28.9.18

OS ROMANOV - 300 ANOS DE CZARES RUSSOS


Após duas semanas e 920 páginas, finalizei “Os Romanov”, livro-tijolo do historiador Simon Montefiore, uma embriagante biografia dos 300 anos da dinastia de 20 czares da Rússia, encerrada dramaticamente com a revolução comunista e a chacina de toda a família imperial do czar Nicolau II.

Durante 300 anos de sangue e violência de 20 czares Romanov — seis deles assassinados por estrangulamento, tiros, bombas ou punhaladas —, a Rússia se expandia e milhões de servos e soldados eram mortos em guerras, torturas e massacres. Se a saga dos Romanov não fosse real, poderia perfeitamente ser uma ficção macabra recheada de carnificinas em que pais torturavam filhos, que matavam seus pais e czares e czarinas que traíam seus cônjuges com inúmeros amantes.

Nesses três séculos sob á égide de imperadores que governavam 1/6 do planeta, entre eles Pedro, o Grande; Ivan, O Terrível; e Catarina, a Grande, a Rússia acumulou uma notável coleção de arte, tornou-se uma potência, engoliu países e territórios, modernizou-se e implantou ferrovias gigantescas como a Transiberiana, com mais de 9 mil km. Foi uma era dourada para a arte russa que produziu sofisticadas obras na Literatura e Música, por meio de artistas como Tolstói, Dostoievski, Chékhov, Gógol e Tchaikóvski.

O autor transcreve trechos picantes de cartas de czares e czarinas a seus amantes com conteúdo muito explícito fazendo acreditar que os Romanov eram um imenso clã mafioso de depravados sexuais com libido à flor da pele. Há relatos de médicos da corte que recomendavam que governantes moderassem o número diário de relações sexuais porque isso estava afetando a saúde. O autor chegou a censurar trechos transcritos das cartas por receio de a obra se transformar em um livro erótico.

Para a pesquisa do livro, Montefiore utilizou quantidade gigantesca de relatórios oficiais, documentos inéditos e correspondências de aristocratas, militares, revolucionários como Stálin, Trótsky e Lênin, cortesãos, religiosos, monarcas como a rainha Vitória e Napoleão Bonaparte, aventureiros, charlatões, assassinos e prostitutas. O livro ainda é belissimamente ilustrado com dezenas de fotos das famílias dos czares e seus palácios suntuosos.

A corte dos czares era um circo de aberrações repleta de anões nus maquiados como velhos, gigantes vestidos de bebês, hermafroditas e deficientes físicos, mulheres extremamente obesas, bobos da corte e uma infinidade de cortesões dedicados ao divertimento dos nobres. Orgias tinham início ao meio-dia e duravam até a manhã seguinte. A farra incluía carruagens puxadas por bodes, porcos e ursos e cardeais cavalgando jumentos e bois com adereços fálicos.

A imperatriz Anna Romanov reduziu seus aristocratas ao status de bobos e obrigou príncipes e condes a integrar sua corte de bobos. Um desses nobres sempre se fantasiava de galinha e se sentava num cesto de palha durante horas cacarejando diante da corte.

O livro relata com riqueza de informações a invasão napoleônica na Rússia, quando o czar Alexandre I, escondido em Petersburgo, viu sua capital Moscou ser incendiada por seis dias, evacuada por seus 500 mil habitantes em fuga desesperada.

Simon Montefiore avalia que Napoleão cometeu o maior erro de sua vida ao ficar um mês no Kremlin esperando a rendição de Alexandre. Nesse ínterim, o rigoroso inverno russo se abateu sobre os franceses invasores que fugiram sendo perseguidos e perdendo incalculável número de homens.

Nicolau II, o último Romanóv, um governante muito débil e antisemita, estimulava a perseguição, deportação e o massacre de centenas de milhares de judeus russos (os odiosos pogroms), organizados e apoiada pela famigerada Okhrana, sua polícia secreta. Um czar completamente  manipulado pela esposa Alexandra, que por sua vez era marionete de vários oportunistas, entre eles o famoso monge Rasputin, um charlatão de origem camponesa, místico, tarado e meio louco, com uma influência  junto à corte que nenhum escritor seria capaz de imaginar numa obra ficção. 

