28.5.08

A Harpa e o Berimbau


Faço uma pausa na coluna Culpa com Feriados Diferentes para mudar um pouco de assunto. É que creio que muito papel e tinta já foram gastos ultimamente ecoando as declarações do coordenador da Faculdade de Medicina sobre o QI dos baianos. Por obrigação e vício, leio compulsivamente diversos jornais, revistas e blogs diariamente. Em vão, procurei uma voz dissonante, mas pelo visto todos são unânimes em condenar o coordenador pelas suas declarações. E como toda unanimidade me cheira mal, achei que faltava algo nas análises.

Freio de arrumação! Pondo as coisas em perspectiva, o homem falou um monte de asneiras, mas o que se pode tirar de proveito dessas declarações racistas? Entre as bobagens que ele disse, sobre muitas se poderiam refletir.

Ninguém lembrou de que o foco da questão está no baixo índice que os estudantes de Medicina conseguiram no ex-Provão. Houve ou não boicote ao teste? Se sim, a análise é uma; se não, é outra. Considerando que não houve boicote e as notas foram baixas pela deficiência do ensino, o problema estaria na faculdade ou nos alunos?

Mas as coisas não são tão simples. A melhor declaração que li nesse episódio foi do diretor da Faculdade de Medicina. Ele disse que a fala do coordenador machucam, mas não matam. Diferentemente do estado precário da faculdade e do hospital universitário, que matam pacientes por falta de condições e formam profissionais sem preparo, que acabarão matando adiante.

Além disso, a UFBA tem um histórico de desvio de dinheiro e o próprio Ministério Público investiga as fraudes. Reportagens mostram equipamentos caríssimos de medicina nuclear encaixotados há anos por falta de técnicos para instalá-los, alas desativadas do Hospital das Clínicas, médicos e professores mal remunerados, com carga horária excessiva e uma fortuna mal empregada. E todo mundo só fala do berimbau.

O baiano adora falar bem se si mesmo. A maioria deles tem muitas certezas absolutas e poucas dúvidas instigantes. Quem quiser irritar um baiano basta questionar a tal baianidade, essa ficção. A Bahia não é melhor ou pior do que nenhum lugar. Adoramos nos julgar melhores do que os outros. Nossas praias seriam melhores; nossos casarões, mais bonitos; nossas mulheres, mais fogosas. Nosso carnaval é o melhor do mundo...Isso em psicanálise chama-se complexo de inferioridade recalcado. O sujeito se sente, no fundo, inferior, e cria uma capa de superioridade como artifício para esconder a inferioridade. Como aqueles homens que batem nas mulheres, mas não conseguem enfrentar outro homem.

O que deveria estar-se discutindo é a precariedade da Faculdade de Medicina. Aquele coordenador, com suas declarações racistas, jogou um pouco de luz sobre o problema, mas garanto que se fosse uma declaração politicamente correta e indignada sobre o estado da faculdade, apontando suas mazelas e seu péssimo ensino, ninguém gastaria um parágrafo para ecoar o assunto. Como ele falou de QI e berimbau, todo mundo se julga ofendido.

A Bahia já deu ao Brasil inúmeros nomes de valor, mas isso não é um privilégio nosso. Todos os estados deram nomes importantes ao Brasil. Nesse quesito, como em quase todos os outros, somos praticamente iguais. Estão sempre listando Ruy Barbosa, Castro Alves, Milton Santos, Glauber Rocha, Gregório de Matos, Anísio Teixeira....a lista é infinita. A primeira coisa que me chama a atenção nessas listas é que a maioria dos juristas, escritores ou educadores citados já morreu. Seríamos hoje capazes de formar figuras como essas? Nossa educação atual é melhor do que era?

Outra coisa que me chama atenção nas listas é a enorme quantidade de músicos citados pelos defensores do QI baiano: Caetano, Gil, Gal, Bethânia, João Gilberto....a lista não termina nunca. Mas pergunto: quantos médicos há nessa lista? Quantos físicos? Quantos professores? Quantos engenheiros? Quantos arquitetos? Quantos sanitaristas? A Bahia é celeiro de músicos e escritores como João Ubaldo e Jorge Amado...mas o foco não era a Faculdade de Medicina? Como saímos do estetoscópio e viemos parar em João Gilberto?

