25.1.19

JERUSALÉM A BIOGRAFIA


A primeira vez que ouvi falar deste livro foi no Manhattan Connection, onde o autor Simon Sebag Montefiore foi incensado pelo lançamento de outra obra monumental: “Os Romanov”, a história de 300 anos da dinastia dos czares russos. Dei logo um jeito de devorar as mais de 900 páginas dos Romanov e até escrevi uma entusiasmada resenha no blog.

Os críticos rasgaram elogios à ambiciosa empreitada de Montefiore de escrever uma verdadeira biografia da cidade santa de Jerusalém e seus mais de 3.000 anos de história. Atirei-me sobre as 640 páginas do livro, convencido de que a história de Jerusalém não seria menos impressionante do que a história dos Romanov.

Acabo de encerrar a leitura que poucas vezes consegui interromper, frequentemente adentrando madrugadas. A obra é acompanhada de mapas dos diferentes períodos históricos passados por Jerusalém, dezenas de fotografias e árvores genealógicas das dinastias que dominaram a região desde os primeiros cananeus, sacerdotes e reis judeus de Davi e Salomão até Herodes, cristãos levantinos, papas, cruzados europeus, egípcios, persas, assírios, babilônios, gregos, romanos, patriarcas ortodoxos russos, árabes e sultões otomanos.

Simon Montefiore levou anos na pesquisa para o livro explicando que tal tempo foi necessário por não desejar criar uma obra seca para acadêmicos. Queria vida no livro e decidiu que deveria não somente se ater aos fatos históricos, mas tratar Jerusalém como uma personagem em si. Por isso deveria ser uma biografia da cidade e suas pessoas, quase um romance. Acabou criando um épico!

Lá estão todos aqueles personagens históricos que conquistaram, destruíram ou edificaram os lugares sagrados de Jerusalém. Todos os reis e profetas, sultões, paxás, czares, imperadores e homens santos e suas guerras religiosas. Passaram pelas ruas da cidade e pelas páginas do livro Salomão, Ramsés, Abraão, Moisés, Jesus Cristo, João Batista, Herodes, Pilatos, Maomé, Cleópatra, Cesar, Marco Antônio, Nero, Calígula, Ciro, Alexandre, o Grande, Saladino, Rasputín, Ricardo Coração de Leão, Constantino, Napoleão...Cada um com um generoso espaço para brilhar nas páginas da biografia.

Jerusalém é retratada como a verdadeira arena sanguinolenta que é de disputa das três religiões monoteístas (o chamado povo d’O Livro), convivendo em tensão permanente em espaços sagrados como a Esplanada das Mesquitas dos muçulmanos, o Muro das Lamentações dos judeus e a Igreja do Santo Sepulcro dos cristãos latinos, coptas, armênios e gregos ortodoxos, esses últimos em eterna disputa fratricida interna.

O livro tem início com a conquista de Jerusalém pelo seu futuro rei Davi 1.000 anos antes de Cristo, quando o local não passava de uma antiga povoação sobre uma montanha onde os habitantes enfrentavam verões abrasadores e invernos gelados. O lugar acabou tornando-se em pouco tempo o palco previsto para o Juízo Final e um eterno campo de batalha das maiores civilizações, palco de fanatismos e intolerâncias.

Dezenas de vezes destruída e reconstruída, bombardeada e sitiada, Jerusalém é um barril de pólvora no meio do Oriente Médio, com Israel cercado dos inimigos Egito, Arábia Saudita, Síria, Jordânia, Líbano, Irã, Iraque e Turquia.

A narrativa passa por períodos históricos, cada um deles capaz de preencher centenas de livros, como as duas guerras mundiais, as Cruzadas, o holocausto, as guerras napoleônicas, até as disputas territoriais atuais, encerrando a obra com os fatos que geraram a partilha de Jerusalém após o reconhecimento da ONU em 1967, na icônica Guerra dos Seis Dias.
O autor Simon Montefiore em Jerusalém

Jerusalém é uma cidade que mexe tanto na estrutura psicológica de muitas pessoas que o British Journal of Psychiatry relatou que desde 1930 foi diagnosticado o que a Medicina nomeou “Síndrome de Jerusalém”. Trata-se de uma descompensação psicótica relacionada à excitação religiosa pela proximidade dos lugares santos.