Rasputin era tão poderoso que mesmo com provas cabais de que estuprava damas de honra da imperatriz e tráfico de influência, gozava de tamanha confiança da família real que chegava a nomear e  demitir primeiros ministros. Seu assassinato é descrito no livro com toques de thriller policial.

O czar Nicolau a tal ponto alienado do que acontecia fora dos seus suntuosos palácios, que enquanto o povo protestava às portas dos castelos, assassinando autoridades, destruindo edifícios em plena 1ª Guerra Mundial, o governante dedicava-se a prosaicas partidas de dominó. Era tão pródigo em nomear os ministros mais incapazes e corruptos e dar ordens contraditórias, que alguns ministros destruíam seus próprio telefones e telégrafos para que o czar não voltasse atrás em uma ordem dada.

Em um diálogo com o embaixador inglês, Nicolau inquiriu: “Você me diz que eu preciso reconquistar a confiança do povo. Não é antes meu povo que tem de reconquistar minha confiança?”. Essa é uma frase exemplar de um autocrata alienado.

Em outro diálogo com um dos seus conselheiros, o czar perguntou: “Será possível que por 22 anos eu tenha tentado agir pelo melhor e por 22 anos tenha sido um equívoco completo?”.Ouviu uma resposta sincera que jamais ouviria se as coisas não estivessem no caminho do desastre: “Sim, vossa majestade por 22 anos tomou o curso errado”.

O livro tem no seu capítulo final uma análise sobre o período de terror da União Soviética comunista e sobre a Rússia moderna e uma série de correlações entre o período absolutista dos Romanov com o governo autoritário de Vladimir Putin num paralelismo assombroso com o uso do poder do Estado e da repressão e na violência. Um livro importante para se compreender o passado e entender como um estado autoritário se forma e se perpetua.

5.9.18

OS COMPLEXOS PERSONAGENS DE HARUKI MURAKAMI


O escritor japonês Haruki Murakami é o mais popular entre os eternamente favoritos ao Prêmio Nobel de Literatura, aparecendo, a cada ano, em todas as apostas para levar a láurea máxima, mas sendo constantemente esnobado pela Academia Sueca, para tristeza dos seus milhões de fãs no mundo, entre os quais, com orgulho, me incluo.

Talvez Murakami, fã de música e maratonista, não tenha o perfil sisudo ou engajado que se espera dos autores premiados com o Nobel. Ele transita com desenvoltura no universo pop e cotidiano, talvez com desenvoltura excessiva para os padrões acadêmicos. Murakami, traduzido em mais de 40 idiomas, considera mais relevante abordar questões íntimas e pessoais dos seus complexos personagens do que fazer recortes sociais e políticos nos seus romances.

Este ano li três deles: “Minha Querida Sputnik”, “Norwegian Wood” e “O Incolor Tsukuro Tazaki e seus Anos de Peregrinação”, considerado um de seus melhores livros, que na primeira semana de lançamento vendeu 1 milhão de cópias no Japão, já tendo superado os 4 milhões de exemplares no país.

As três obras têm em comum jovens protagonistas sensíveis demais para os ambientes das metrópoles em que se encontram. Outsiders introvertidos, chicoteados pelo espicaçar da consciência, lê-los é como olhar por um buraco de fechadura o interior desnudo de pessoas prestes a saltar para fora do mundo. É um olhar que fascina e incomoda.

Em Minha Querida Sputnik, acompanhamos Sumire, uma adolescente apaixonada por Miu, mulher 17 anos mais velha. Sumire erra pelas páginas de Murakami, vagando à procura de uma identidade própria, repleta de um grande vazio interno. O autor, enquanto nos envolve nas questões íntimas da personagem, faz com que tenhamos a necessária empatia para nos dedicarmos à narrativa, ao mesmo tempo em que nos impele a defrontar com os defeitos de Sumire, com o distanciamento mínimo para sentirmos certa compulsão pelo desenvolvimento da história.

Quem sabe o que nos atraí mais: os dramas ou os defeitos? Em que medida esses defeitos e questionamentos já nos habitaram quando éramos jovens como os personagens de Murakami. “Por que será que estamos condenados a ser assim tão solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente afastados. Por quê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a solidão dos homens?”