Ocorre que, como em outras coisas, também somos mestres em desviar o foco da questão. Um Estado que privilegia de tal maneira a carnavalização de tudo, que até uma parada evangélica tem como atração um trio elétrico tocando arrocha godspell, não pode reclamar quando comparam um berimbau a uma harpa. O problema não está no QI de um percussionista ou de um harpista, mas na incrível inversão de valores que se vê aqui. Quem quiser aprender harpa ou piano não terá nem espaço nem apoio. Já um berimbau o sujeito aprende até porque não vai faltar uma roda de capoeira para ele se apresentar e ganhar uns trocadinhos. E ainda pode aparecer nas fotos e vídeos de propaganda das maravilhas da Bahia, o Estado com a segunda pior educação do Brasil.

A educação brasileira privilegia o ensino universitário e abandona as escolas públicas. Todos só têm olhos para o diploma. Prouni e cotas, corretamente, garantem acesso às universidades a uma classe historicamente mais pobre, mas e a educação de nível médio? Toda essa política educacional é um atraso só. E ainda vem falar de QI? É não querer enxergar o problema real.

Esse é um Estado carnavalizado, onde os cacetes armados brotam como cogumelos e atraem um público ávido por mexer os quadris, sedento por álcool e entretenimento. Esse é o ambiente ideal para um médico ou para um pagodeiro? Um bom estudante de medicina não deve ter tempo livre para desfrutar dessas folias. Já com o percussionista a história é outra.

Não importa se um guerreiro massai tem um QI igual ao de um neurociurgião suíço, mas sim refletir sobre um lugar em que um presidente semi-analfabeto, que se vangloria da sua pouca educação, é idolatrado. Num lugar desses, quem inclui Durval Lélis e Ivete Sangalo numa lista ao lado de Anísio Teixeira e Milton Santos é porque não sabe diferenciar nenhum deles. A chance de não conhecer os dois últimos pode não estar ligado à quantidade de QI, mas reflete bem a qualidade dele.

2.5.08

Culpa com Feriados Diferentes VI


Você conhece a Fonte Nova? Nela, até a interdição, cabiam 60 mil espectadores por jogo. Você acha isso uma multidão, não é? Esses números lhe parecem imensos quando você se vê naquele estádio lotado durante um jogo. Então agora imagine 25 Fontes Novas superlotadas ou então se imagine ali todo mês por dois anos. Ao seu lado estariam 1 milhão e quinhentos mil mulheres. Esses ao os números oficiais da quantidade de mulheres que abortam no Brasil por ano. O número real pode ser o dobro. Três milhões por ano. Oito mil e duzentas mulheres abortando a cada dia!

Porque estou falando disso numa coluna chamada Culpa com Feriados Diferentes? É que me bati com a seguinte manchete do Estadão: “Brasileira que aborta é católica, casada, trabalha e tem filho”.

No levantamento mais atualizado sobre o perfil da brasileira que aborta descobriu-se que a maioria é casada, já é mãe, trabalha fora, tem entre 20 e 29 anos, completou ao menos os oito anos do ensino fundamental. E, veja só: é católica!

Além disso, a decisão pela interrupção da gravidez é tomada com o parceiro. A maioria delas usa métodos caseiros, como chás misturados ao Cytotec. Só 2,5% das mulheres que abortaram ficaram grávidas ao terem uma relação eventual. O perfil traçado é incompleto, pois baseia-se nos registros das mulheres que chegaram aos serviços públicos com complicações após usarem métodos abortivos. Não inclui abortos feitos pelas mulheres de classes média e alta em clínicas e hospitais privados e aquelas que abortam sem complicações clínicas.

