua completamente cheia, e sabe que chegou a hora da morte de Tonho?

Alguns críticos torceram os narizes para o redenção do final brasileiro, diferente do original, como se uma conclusão fosse menor e menos filmicamente dramática que outra. Aliás, é bom que fique bem claro que o próprio Ismail Kadaré aprovou o filme, estando entre os entusiastas que aplaudiram sua estréia em Cannes.

De qualquer maneira o filme não tem um final de todo feliz. Tonho se salva, descobre o amor com Clara e põe fim à tragédia. Mas a que preço? Aliás, os gestos nobres do menino, o agnus dei, seu olhar doce para Tonho dormindo, sua expressão ao ver a cama vazia e descobrir que o irmão seguiu seu conselho e fugiu do círculo da tragédia, sua decepção ao presenciar o retorno de Tonho para a terrível bolandeira... todo seu olhar é de uma pureza e uma eloquência sem palavras que enchem os olhos de água, arrebentam a alma e despedaçam o peito.

2.1.07

Infidelidade


Há algum tempo escrevi sobre “De Olhos Bem Fechados” onde comparava Stanley Kubrick a Adrian Lyne e afirmava que os filmes de Lyne têm mais sensualidade e são, paradoxalmente, menos conservadores e moralistas do que os de Kubrick.


Particularmente comparava “De Olhos”...com “Lolita”, mas, para minha sorte, Lyne lançou depois daquele meu texto “Infidelidade”, um filme que cabe perfeitamente bem na comparação que faço entre os dois diretores e entre os filmes. Como já não suporto mais falar da caretice de Kubrick vou falar de Lyne. E para variar, em vez de falar mal de um filme, vou falar bem.

Em “Infidelidade” temos Richard Gere e Diane Lane formando um triangulo amoroso com Olivier Martinez (visto em “Antes do Anoitecer”, excelente filme sobre o escritor cubano Reinaldo Arenas). Mr. Gere e Mrs. Lane são o perfeito casal de propaganda de margarina que vive o sonho americano com seu filhinho que faz teatrinho na escola e seu cachorro numa bela casa perto de Nova York. Lane vive um caso extraconjugal repleto de tensão sexual e extremamente voluptuoso. Ela se entrega ao affair sem culpa e sem medo e intrepidamente se arrisca além da prudência.

O que o filme tem de mais interessante é essa abordagem da traição da esposa. O que a gente está acostumado a ver é a traição dos maridos. Homens são educados para amar verdadeiramente sua a esposa e ter relações com outras mulheres. Nesse filme o papel é invertido e a esposa trai o marido mesmo amando-o. Só por essa sacada e quase originalidade, Lyne merece todos os elogios.

Adrian Lyne esperava que Infidelidade provocasse a mesma polêmica de seus trabalhos anteriores. Nesse filme o tema adultério é abordado de forma não convencional. Segundo Lyne, Indifelidade trata a traição em um relacionamento como algo natural. Ele pensou em fazer um filme mostrando um casamento que estava se desmanchando mas achou que isto seria entediante. Seria muito mais interessante se o casamento fosse perfeito e, ainda assim, a esposa tivesse um caso. “Não acho que as pessoas têm relações extra-conjugais porque vivem infelizes. Acho que o acaso tem uma grande parte nisto”, comentou.

Para Lyne o filme é diferente de La Femme Infidelle, obra-prima de Claude Chabrol: “Esse é um thriller erótico que explora os relacionamentos num novo nível de intensidade e perigo. O filme mostra uma visão cheia de suspense de como são criadas cortinas de fumaça para esconder as culpas de cada um.”

Lyne dirigiu filmes como 9 1/2 Semanas de Amor, Lolita, Atração Fatal ou Proposta Indecente. É acusado pelos críticos de fazer filmes como se fossem videoclipes. Filme não devem ter elementos que interfiram na narrativa e chamem mais atenção do que os atores e a história, cinema não deve ser assim, esses elementos devem ser dosados e entrarem na trama de modo natural, mas deve-se reconhecer que Lyne evoluiu bastante nesse tempo e perdeu um pouco dessa tendência que trouxe dos seus anos de diretor de comerciais.