Norwegian Wood – Toru Watanabe narra-nos a sua história dos 16 aos 20 anos. Sabemos que seu melhor amigo de infância se suicida enquanto a namorada deste, aos poucos, aparenta perder também a sanidade. Enquanto estuda Arte Dramática na universidade, Toru lida com a dificuldade de se relacionar com os demais colegas. Praticamente sem amigos, ele busca desenvolver algum tipo de relacionamento humano e encontrar uma espécie de brecha para uma identidade minimamente própria. A lacuna deixada pela morte do amigo e a alienação da amiga são um espinho cravado em sua alma.

Caso Murakami não tivesse apontado no próprio livro, seria de se espantar se os leitores não notassem as inegáveis similitudes de Toru com o personagem Holden Caufield de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D.Salinger ou as várias referências a “O Grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald, lido e relido por Toru ao longo do romance.

O livro tem o título homônimo de uma canção dos Beatles e aqui vemos uma das obseções de Murakami: a música. Ele não se cansa de incluir em seus romances inúmeras referências musicais. Houve quem encontrasse mais de 3 mil títulos de canções espalhadas pelos seus livros. O próprio autor possui mais de 10 mil discos de vinil na sua coleção.

No último capítulo, a personagem Reiko, como em uma bela e pungente cerimônia de réquiem, toca simplesmente de enfiada 51 canções para o protagonista, entre elas: Norwegian Wood, Eleanor Rigby, Yesterday, Michelle, Something, Here Comes the Sun, Fool on the Hill, Penny Lane, Blackbird, Julia, When I’m Sixty-Four, Nowhere Man, And I Love Her e Hey Jude, todas dos Beatles. E a lista continua com canções de Burt Bacharach, Tom Jobim, Harry Mancini, Gershwin, Bob Dylan, Ray Charles, Carole King, The Beach Boys, Stevie Wonder...É ou não uma ode à cultura pop mundial?

Os personagens reagem movidos mais pelo imprevisível do que pelas suas buscas pessoais. A libertação vem através do incontrolável, do confronto inevitável com o universo do outro. É como se ouvíssemos o eco de um poema de Fernando Pessoa: “Grandes são os desertos, e as almas desertas e grandes. Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!”.

O Incolor Tsukuro Tazaki e seus Anos de Peregrinação tem no personagem título mais um dos solitários protagonistas de Murakami vivendo um drama do passado. Quando estudante, seus quatro amigos inseparáveis eram o seu Norte: Akamatsu, o “pinheiro vermelho”, Ômi, o “mar azul”, Shirane, “a raiz branca”, e Kurono, o “campo preto”.  O único deles sem uma cor no nome era justamente Tsukuro. Anos depois, adulto, ele não consegue se libertar do trauma ocorrido quinze anos antes, quando foi expulso do grupo de amigos.

Tsukuro é impelido a reencontrar os quatro amigos do passado para saber por que foi inexplicavelmente expulso do grupo. Sua busca, se fosse um filme, seria um road movie, já que a jornada quase espiritual o leva a perscrutar o passado e tentar descobrir a jornada pessoal de cada um e de si mesmo. O desconhecido pode ser ameaçador, mas também é libertador.

Aqui novamente encontramos o eco da musicalidade de Murakami com as diversas citações ao longo do romance do compositor húngaro Franz Liszt, autor das sinfonias intituladas exatamente "Os Anos de Peregrinação".

Todos os desfechos das obras de Murakami possuem em comum o uso das narrativas abertas em finais beirando o inconcluso. Não se verá uma ruptura abrupta ou uma catarse, longe disso. Se as buscas dos personagens aparentemente terminam, a estrada finaliza apenas para inferir-se que haverá novas buscas e novos caminhos a percorrer, desta vez com uma bagagem nova, adquirida ao longo do percurso. Bagagem que ironicamente encontrará um peregrino mais leve, repleto de autodescobertas e feridas lancetadas.

Ao reler o texto acima, temo ter dado a impressão de que os livros de Murakami são muito densos ou lúgubres demais. Não poderia haver engano maior. A narrativa fluida e o uso de elementos da cultura pop contemporânea se aliam a um humor um tanto ácido, mas ainda assim, humor. Tudo isso dá o toque de imensa humanidade que se vê derramar ao longo de cada uma das suas páginas.

Longa vida aos complexos personagens de Murakami.