20.1.12

Os Advogados do “Bom Gosto” Alheio

Todo ano é a mesma ladainha. Basta a Rede Globo estrear uma edição do Big Brother Brasil que logo começa uma campanha e uma feroz patrulha contra o programa e a emissora. Mas nunca vi a coisa ficar tão feroz como desta vez. As redes sociais estão pululando de gente ouriçada, todos loucos para opinar contra o BBB. São os advogados do bom gosto alheio.

E tome clichês como “atrofiar a mente”, “alienar”, “A intenção da Globo é nos emburrecer”, “zoológico humano”... É uma ladainha de lugares comuns.

O BBB, na sua essência, não difere dos outros inúmeros reality shows (há para todos os públicos). Mas os advogados do bom gosto alheio se atiçam especialmente pelo programa que é um tipo contemporâneo de dramaturgia. Você pode gostar ou detestar uma pintura, um romance, uma peça, uma novela, um samba ou um balé, mas não pode negar que todas essas expressões artísticas têm em comum os elementos básicos constitutivos de toda dramaturgia, elementos estabelecidos há centenas de anos por Aristóteles em sua “Retórica”: pathos, ethos e logos.

Pathos representa os elementos dos conflitos estabelecidos, as brigas, os amores, as intrigas; Ethos, a ideia de que o forte pode ser derrotado pela união dos fracos, o caráter das personagens, ou a possibilidade de o bem vencer o mal no final. Ou não. Logos é a narrativa midiatizada pela TV, a linguagem.

O BBB representa apenas um exemplo dos novos formatos que a cultura contemporânea encontrou para disseminar estruturas narrativas diferentes das então existentes. A evolução da tecnologia ao longo da história humana sempre modificou os padrões difusores da dramaturgia.

A se fiar nos contrários a novidades narrativas, nunca se teria escrito a Ilíada e a Odisséia, pois quando os aedos gregos, como Homero, narravam aqueles cantos, fiavam-se apenas na memória. Quando começaram a escrever as histórias, considerou-se um sacrilégio. Quando incorporaram ao teatro apetrechos técnicos que tiravam o foco da interpretação dos atores, inicialmente foi uma heresia, como a inclusão do som no cinema mudo...

Todas as mudanças introduzidas nas narrativas existentes sempre geraram estranhamento e críticas. E as críticas sempre vinham dos conservadores.

O que os advogados do bom gosto acham de tão diferente assim entre um BBB e uma novela ou um livro ou um filme? Não estou entrando no mérito da qualidade da obra, mas do formato delas. Vejamos:

1º) Todas tem um tipo qualquer de representação. O ator encarna um papel diferente de si próprio, um personagem. O BBB tem nisso uma grande jogada: o participante, que não é ator, representa a si próprio. Mas não pode ser 100% ele mesmo, pois as pessoas esperam uma mistura de realidade com show, buscam alguma centelha de encantamento. Essa dosagem misteriosa, esse ponto de equilíbrio delicadíssimo faz com que o participante agrade ou não ao público. Agrada mais aquele que, paradoxalmente, melhor finge o que realmente é. E o púbico é esperto. Assim como os participantes. No cinema/novela/teatro, o ator não pode ser ele mesmo sob pena de desagradar ao público e ser tido como canastrão.

2º) Todos os formatos dramatúrgicos envolvem algum tipo de dinheiro. Ou alguém acha que um escritor ou diretor ou roteirista escreve ou dirige por sacerdócio? O que incomoda tanto no fato de um participante do BBB ganhar 1 milhão? Muitos atores ganham isso. Aliás, isso é de uma falta de importância tão grande que atribuo as críticas focadas nesse aspecto do programa ao puro despeito ou inveja. Ou coisa pior, um elitismo disfarçado (só quem pode ganhar esse dinheiro é alguém que tenha estudado dramaturgia ou ralado na lida dos palcos e telas).

3º) Toda dramaturgia é um tanto de ilusão. Ninguém suporta excessos de realidade e ironicamente o reality show é uma realidade dourada. As festas são inclusões artificiais, a relações são profundas ou superficiais, há uma fachada que é evidenciada em cada aspecto, mas ao mesmo tempo busca seu disfarce. O paradoxo é fascinante. Cada um quer ganhar o prêmio máximo, quer ganhar a fama, a atenção, o carinho, o voto. É um simulacro da realidade, uma emulação dos conflitos da vida real maximizados e estimulados. O voyerismo é uma das condições da existência de qualquer obra de arte. Um exemplo disto está na célebre entrevista em que o diretor francês da nouvelle vague, François Truffaut, ídolo da esquerda, dá uma aula aos patéticos jornalistas americanos, explicando-lhes, e deixando-os de queixo caído, porque Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, é uma obra prima.

4º) Toda história tem um autor-narrador. O BBB tem milhões. A história vai se desenvolvendo à medida em que os conflitos e alianças se estabelecem. A cada dia, a casa pode adquirir novo formato a depender das performances dos seus integrantes e do humor da audiência. Todo livro, novela, peça, música tem apenas os seus autores.