Em Infidelidade encontramos esses elementos, só que em momento algum eles interferem na narrativa. Mas virou moda criticar Lyne por isso. Ninguém reclamou, por exemplo, quando Jane Campion, diretora do premiado “O Piano” fez pretensiosas estripulias preciosistas com a fotografia e a iluminação das cenas de “Um Retrato de Mulher”. A diretora chegou a ser escrachada ao vivo no set por John Malcovich: “ Você pensa que está fazendo um quadro de Caravaggio? Isso é só um filme!” Ninguém critica Campion mas Lyne recebe porrada de todo lado. O moralismo está em quem critica Adrian Lyne. Exemplo disso é a sua versão de Lolita que nem mesmo foi lançada nos cinemas americanos por ser considerado ousado demais. O puritanismo é extremamente contagioso.

O que há de melhor no filme é a honestidade de Lyne na conclusão da obra. Há uma traição e qual o resultado de uma traição quando o cônjuge descobre? Que sobrevida pode ter uma relação depois disso? Mesmo se o casal decide permanecer unido, jamais a história deles será a mesma. E dessa premissa Lyne não se desvia. Por que razão isso seria sintoma de moralismo ou conservadorismo? Quando a mulher descobre a traição do marido ela pode perdoar e ninguém questiona se a relação fica fissurada ou não, mas se o homem é o traído as críticas partem de todos os lados e todos se arvoram a dizer que a relação já era chatinha mesmo, o galã era esquisito, a mulher era balzaquiana, o marido era bestinha etc.

Gostei do filme começar de um jeito, na metade enveredar por outro e lá pelo terço final ter uma reviravolta policial. Vi gente que criticou esse fato. Tem uma turma que não sabe apreciar esse tipo de surpresa, gente que só quer ver o que é previsível. O personagem de Richard Gere tem uma reação dramática e de uma tensão fílmica impressionantemente sofisticada e ele consegue traduzir perfeitamente bem seu conflito. Lyne mostra a seqüência muito bem filmada, a faca, a bola de vidro, o sangue, os livros, a secretária eletrônica, o tapete, o elevador, a mala do carro... E emoldurando tudo efeitos de som que prolongam e reforçam a tensão. Tensão que continua na cena da batida no fundo do carro na saída da escola do filho, na fuga à noite para o depósito de lixo...E uma luz perfeita que não interfere em nada na narrativa, ao contrário do que dizem críticos de má vontade.

A cena em que as duas amigas da personagem de Diane Lane se encontram com ela no café tem um diálogo muito bom que muitos fingiram não ver, principalmente quando uma das mulheres, numa interpretação extremamente sutil, afirma que uma vez traiu o marido e qual a conseqüência daquele ato: “Todo caso termina em desastre”. A verdade por trás dessas palavras é dolorosamente genuína. Qualquer caso digno desse nome termina em desastre. E os críticos preferem falar mal da cena da transa no banheiro daquele café onde as amigas estão. E o que a cena tinha de ruim? Resposta: era bem filmada demais, bem coreografada demais. Como um comercial! É demais não!?

Exemplo desse tipo de má vontade se vê numa crítica do antigo site Anedota Búlgara onde o autor faz uma brincadeira sem graça e chama o filme de “O diabo na carne de Mrs. Lane”. O homem deve sofrer de algum tipo de dor-de-cotovelo. Compara Olivier Martinez com Mickey Rourke “barba por fazer, aparência desleixada, voz rouquinha e sexy, hábitos sexuais esquisitos, ar intelectual...” Compara a cena de ventania em Nova York a um “comercial-de-impulse" Qual o problema? A cena da ventania tinha que ser feia e mal feita para agradar ao crítico? Não pode ter uma boa luz porque senão vira comercial? E, afinal, aquele tipo francês deve agradar bastante às mulheres, talvez não agrade ao crítico, mas não é aos homens que ele tem que agradar não é mesmo?

Pois eu continuo a dizer: Moralistas são os críticos. Adrian Lyne é ótimo!

Venga Toro


Na postagem abaixo disse que a tourada é um dos espetáculos de horror mais insanos e desumanos que existem. Perguntaram-me, provocativamente, se eu acho a matança de um touro na arena mais cruel do que um abate num matadouro. Não vou dar uma resposta direta, vou comparar as duas mortes.


Primeiro, credencio-me para essa resposta. Como Engenheiro Agrônomo em diversas ocasiões da minha vida profissional, castrei animais, fiz partos e estive presente, tendo eu próprio abatido carneiros, porcos, e, pelo que lembro, pelo menos dois bois. Estive também em uma tourada na Espanha e assim sinto-me apto para uma comparação.

O que é mais cruel, dar uma machadada, uma única ou no máximo duas na testa de um touro que será em seguida sangrado para que sua carne alimente dúzias de pessoas e signifique muitas vezes o sustento de uma família ou o que Marco Frenette descreve com extrema revolta e lucidez que se passa nos bastidores de uma arena de touros?

Frenette comenta a série de programas de tv espanhola, transmitidos pela Net, que abordam todos os aspectos desse "esporte" nacional espanhol: “Muitos novilhos são mortos na experimentação de novos modelos de espadas? Toureiros e fabricantes se reúnem em segredo, discutem o peso do aço, e então fazem o teste enterrando a espada no animal. Enquanto o novilho agoniza, comparam a dificuldade com que ela penetrou na carne.

“Animais adultos tem os chifres cortados, ficam horas sob sacos de areia, as patas inchadas são ensopadas com aguarrás para que o animal não consiga ficar parado devido à extrema ardência. Para comprometer sua já fraca visão, os olhos são untados com vaselina e para empurrá-lo em direção ao corredor que o levará à arena, espetam-no várias vezes. O touro aterrorizado corre para o que julga a saída onde é recebido pelos gritos da multidão”.

A tourada é dividida em 3 partes. Primeiro os picadores, a cavalo, golpeiam o touro perfurando-o profundamente com lanças cortantes de aço com pontas de 10 cm. Na 2ª parte os bandarilheiros espetam aquelas hastes com papel colorido nas costas do touro, enfurecendo-o. Parecem lindas, mas têm, nas pontas, um arpão de 8 cm. que causam dores atrozes, pois, a cada movimento, os ganchos cravados cortam cada vez mais fundo.Por fim, o matador executa um balé cheio de frescuras e dá uma estocada única com sua espada, cravando-a até o cabo no corpo do animal. Os picadores retornam e finalizam a execução com as lanças enquanto o toureiro, na arena, sorri para a multidão exibindo o troféu: a orelha ensangüentada do touro. Não é porque Almodóvar embalou essa cena com a voz suave de Elis Regina cantando “Por Toda a Minha Vida” que ela se tornará menos horrenda e grotesca.

Almodóvar filmou a morte de cinco touros numa sessão de treinamento de toureiros reais. Um grupo de proteção dos direitos dos animais está processando o diretor que justificou explicou que a morte dos animais aconteceria de qualquer maneira e as câmeras só fizeram registrar o momento, mas o grupo ecológico alega que as leis locais proíbem sofrimento e morte de animais em filmes e qualquer violência contra eles precisa ser simulada. Qual o propósito de mostrar essas mortes num filme de ficção? Afinal, se fosse um documentário vá lá, mas mostrar a matança revela um profundo desprezo pelo sofrimento dos animais e isso não tem perdão na minha modesta opinião.

Todas as análises sobre esse tipo de “esporte” abordam sempre dois lados. Um dos aspectos gira em torno da extrema covardia com que o animal é tratado, o delírio insano de uma multidão frenética e ávida por sangue "a cruenta alma espanhola", a falsa noção de heroísmo de um canalha que, de posse de todas as vantagens, mata injusta e ritualisticamente um animal destituído de qualquer réstia de dignidade e que conta apenas com a fatalidade do seu destino terrível nas pontas afiadas dos instrumentos de tortura e morte.

A outra análise, embasada sempre pelo cínico verniz antropológico, não admite mensuração de valores de uma civilização por paradigmas esternos a ela. Honestamente, prefiro ser tachado reducionista e de desprezo pela cultura de um povo a aplaudir ou me esquivar a um extremo estupor diante dessa pusilanimidade cruenta.

A avaliação antropológica deveria, caso fosse tão válida, sobreviver a leis que proíbem, por exemplo, a farra do boi em Santa Catarina, afinal também ela faz parte da cultura daquele pessoal. Rinha de galo ou de canários ou brigas de cães só se tornaram integrantes da cultura de um povo, como a farra do boi e as touradas, porque alguém não teve coragem de proibi-las em nome do direito dos animais.
Ou as cruéis esterilizações de milhões de meninas na África, quando lhes extirpam os clitóris sem anestesia. Como condenar a selvagem cultura das infibulações e das touradas se se vai defender o direito de ser cruel com as meninas e com os animais em nome da sagrada e indiferente análise antropológica?

Marx, dizia: "A dominação do homem pelo homem foi precedida da dominação da mulher, mas essa já é história para outro artigo”. Fiquemos, por hora, com uma frase de Gandhi que do alto da sua sabedoria afirmou: "Pode-se medir o grau de evolução de um povo pelo modo como seus animais são tratados".

