2.1.07

Venga Toro


Na postagem abaixo disse que a tourada é um dos espetáculos de horror mais insanos e desumanos que existem. Perguntaram-me, provocativamente, se eu acho a matança de um touro na arena mais cruel do que um abate num matadouro. Não vou dar uma resposta direta, vou comparar as duas mortes.


Primeiro, credencio-me para essa resposta. Como Engenheiro Agrônomo em diversas ocasiões da minha vida profissional, castrei animais, fiz partos e estive presente, tendo eu próprio abatido carneiros, porcos, e, pelo que lembro, pelo menos dois bois. Estive também em uma tourada na Espanha e assim sinto-me apto para uma comparação.

O que é mais cruel, dar uma machadada, uma única ou no máximo duas na testa de um touro que será em seguida sangrado para que sua carne alimente dúzias de pessoas e signifique muitas vezes o sustento de uma família ou o que Marco Frenette descreve com extrema revolta e lucidez que se passa nos bastidores de uma arena de touros?

Frenette comenta a série de programas de tv espanhola, transmitidos pela Net, que abordam todos os aspectos desse "esporte" nacional espanhol: “Muitos novilhos são mortos na experimentação de novos modelos de espadas? Toureiros e fabricantes se reúnem em segredo, discutem o peso do aço, e então fazem o teste enterrando a espada no animal. Enquanto o novilho agoniza, comparam a dificuldade com que ela penetrou na carne.

“Animais adultos tem os chifres cortados, ficam horas sob sacos de areia, as patas inchadas são ensopadas com aguarrás para que o animal não consiga ficar parado devido à extrema ardência. Para comprometer sua já fraca visão, os olhos são untados com vaselina e para empurrá-lo em direção ao corredor que o levará à arena, espetam-no várias vezes. O touro aterrorizado corre para o que julga a saída onde é recebido pelos gritos da multidão”.

A tourada é dividida em 3 partes. Primeiro os picadores, a cavalo, golpeiam o touro perfurando-o profundamente com lanças cortantes de aço com pontas de 10 cm. Na 2ª parte os bandarilheiros espetam aquelas hastes com papel colorido nas costas do touro, enfurecendo-o. Parecem lindas, mas têm, nas pontas, um arpão de 8 cm. que causam dores atrozes, pois, a cada movimento, os ganchos cravados cortam cada vez mais fundo.Por fim, o matador executa um balé cheio de frescuras e dá uma estocada única com sua espada, cravando-a até o cabo no corpo do animal. Os picadores retornam e finalizam a execução com as lanças enquanto o toureiro, na arena, sorri para a multidão exibindo o troféu: a orelha ensangüentada do touro. Não é porque Almodóvar embalou essa cena com a voz suave de Elis Regina cantando “Por Toda a Minha Vida” que ela se tornará menos horrenda e grotesca.

Almodóvar filmou a morte de cinco touros numa sessão de treinamento de toureiros reais. Um grupo de proteção dos direitos dos animais está processando o diretor que justificou explicou que a morte dos animais aconteceria de qualquer maneira e as câmeras só fizeram registrar o momento, mas o grupo ecológico alega que as leis locais proíbem sofrimento e morte de animais em filmes e qualquer violência contra eles precisa ser simulada. Qual o propósito de mostrar essas mortes num filme de ficção? Afinal, se fosse um documentário vá lá, mas mostrar a matança revela um profundo desprezo pelo sofrimento dos animais e isso não tem perdão na minha modesta opinião.

Todas as análises sobre esse tipo de “esporte” abordam sempre dois lados. Um dos aspectos gira em torno da extrema covardia com que o animal é tratado, o delírio insano de uma multidão frenética e ávida por sangue "a cruenta alma espanhola", a falsa noção de heroísmo de um canalha que, de posse de todas as vantagens, mata injusta e ritualisticamente um animal destituído de qualquer réstia de dignidade e que conta apenas com a fatalidade do seu destino terrível nas pontas afiadas dos instrumentos de tortura e morte.

A outra análise, embasada sempre pelo cínico verniz antropológico, não admite mensuração de valores de uma civilização por paradigmas esternos a ela. Honestamente, prefiro ser tachado reducionista e de desprezo pela cultura de um povo a aplaudir ou me esquivar a um extremo estupor diante dessa pusilanimidade cruenta.

A avaliação antropológica deveria, caso fosse tão válida, sobreviver a leis que proíbem, por exemplo, a farra do boi em Santa Catarina, afinal também ela faz parte da cultura daquele pessoal. Rinha de galo ou de canários ou brigas de cães só se tornaram integrantes da cultura de um povo, como a farra do boi e as touradas, porque alguém não teve coragem de proibi-las em nome do direito dos animais.
Ou as cruéis esterilizações de milhões de meninas na África, quando lhes extirpam os clitóris sem anestesia. Como condenar a selvagem cultura das infibulações e das touradas se se vai defender o direito de ser cruel com as meninas e com os animais em nome da sagrada e indiferente análise antropológica?

Marx, dizia: "A dominação do homem pelo homem foi precedida da dominação da mulher, mas essa já é história para outro artigo”. Fiquemos, por hora, com uma frase de Gandhi que do alto da sua sabedoria afirmou: "Pode-se medir o grau de evolução de um povo pelo modo como seus animais são tratados".

No comments: