26.9.06

Havia um Carro de Boi

Costumava passar por aqui um carro-de-boi, o carro-de-boi das 5 horas. A poeira da estrada que ele levantava só assentava lá para o fim da tarde e o som, agora distante, das suas rodas, costumava ficar em meus ouvidos, noite adentro, como a luz das estrelas permaneciam dentro de meus olhos, mesmo fechados, muito mais tarde.

O pó daquela estrada que o carro-de-boi das 5 horas levantava, ainda hoje não larga a minha alma e a sua lembrança nunca foi tão viva. Antes que anoiteça totalmente dentro de mim, minha tia ainda pegaria o candeeiro de querosene de espantar muriçocas.

Antes que escureça, ela ainda precisaria expulsar as galinhas que ficaram sobre as camas e recolher um ou outro ovo. Antes que o crepúsculo se instale em minha alma, minha tia ainda faria requeijão quente e não me deixaria comer porque dava dor-de-barriga.

Minha tia fingia que não via que eu comia o requeijão ainda quente que ela fingia ter esquecido sobre a mesa da sala. Antes de anoitecer definitivamente, ela ainda prepararia as lingüiças que comeríamos no almoço do dia seguinte.

Minha tia não mora mais aqui e o carro-de-boi não existe mais. Ficaram a mesma poeira e a mesma estrada de cascalho. Sou estranho à beira do caminho onde passava um carro-de-boi e já passou há muito, das cinco horas. Aqui estão outras galinhas ciscando. O que terá acontecido com aquela galinha de pescoço pelado que senti pena e pedi à minha tia que não matasse ? Um dia ela foi importante e durante anos não a julguei digna de uma lembrança. Como saber o seu destino tornou-se tão dolorosamente importante.

Os olhos, órfãos de subjetividades, buscam recordar. Encontram o velho pneu ao lado do, agora enferrujado, rolo de arame farpado, o umbuzeiro centenário, empoeiradas telhas de argila encostadas à antiga cerca, a moenda desativada, a lagoa já seca...As montanhas que um dia teriam sido azuis aparecem cinzentas ao meu novo olhar. Nunca foram azuis, os olhos é que perderam a capacidade de enxergar, azuis, montanhas cinzentas.

Mas um novilho esquálido, de um bege sujo, toma luar sob uma árvore ressequida. Dói olhar. Uma árvore tão grande, e não faz parte da minha memória.

19.9.06

A Taça de Vinagre


Em 1882 deu-se o primeiro e único encontro entre dois homens memoráveis, dois homens tão diferentes entre si como a água e o vinho e ao mesmo tempo com afinidades que, paradoxalmente, os uniam, como a devoção pela beleza e pela literatura. Falo do escritor irlandês Oscar Wilde e do poeta americano Walt Whitman.


Oscar Wilde era, então, um jovem poeta que causava furor na Europa quando chegou pela primeira vez aos Estados Unidos para uma turnê de palestras. Seu esteticismo já era lendário no continente europeu, mas a América puritana parecia que seria hostil àquele dândi que alegava não estar à altura dos seus objetos de porcelana azul.

Engano. A América adorou Wilde e mimou-o como ele estava acostumado. Na Filadélfia, ele pediu para conhecer o grande Walt Whitman, poeta já velho e famoso, mas que vivia em uma cabana simples.

A elegância refinada do jovem Oscar, com seu sobretudo de veludo verde, contrastava com o barbudo Walt com sua blusa rústica feita pela cunhada. Wilde contou para Whitman que sua mãe lia para ele, na infância, os belos poemas do livro Folhas de Relva, do velho americano.

Whitman, lisonjeado, ofereceu ao visitante uma garrafa de um vinho vagabundo, feito de sabugo de milho. O estóico e o esteta desfrutaram daquele improvável momento etílico enquanto conversaram por horas. Separaram-se, emocionados.

Tempos depois, já em Londres, o elegante Oscar Wilde contou para amigos aquele encontro. Os colegas, conhecendo bem seu gosto refinado e suas exigências para vinhos comentaram como devia ter sido intragável, para ele, beber aquele vinho de sabugo.

Wilde respondeu: “Se aquele homem tivesse me oferecido vinagre, eu beberia com mais prazer do que já bebi o mais fino champanhe”

Lembrei desse encontro de dois dos meus escritores favoritos e, longe de mim me comparar a qualquer um deles, constatei como essa passagem tem uma irônica analogia com a forma como a política se apresentou na minha vida.

Sempre admirei a coragem de Wilde, que dizia: “O público é maravilhosamente tolerante. Perdoa tudo, menos o gênio”; e a sobriedade de Whitman. Por algum tempo, como Oscar Wilde, também eu acreditei profundamente em um homem simples. Um homem de barba, como Whitman, que vinha do povo, como ele, que tinha os valores do povo e que saudava o homem rústico, o homem simples: “Não me fechem as portas, orgulhosas bibliotecas, / Pois justamente o que estava faltando em tuas prateleiras apinhadas, / É o que venho trazer”.

O homem simples em quem um dia eu acreditei parecia trazer, na própria vida, o conteúdo alternativo das bibliotecas oficiais cujas portas lhe tinham sido fechadas. Esse homem simples, quase analfabeto, sentira na pele o sofrimento da fome, da falta de oportunidades, da pobreza. Esse homem não faria alianças sujas, redimiria toda sorte de injustiças, não trairia a confiança depositada em que sonhou com uma estúpida espécie de redenção possível. Era a esperança contra o medo.

Há anos-luz do talento de Wilde, também vivi em meio aos livros e tive educação e certo conforto. Como Wilde, fui embalado por anos pela imagem de um homem simples, de barba. Como Wilde, metaforicamente, bebi da taça de vinagre que um homem simples me ofereceu.

As semelhanças terminam aqui. A minha história não tem um final feliz.

2.9.06

A Interatividade sem Pecado Abaixo do Equador


Desmond Morris, renomado antropólogo britânico e consultor científico da BBC inglesa, coordenador da série de documentários O Animal Humano, no seu mais famoso livro O Macaco Nu, analisa o comportamento interativo humano sob uma ótica digamos, geográfico-climática.

Claro que existem vários outros estudos sobre a antropologia especificamente sub-equatorial que nos resultou homens tão cordiais, já disse Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso e Raízes do Brasil, estudou Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mucambos e descreveu Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo; do calor tropical onde se cozinhou nossa única sopa racial e onde tudo passa da construção à ruína sem passar pelo apogeu, como definiu Levi Strauss em Tristes Tópicos.

Mas Desmond Morris acredita que entre a série de fatores envolvidos nessa compulsão interativa, um fundamental é o clima quente dos trópicos. Para ele, em países abaixo do equador, o calor faz com que as pessoas desenvolvam uma cultura meio apática, menos introspectiva, algo calorosa, afetuosa, displicente e mais interativa. Uma das razões para isso seria porque o homem tropical, diferente do de clima temperado, não se preocupa com o período do ano em que faz frio ou neva e ele não precisa, nos meses de calor, economizar para pagar calefação e estocar alimentos. Por aqui não se economiza porque, proporcionalmente, tudo tem o ano inteiro e ninguém morre de frio.

Assim tudo é relativamente abundante e o homem tropical reflete essa abundância natural com abundância de gestos, de palavras, de ritos, de danças, de toques. Aqui todo mundo dá opinião na vida dos outros, se importa ou finge se importar com tudo que não lhe diz respeito. É preciso participar. Na aparência, é claro, porque não se comprometem de fato.

É comum, por exemplo, no trânsito, alguém buzinar, dar sinal de luz e fazer todo tipo de gesto apenas para avisar ao motorista do carro ao lado que a porta no veículo não está fechada ou o farol está acesso. Esse falso cooperativismo não é visto em situações realmente importantes.

Ou quando se entra numa contramão e nunca falta quem avise que é contramão. Creio que 99% das pessoas que entram numa contramão percebem logo o erro, mas sempre tem alguém que avisa que você está na contramão. Há um prazer nesse alerta e os autores não estão conscientes. É apenas um sintoma da interatividade.

Outro hábito comum é quando um flanelinha, a pretexto de ajudar a estacionar o carro, fica batendo na chaparia. Peço sempre que parem, não gosto que batam no meu carro, mas logo me arrependo, pois esses interativos se aborrecem facilmente quando alguém aparenta ser mau humorado e os carros costumam sofrer com isso. Sem contar quando há uma contenda quando dois deles disputam quem guardou seu carro. E você sabe que não foi nenhum dos dois.

O fato de Salvador ser uma cidade costeira e de litoral belíssimo faz com que as pessoas percam a capacidade e o espaço do ensimesmamento, da introspecção. Qualquer tristeza momentânea, o horizonte e o mar estão ali para estabelecer uma dimensão infinita e qualquer abalo emocional sofre revés ante a imensidão. E nada é refletido ou analisado e sim sufocado pela paisagem exuberante.