A Igreja Católica do Rio tem usados fetos de resina e vídeos durante missas e palestras. Vários fiéis chegaram a passar mal, com náuseas e vômitos, após assistir às imagens com cenas de aborto chocantes. Na igreja Santa Margarida, na Lagoa, o "feto" está dentro de um vidro com gel, como se tivesse na placenta, exposto no altar. O combate ao aborto é tema da campanha da fraternidade deste ano da CNBB. Ainda mais polêmica é a exibição de quatro vídeos com cenas reais de fetos sendo retirados de mulheres.

Se você digitar a palavra aborto no google imagens, encontrará milhares e terrivelmente chocantes fotos de fetos dilacerados, resultados de abortos. Essas obscenas fotos e vídeos são parte da uma violenta campanha dos católicos contra a descriminalização da prática. As Igrejas fazem crer que o aborto é uma decisão fácil para as mulheres. Não vou bater nessa tecla, pois é óbvio que é uma falácia. Mulher alguma toma essa decisão facilmente. Mas o que eu posso pensar quando os dados oficiais dizem que a maioria dessas mulheres se diz católica?

Eu não tenho paciência para isso. Estou tentando, sem sucesso, entender essa combinação contraditória: católica que aborta e ainda é católica. Como pode, se a igreja é contra, seu papa, seu bispo, seu padre são contra...

Um milhão e quinhentos mil abortos por ano. Apesar de aceito pelos especialistas, e pelo Ministério da Saúde, grupos religiosos questionam os números, dizendo que os dados do SUS não são confiáveis e que o índice seria mais baixo. A pesquisa, porém mostra o contrário, com indícios de que o número pode ser o dobro.

A Igreja poderia fazer um enorme serviço em vez de negar os números e a realidade. Se apenas não se metesse nesse assunto já estaria ajudando muito, mas, em vez disso, imputa uma culpa ainda maior na mente de mulheres ingênuas o bastante para se sentirem psicologicamente mais arrasadas do que já estão com o aborto em si. Como se ele já não fosse suficientemente doloroso. Aliás, a este propósito, fico arrasado por ter perdido, nas minhas muitas mudanças de casa, um cartão postal que comprei uma vez em Amsterdã com uma imagem ao mesmo tempo hilária e profundamente simbólica. Numa montagem, via-se o papa grávido. Na legenda: “Se os homens engravidassem o aborto seria um sacramento”.

Marx dizia que “A dominação do homem pelo homem começou com a dominação da mulher pelo homem” Por isso, como estamos lidando com uma dor das mulheres, tratamos de uma dor menos importante, menos relevante, menos dolorosa e os padres, bispos e papas, homens semi-castrados, podem meter o bedelho no assunto como se fosse um tema que afetasse a eles.


Em recente pesquisa nacional para saber a opinião do brasileiro sobre o direito da mulher ao aborto, a maioria foi contra. Não sei dizer quantos desses entrevistados eram homens, mas acredito que somente mulheres deveriam responder a uma questão dessas.

As mulheres são as vítimas principais nessa história, mas o papel de vítima, já dizia o educador Paulo Freire na sua Pedagogia do Oprimido, é um papel bastante ativo. Dá pena ser uma vítima. Mas também dá trabalho ser uma vítima. Longe de mim penalizar ainda mais mulheres que já sofrem com o aborto, mas o que posso dizer quando elas próprias, após este ato, ainda se dizem católicas? E ainda vão buscar o perdão nos templos de homens que a farão sentir ainda mais culpa!?

Quem quiser ler um livro excelente sobre o tema Mulheres, Sexualidade e A Igreja Católica, recomendo “Eunucos pelo Reino de Deus”, de Uta Ranke-Heinemann, considerada a maior teóloga do mundo e que perdeu sua cátedra na Universidade de Heidelberg quando publicou esse livro. Nas palavras de Leonardo Boff, na introdução da edição brasileira: “A igreja dos celibatários diz um não a praticamente tudo o que se refere à esfera do sexo, do prazer, da contracepção, do jogo difícil da sexualidade entre um homem e uma mulher.”