Cabe aos leitores, espectadores e ouvintes o papel passivo de desfrutar da obra ou não. No BBB estabelecesse uma cumplicidade e a plateia tem a sensação de que pode fazer a história adquirir um rumo ou outro. Uma dramaturgia sem texto, ou melhor, com uma infinidade de textos possíveis.

Acho um perigo quando começam a definir o que é de interesse público e o que não é. Acho muita arrogância de intelectual pretensioso criticar o que as pessoas gostam. Acho que o maior termômetro para saber se algo está agradando é a audiência. Vejo um vídeo disseminado pelos advogados do bom gosto alheio do artista plástico Antonio Veronese criticando o BBB a partir de uma matéria do jornal O Globo em cujo caderno cultural publicou quantas vezes as meninas se masturbaram dentro do programa. Para ele é inconcebível que o “país pare” para ver duas pessoas conversando abobrinhas na cozinha.

Ele diz ainda que o BBB idiotiza as pessoas, mas se esquece de que a tv aberta mesmo oferece programas de "qualidade" que não atraem a audiência, vide os índices da TV Cultura. As pessoas não se conformam em não assistir ao programa, elas querem que os outros também não assistam. Elas não se conformam em não gostar, incomodam-se que outros gostem. E usam essa desculpa esfarrapada de que não é do interesse público ou que não é de bom gosto. Ninguém está obrigando ninguém a assistir. Para isso existem controles remotos e a programação cult da TV Cultura.

A Rede Globo como as demais emissoras são empresas privadas e têm anunciantes. Assiste quem quer. O que não dá é para ficar impondo a vontade em nome de um bom gosto ou moralismo e querer que uma empresa privada faça o que os intelectuais boçais querem. E se os anunciantes querem pagar para aparecer no programa é porque dá lucro para eles. O governo não tem nada a ver com isso. Os intelectuais adoram se meter no gosto dos outros e quando não conseguem o que querem pedem a interferência do governo.

Acho isso tão perigoso que nem sei por onde começar a me preocupar. Só queria saber de início quem são os sabidos que vão escolher o que é adequado. Quem são esses inteligentes que vão dar os parâmetros do que é bom e o que não é. O mais democrático é que cada um escolha o que lhe convém. Não para os advogados do bom gosto alheio, eles sabem o que é bom para o povo. Para mim, só resta lembrar a advertência do robô de Perdidos No Espaço: “Perigo! Perigo!”.

Para moralistas contrários ao programa, o BBB deve se suspenso “em defesa da família brasileira” (juro que li esse argumento na internet). Então vemos uma aliança estranha, os moralistas, os esquerdistas e os intelectuais contra o programa da Rede Globo.

Para quem reclama de um programa exibir durante horas imagens banais de pessoas conversando abobrinhas, lembro que o pintor e cineasta underground americano, Andy Warhol, pai da pop art e ícone pós-moderno, exibiu, em 1963, o seu filme Sleep, que era simplesmente um plano-sequência de um homem dormindo por cinco horas e vinte minutos. Mais tarde, Warhol apresentou um plano-sequência de oito horas de filme. E Andy Warhol continua a ser considerado um gênio pelos intelectuais. Será que esse dois filmes seriam considerados adequado para o tal “povo” ?

Conversando com uma amiga ouço o seu comentário: “Não entendo como alguém inteligente como você pode gostar desse programa”. Explico minhas razões. Ela reage assim: “Mas isso o povo não sabe”. Eis o que esses advogados do bom gosto alheio pensam: Elas pensam que sabem o que é melhor para o povo.

19.1.12

Os Imortais


Há uma máxima em Hollywood segundo a qual “jamais alguém perdeu dinheiro na indústria cinematográfica por subestimar a inteligência das platéias”.
Eis um desafio: escrever a respeito de um filme sobre o qual não encontrei absolutamente nada de bom para falar. Sou, desde criança, leitor compulsivo de mitologia grega, apaixonado pela história dos deuses e heróis desde criança, introduzido ao tema pela coleção Sítio do Pica-pau Amarelo de Monteiro Lobato. Os dois volumes dos 12 Trabalhos de Hércules foram o gás para vôos mais longos e profundos até conhecer mitologia grega como conheço a história dos meus amigos.
Essa longa narração é para explicar ao leitor que apesar de eu não ser leigo no assunto, mesmo conhecendo muito bem a história de Teseu com o Minotauro, Fedra, Zeus etc, fiquei muitas vezes perdido na história. Fico imaginando um expectador que não conheça tão bem o tema. O filme é uma farsa que não respeita sequer uma mínima coerência interna. Ele tem tantas falhas e é tão mal feito (me surpreende que seja da mesma equipe do espetacular 300), que precisaria dividi-lo em partes para começar a apontar os defeitos.
Primeiro, creio que o tema já foi explorado abundantemente e recentemente em Fúria de Titãs (refilmagem de um clássico) e também tivemos 300 e Tróia, esse último, outro filme que falhou demais com a mitologia.
Segundo, o que se via no cinema através daqueles óculos horrorosos de filme 3D era uma mutilação de um filme (para utilizar um termo bem adequado ao enredo). Muitas vezes, eu preferia tirar os óculos e ver borrões e não ler as legendas, pois a opção com os óculos era não distinguir os contornos dos rostos já que parecia que era sempre noite e uma névoa marrom cobria a tela prejudicando a visão.
Terceiro: Em cinema uma das principais atividades é a do produtor de elenco, a pessoa que seleciona os atores. Há uma expressão em francês, mas que se usa comumente em qualquer país, que é “physic du rôle”, ou, traduzindo, físico adequado ao papel. Pois bem, foram poucos os filmes em que vi um elenco tão mal escolhido. O ator que representa Zeus parece um jardineiro mexicano com um bigodinho ridículo. O personagem clássico Zeus é o que pode haver de mais monumental e ameaçador. Há uma iconografia consagrada nas estatuárias espalhadas pelo mundo e obras de arte mostrando-o como um homem barbudo e forte com ar dominador. Pegaram um ator que dava para ser um jardineiro, colocaram um bigodinho ridículo e disseram: você vai ser Zeus! Pelos deuses, que gente burra é essa?
Aliás o miscasting é disseminado. Fiquei com pena de ver o grande John Hurt com um papel tão humilhante para o seu talento que brilhou em clássicos como O Homem Elefante, Perfume, o primeiro e melhor filme da série Alien, 1984 e tantos outros.
Quarto problema: A História. Imagine se eu quiser contar uma história baseada no Velho Testamento e misture as coisas colocando Abraão na arca de Noé ou Moisés sendo amante do Faraó….coisas desse gênero. Obviamente, muita gente ia reclamar com razão. Pois então por que diabos esses roteiristas resolvem misturar tudo que tem a ver com a história de Teseu? Teseu era um príncipe que virou rei de Atenas, era filho do poderoso rei Egeu, matou o minotauro que era um monstro no labirinto da ilha de Creta, uma história consagradíssima, cheia de simbolismos, detalhes saborosíssimos e que esse filme simplesmente retalha como uma picanha no espeto. E Fedra era filha do rei Minos de Creta e não tinha nada de sacerdotisa mas era uma mulher comum que inclusive seduziu o flho de Teseu, Hipólito que lhe resisitiu e por isso, falsamente acusado por ela, foi morto pelo pai. Então se vê que a história do filme é uma farsa, um deliberado saque de uma rica tradição por um bando de bárbaros da industria do cinema para, com os despojos, conseguir o entretenimento de incautos.
Quinto problema: A montagem do filme deve ter sido comprometida durante as cenas de açougue. Explico: Esse é o filme em que a violência é mais explicita e grotesca em relação aos filmes do gênero. Quiseram mesmo fazer um filme ou um açougue? As locações estavam mais para um matadouro do que para um templo ou um túnel ou o que quer que seja. Para facilitar a compreensão das platéias, as montagens costumam rapidamente identificar o local em que a cena se passa quando há a transição da narrativa de um ponto para outro.
Exemplo: estávamos num penhasco onde aconteciam cenas. Há um corte e outra cena é mostrada em outro local e assim sucessivamente. Não há a menor preocupação em fazer um take mínimo como ilustração para que a gente saiba que vai ver outro lugar. É tudo misturado e confuso. Não surpreende que as pessoas não entendam.
O diretor Tarsem Singh, que estreou no gótico fantástico A Cela, abusando, no bom sentido, das cores vivas, dos figurinos elaborados e dos cenários espetaculares, aqui cai numa armadilha estética que ultrapassa de longe o grotesco, uma queda de qualidade de rachar crânios, bolsos e reputações.
Sexto problema: Por que só perto do final do filme se diz o nome de Fedra? O tempo todo a gente não sabe como chamá-la. E os deuses? Por que só três deles têm nomes? Zeus, Atena e Poseidon. Ninguém fala nada dos outros e eram tantos: Ares, Artêmis, Afrodite, Hera, Hefaistos, Deméter, Héstia, Hermes, Apolo, Hades, Perséfone….Nomes existem para serem usados. Faltou pesquisa na produção, virou uma mixórdia, faltou talento e sobrou arrogância….um filme todo errado, sem um único mérito. É um desafio encontrar um adjetivo negativo para resumi-lo. A crítica do New York Times chamou-o de “ESTÚPIDO”. Para mim, trata-se de um filme DESNECESSÁRIO!
Mas, como ninguém perde dinheiro ao subestimar inteligências alheias, o filme deve ter seu público. Há quem goste de açougues e matadouros com saiotes, elmos, espadas, sandálias e arcos mágicos.