Não falo do sagrado hábito da contemplação. A exuberância sufoca também contemplação. Quando alguém contempla um determinado objeto, é preciso de tempo e silêncio, como num mantra visual, para que nós próprios nos percebamos novos diante do objeto contemplado. Essa observação cuidadosa e muda mostra muito menos do objeto contemplado e muito mais de nós mesmos do que imaginamos. E, muitas vezes, mostra mais do que gostaríamos de ver. Por isso a fuga é freqüente.

Em lugares onde a frieza do clima, da geografia, ou da arquitetura dificultam a interação, as pessoas costumam confiar mais nos amigos verdadeiros que costumam ser poucos, e escolhidos, para questões importantes. As pessoas estabelecem vínculos mais sólidos para confiar e atravessar reveses emocionais ou para problemas mais sérios.

Em cidades como Salvador facilmente se consegue companhia para uma farra, festa, folia, mas dificilmente se consegue um apoio moral ou emocional. A agenda de endereços e telefones, repletas de contatos, não serve para outra coisa que não para o lúdico.

A amabilidade folclórica do baiano é realmente superficial como são superficiais suas amizades. É comum duas pessoas se encontrarem na rua e se abraçarem excessivamente afetuosas para logo se afastarem dizendo: me liga para a gente marcar alguma coisa. Não há a honestidade de dizer simplesmente: Até qualquer dia, mesmo porque ambos sabem que não vão ligar coisíssima nenhuma e às vezes nem têm os números dos telefones um do outro.

Outra mania baiana é a mania de desmarcar. É surpreendente a facilidade com que se desmarca aqui. As pessoas combinam coisas: cinema, teatro, qualquer coisa e se, de repente, pintar algo melhor, simplesmente ligam dizendo: Estou desmarcando ou então Não deu!. Isso quando ligam. Na maioria das vezes simplesmente nem aparecem. E fica por isso mesmo porque quem sofre a "desmarcação" também é craque em "desmarcar".

Li na Folha de São Paulo um texto ótimo com o título: Modos brasileiros de escapar do não, de Michael Kepp, que serve como uma luva para o baiano. Kepp diz: "Universalmente as pessoas se escondem atrás de expressões comprometedoras para evitar assumir a responsabilidade pelos atos e opiniões e fugir de confrontos embaraçosos. Se essa "esquiva retórica" fosse uma disciplina acadêmica os brasileiros seriam PhDs nela."

"Expressões propositalmente vagas como: ‘Pode ser’, ‘vamos ver’, ‘se der’ para desviar da palavra não. E frases descompromissadas como ‘eu te ligo’, ‘a gente se vê’, ‘apareça lá em casa’, são escapadas e não promessas de novo encontro."

“O álibe para não cumprir um compromisso é : ‘Houve um desencontro’
" ’Pô você sumiu' não deve ser confundido com ‘Que saudade’ "
" ’Sumiu!!??’ é uma reação sem graça que transfere o peso do sumiço para o outro."

E o pior é que a pessoa supostamente sumida tem endereço e telefone conhecidos pelo outro. Nos EUA as pessoas dizem, com a mais saudável honestidade: "Meu nome e endereço estão na lista telefônica". Quem quer encontrar o outro sabe como fazer e se não faz é porque não quer, não tem essa hipocrisia.

" ’Fico te devendo’: Qualquer trato não cumprido soa como um acordo amistoso. ‘Não deu’ antecipa um ‘fica para a próxima’.”
"Os americanos são mais objetivos ou mais grosseiros? Se dizem: ‘Desculpe, não vou poder porque estou muito ocupado’ é um golpe no ego, mas enrola menos do que ‘eu te ligo’ ou ‘a gente combina’ ”
“As expressões mais perigosas são as que começam com: ‘é o seguinte’...prosseguem com ‘não deu’ e acaba com ‘fica para a próxima’."

O escritor Umberto Eco, comentou na Revista Época: " Se você é convidado [nos EUA] para algum compromisso e responde que está ocupado (Sorry, I'm busy), a pessoa que o convidou chega a pedir desculpas e não lhe pergunta mais nada. Mas se você diz que sim e depois não vai, a coisa é inconcebível" "Entre nós [diz citando os italianos mas perfeitamente aplicável aos brasileiros e baianos], se diz:' me ligue para a gente se encontrar', ou então: 'quando passar por aqui venha jantar em casa', e não temos nenhuma intenção de rever nosso interlocutor".

Não sei se fiz uma colcha de retalhos ou se desenvolvi alguma idéia coerente com argumentos discutíveis. Para quem achou que passei a adorar os EUA e odiar a Bahia deixo essa dúvida no ar como uma espécie de mistério...Não resisti.