Fale com Ela


Do cineasta Pedro Almodóvar assisti a todos os filmes e até li o seu livro Fogo nas Entranhas. De tantos agradáveis momentos que passei em salas de cinema, muitos devo aos filmes dele. Desde Pepe, Luci e Bon, passando por Ata-me, Kika, De Salto Alto, Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos, Matador, Carne Trêmula, A Pele do Desejo, A Flor do Meu Segredo, Tudo Sobre Minha Mãe...Vi tudo. 


Mas quando assisti a Fale Com Ela saí do cinema com uma sensação de estranhamento, um mal estar.... Não era Almodóvar. E fico cheio de dedos para dizer que não gostei do filme. Como posso não ter gostado se todos dizem que é uma obra prima, se rasgando em elogios ?

Não foi porque detesto touradas. De todos os esportes (?) abomináveis este é o pior. Só assistiria a uma tourada se soubesse que o touro mataria o toureiro. Estive uma vez perto de um desses espetáculos de horror na Espanha. Do lado de fora da arena senti o fedor de esterco e de sangue, vi as hordas de moscas e aquela gente histérica gritando olé!, torcendo para o touro ser abatido, o animal inocente esfalfado, cansado, aturdido, ensopado de sangue, espetado, cruel e covardemente, por espadas...

Jogaria toda a cultura espanhola na lata do lixo se conseguisse salvar apenas um touro. Explodiria as obras de Gaudi, poria fogo nos quadros de Dali e Picasso, destruiria os filmes de Buñuel e Saura e os livros de Cervantes e Lorca apenas para salvar um único touro. E Almodóvar coloca uma tourada neste filme.

Mas não foi só por isso que não gostei. Deveria gostar, pois nesse filme o touro leva a melhor e o toureiro (uma mulher), é quem acaba em sangue e areia. Se a tourada é um espetáculo grotesco, a desse filme chega às raias do absurdo quando, enquanto a toureira empala o animal, ouve-se a trilha sonora mais deslocada que vi em todos os filmes que assisti na vida: Elis Regina, suavemente, cantando Por Toda a Minha Vida enquanto o sangue escorre, negro e rubro, do dorso suado de um touro.

Onde estavam as cores berrantes de Almodóvar ?, os diálogos cômicos, os dramas patéticos, as situações rocambolescas e estapafúrdias, os exageros, a excêntrica estética barroca, a cultura kitsch, o sexo passional, as verdades absurdas, a desmesura típica, as músicas envolventes?

Por falar em música, além do equivocado trecho da canção de Elis, há uma forçada inserção da imagem de Caetano Veloso cantando Cucurrucucu Paloma. Por mais que goste de Caetano e a sua brilhante interpretação dessa música, senti que a sua figura ali soa gratuita, deslocada, destoa, num filme onde Almodóvar busca se conter ao máximo. O mano Caetano está ali apenas graças ao seu ego monumental e pela amizade íntima com o diretor. Bairrismos à parte, quase soa uma interferência narrativa.

Afirmam que Almovóvar amadureceu para não se tornar prisioneiro de um estilo. Essa história é furada! Almodóvar só atingiu o ponto mais alto da sua carreira exatamente porque se manteve fiel a um estilo. Exemplo disso é o seu brilhante e perfeito Tudo Sobre Minha Mãe, Oscar de Filme Estrangeiro. Não há nada de errado em manter-se fiel a um estilo, principalmente se esse estilo representa a alma do artista e ainda por cima faz sucesso.

Ninguém deixa, por exemplo, de reconhecer o gênio de Nelson Rodrigues e ele sempre foi fiel a um estilo. Nunca mudou e nem por isso ficou prisioneiro. Não é repetição, mas cada vez que um artista, sobretudo se esse artista é genial, volta sobre o mesmo tema, ele não se repete, mas lança uma nova luz sobre o objeto, ele mostra novos ângulos, ilumina novas camadas do objeto sem nunca se repetir ou ficar prisioneiro do assunto.

Almodóvar, dessa vez, preferiu filmar com o cérebro, esquecendo o coração. É assim que ele comanda, com mão de ferro, um filme onde nada se desenvolve, o imobilismo das duas mulheres serve como desculpa para uma metáfora da passividade. Não tenho nada contra narrativas lentas, até as prefiro, mas nesse filme tudo trava, trunca, não cresce, estagna, como se o diretor quisesse o tempo todo amarrar o ritmo ao estático. A frenética alma espanhola, com toda a sua característica morbidez, não combina com isso. A tourada, o balé, o flamenco, a vida, enfim, tudo é ritmo! No filme temos homens apáticos, covardes, fracos, mulheres fortes, masculinizadas mas imóveis. Não falta só movimento, falta intensidade de emoção.

Os homens choram. E daí? A incomunicabilidade já foi melhor expressa em diversos momentos do cinema, nem vale a pena enumerar exemplos. Qual a vantagem de um homem só conseguir se expressar quando a mulher está em coma? Qual a vantagem para a mulher e para uma relação? Parece muito bonito, mas não se sustenta, pois o que torna bela uma relação é exatamente a troca. Troca que não se vê, pois o diálogo é substituído por monólogos. Benigno, covarde, não tem coragem de procurar a amada. Só consegue falar com ela quando não faz mais sentido e ela está em coma. Se ela acordasse de repente tenho a impressão de que ele se esconderia de medo.

As mulheres não querem homens sensíveis. Não foi por outro motivo que a toureira tinha tomado uma decisão importantíssima antes do seu acidente, referente ao seu hiper sensível namorado jornalista. Ela tinha adoração pelo seu ex, também toureiro e nem um pouco sensível. E quem disse que a bailarina gostaria de um enfermeiro afeminado criado pela mãe? Homens afetados ela tinha aos montes na sua escola de balé.

A mão pesada de Almodóvar exige, no final que um personagem vá para a cadeia para que a imobilidade continue, e, sem muita criatividade, adota um The End hollywoodiano, com letreiro com os nomes do casal, como um fechamento de um circulo. Nada de novo aqui. Mais original foi o macedônio Milcho Manchevski ao finalizar “Antes da Chuva”, filme que recebeu 30 prêmios, entre eles o Leão de Ouro, com um círculo final que se fecha apenas como paradoxo.

Afirmam que o momento mais belo de Fale com Ela mostra o regresso do macho ao útero da fêmea como um homem em miniatura. Não bastassem homens frágeis, afeminados, chorões, Almodóvar inclui um homem miniatura. Não creio que Almodóvar domine tão bem o universo masculino. Mulheres sempre foram o seu forte. Que volte logo a elas!

Fim de Caso


Um livro que recomendo a quem tem alguma fé ou já viveu um grande amor. “Fim de Caso” foi escrito em 1951 por um dos maiores escritores ingleses, Graham Greene, autor, entre outros clássicos, de Expresso do Oriente e Nosso Homem em Havana. Quase todo inglês já leu esse livro que no Brasil passou da 10ª edição. É uma história arrebatadora que virou filme com indicação para Oscar e tudo.


O filme, adaptado da obra de Greene, é dirigido por uma dos meus diretores favoritos: Neil Jordan (Traídos Pelo Desejo e Entrevista Com o Vampiro) e os personagens principais são interpretados por Julianne Moore (Magnólia), Ralph Fiennes (A Lista de Schindler) e Stephen Rea ( alter ego do diretor Jordan, que estrela todos os seus filmes).

A história: um triângulo amoroso entre um alto funcionário público inglês, sua esposa e um escritor durante a Segunda Guerra Mundial em Londres. O ingrediente mais interessante da história, que o autor manipula com maestria, é a fé (ou a ausência de fé) dos personagens em Deus e como isso faz com que suas vidas sejam reviradas e destruídas. Para quem acha que estou antecipando as coisas, a primeira página do livro é quase um flash back e diz quase tudo: “Essa é muito mais uma história de ódio que de amor”.

O livro leva o leitor para uma imensa variedade de emoções humanas que chega-se a pensar: como esses ingleses conseguem conter um vulcão remoendo as entranhas sob uma aparência áspera e fria?

Selecionei uma passagem que gostei especialmente: “Sua cicatriz fazia parte do seu caráter tanto quanto o ciúme. Então pensei se queria que meu corpo se transformasse em névoa e vi que queria que aquela cicatriz continuasse a existir por toda a eternidade. Mas minha névoa poderia amar aquela cicatriz? Então, comecei a querer o meu corpo, que eu detesto, só porque era possível que ele amasse aquela cicatriz.”

Leia após um banho quente, ponha um bom perfume numa tarde chuvosa, tomando vinho branco numa taça legal, ouvindo Sarah Vaughan e com os pés aquecidos por meias novas. Meias novas são fundamentais! Mas para quem prefere ouvir pagode, tomar cerveja na praia e sentar na areia....bem, acho que Grahan Greene não vai combinar.