Um dos muitos peregrinos que chegaram à cidade com essa ideia fixa foi o escritor russo Nicolai Gógol que em 1848, entrou na cidade em elevado fervor religioso. Ele já era reconhecido internacionalmente pelas obra-primas O Inspetor Geral e Almas Mortas, mas acreditava que Deus estava bloqueando sua capacidade de escrever para punir seus pecados. Convenceu-se de que suas obras eram pecaminosas, destruiu seus manuscritos e jejuou até a morte.

Mas Jerusalém também era famosa pela vida mundana que acompanhava êxtases religiosos, com bairros inteiros dedicados à depravação e bordéis com adolescentes judias e europeias para todos os gostos ao ponto de tornarem-se focos de doenças venéreas, como narrou outro escritor famoso, o francês Gustave Flaubert, autor de Madame Bovary que se dedicou, em sua visita à cidade, a orgias monumentais como jamais vira na sua vida.

Se a visão de êxtase religioso de Gógol se opunha à de depravação sexual de Flaubert, a opinião do escritor britânico vitoriano William Thackeray, autor do célebre A Fogueira das Vaidades, vai além, ao declarar estupefato: “Não há um único lugar para o qual se olhe em Jerusalém onde não tenha sido cometido algum feito violento, algum massacre, algum visitante assassinado, algum ídolo cultuado com ritos sanguinários”.

Jerusalém é um mosaico cultural intrincado, um caldeirão de guerras santas e paixões, de traições e matanças, de êxtases e espiritualidade, de misticismo e história. Tudo em maiúsculas, em abundância e misturado.  Por trás de cada pedra, de cada muro, de cada palavra há um mundo se descortinando.

Para quem gosta de história, o livro é um achado; para quem tem alguma fé, é essencial; e para quem quer entender a geopolítica atual, é obrigatório.

23.1.19

OBJETOS CORTANTES


Há alguns dias, assisti à minissérie Objetos Cortantes, em uma maratona da HBO. Foram oito capítulos, mas que, na metade, já me fizeram correr para uma livraria e comprar o livro homônimo da escritora Gillian Flynn.

Então se deu o seguinte dilema: ou eu assistiria à minissérie (e assim saberia o final da trama) ou leria o livro até o fim para mergulhar no drama da solitária jornalista Camille Preaker? Era uma “escolha de Sofia”, já que saber o final pela TV inviabilizou a perfeita fruição da experiência do livro. Assim, se você não puder ver a série, leia o livro. Ou vice versa. Não há como escolher um formato sem perder o impacto do outro.

Livro e série são um legítimo suspense policial em que a trama só se fecha na última cena — e nas últimas páginas —, quando revela quem matou e arrancou os dentes das duas garotinhas assassinadas do thriller. Ultima cena? Não. A revelação se dá durante a subida dos créditos do ultimo episódio. Brilhante!

Este foi o primeiro romance de Gillian Flynn, autora também do livro Garota Exemplar (Gone Girl), que teve premiada adaptação para o cinema com direção de David Fincher (de Seven, Clube da Luta e Zodíaco). Já a série Objetos Cortantes foi dirigida por Jean-Marc Vallée (indicado ao Oscar por Clube de Compras Dallas).

No papel principal de Objetos Cortantes está a ótima Amy Adams, com suas seis indicações ao Oscar, dois Globos de Ouro e mais sete indicações para o prêmio. Como coadjuvante de luxo, temos Patricia Clarkson como Adora, a mãe “vampira” da protagonista e que levou o Globo de Ouro e o Critics' Choice Award de melhor atriz coadjuvante.

Definir Objetos Cortantes como um thriller policial é reduzir demais o escopo da obra. Trata-se de um estudo existencial sobre a solidão e o desamor. 

É, para dizer o mínimo, inquietante acompanhar o vigoroso trabalho de Amy Adams na construção da jornalista Camille, eternamente à beira do colapso psicológico, tendo que lidar com os dramas do passado ao ser praticamente obrigada pelo chefe a elaborar uma série de reportagens sobre assassinatos brutais de duas adolescentes na cidadezinha de Wind Gap, não por acaso sua cidade natal, de onde ela conseguiu escapar anos antes, fugindo de uma relação tóxica (na falta de uma palavra mais forte) com sua mãe Adora, uma das megeras mais descaradamente vis e dissimuladas vistas nas telas.

Camille trás como herança da convivência com a mãe e com a cidade centenas de cortes em forma de palavras rasgadas nos braços, seios, tronco e pernas. A automutilação como válvula de escape e expiação física para a angústia emocional. Na falta das facas e navalhas, o álcool em abundância torna-se simulacro líquido para afogar a dor psicológica de Camille, com a vantagem se ser plenamente aceito e estreitamente ligado à ideia de socialização. É como se ela ecoasse as palavras de Frida Khallo: “Tentei afogar minhas mágoas, mas as malditas aprenderam a nadar”.

As cicatrizes do corpo de Camille estão cauterizadas, mas ao retornar a Wind Gap, os estigmas da alma recomeçam a sangrar. Em dezenas de flashbacks, vamos, aos poucos, adentrando o universo da Camille adolescente: a sensação de inadequação ao ambiente escolar, o abuso sexual a que se submetia como forma de conquistar afeto e o sofrimento e morte da meia-irmã Marian, pela qual se culpa, já que a mãe não hesita em lamentar que não tenha sido Camille a morrer no lugar da favorita. A certa altura Camille lamenta: “É impossível competir com os mortos, eu gostaria de parar de tentar”.

A protagonista encontra uma miríade de dificuldades ao tentar realizar as reportagens. A começar por um delegado indolente, uma população anestesiada com os crimes, oscilando entre a xenofobia pela possibilidade de o assassino ser um dos seus moradores e o desejo vulgar de virar notícia. Não fosse o suficiente, a mãe de Camille, a milionária Adora, boicota todo o tempo o trabalho, ora definindo a reportagem como de mau gosto, ora simplesmente impedindo os parentes das vítimas de falarem com a filha.

A cidadezinha de Wind Gap é praticamente um dos vilões da história, com sua atmosfera decadente, goticamente sufocante e soturna, com suas fazendas de porcos confinados e cujo sofrimento torna tais animais neuróticos e com desejo de morte. Não é à toa que publicações científicas definem os porcos como animais mais espertos que cães e com nível de inteligência similar ao dos os chimpanzés. Não por outra razão, Camille jamais conseguiu comer um presunto na vida após visitar os animais confinados em baias-prisões em uma das fazendas da mãe. É angustiante ler as descrições dos matadouros no livro. A série apenas tangencia esse aspecto.

Em meio a essas duas mulheres problemáticas em eterno embate, temos uma terceira não menos complexa: a meia-irmã de 13 anos Amma (a atiz Eliza Scanlen dando um show na série), rebelde, manhosa, eternamente nas piores companhias e em festas regadas a sexo e coquetéis de anfetaminas e maconha. Amma é também a fêmea alfa que domina uma galerinha insolente de ninfetas patinadoras.

Enquanto age como uma minimegera, a adolescente Amma é também vítima da mesma mãe superprotetora. Nesse caldeirão, Camille tem que lidar com a possibilidade de salvar Amma da vil Adora, como talvez não tenha conseguido fazer com a irmã Marian.

Um livro perturbador adaptado para uma série ainda mais intrigante. Como diz a autora em determinado momento: “Uma criança criada com veneno considera a dor um consolo”. Não deixe de ser uma testemunha privilegiada desse embate entre a apatia e a catarse.