11.11.06

Diários de Motocicleta


O filósofo Jean Paul Sartre declarou uma vez que Che Guevara era o homem mais completo da sua época. Talvez tenha sido, na verdade, um dos mais completos de todas as épocas. Uma pequena parcela das muitas histórias sobre o mítico Che Guevara chega às telas, retratada pela visão privilegiada do diretor Walter Salles.

Em Diários de Motocicleta vemos Salles firmemente ancorar no topo da sua maturidade cinematográfica. O diretor não precisaria provar para ninguém seu talento após filmes memoráveis como Terra Estrangeira, Central do Brasil e Abril Despedaçado, todos obras-primas. Mas agora, com apoio e verba do produtor Robert Redford e o selo Sundance, Salles exibe sem amarras seu talento ao mesmo tempo sensível e arrebatador. O filme, ao ser apresentado em Sundance e em Cannes recebeu entusiasmados aplausos de mais de 1.000 pessoas em pé. Salles reconhece a importância de retratar essa parte da vida de Che, mas afirma que a trajetória da sua vida não caberia nem mesmo em 10 filmes.

Começaria pelo final: A experiência rara de ouvir aplausos da platéia ao término do filme. O road movie, com todos os elementos de busca da identidade e jornada iniciática, retrata oito meses na vida do estudante de medicina argentino Ernesto Guevara, então com 23 anos, e seu amigo Alberto Granado, de 29. Anos depois, Ernesto, já o comandante Che Guevara, herói de guerras revolucionárias em Cuba e no Congo, entraria para o panteão dos mitos imortais ao ser assassinato covardemente aos 36 anos nas selvas da Bolívia a mando dos EUA. A célebre foto de Che, feita pelo cubano Alberto Korda, é, provavelmente, a imagem mais reproduzida no século XX e tornou-se inquestionavelmente, o símbolo máximo de resistência, rebeldia e, paradoxalmente, de ternura.

Outra foto de Guevara, não tão famosa como a de Korda, é a que o mostra morto e cercado de soldados bolivianos. Como bem comentou o crítico José Geraldo Couto, as mitologias em torno de Che são tão abundantes que abarcam tanto os ideais cristãos quanto os da esquerda. A própria foto de Che morto, barbudo e sem camisa, lembra muito o martírio de Cristo.

Guevara é interpretado magistralmente pelo jovem ator mexicano Gael Garcia Bernal, que já esteve na pele de personagens marcantes em filmes como Amores Brutos, E Sua Mãe Também e O Padre Amaro e é o grande destaque no novo filme de Pedro Almodóvar: La Mala Educación, onde faz 4 personagens, inclusive um travesti.

Bernal, no papel de Che, e Rodrigo de la Serna, no papel de Granado, entram para a história do cinema como uma dupla repleta de enorme carisma. Cada sorriso gigante de Bernal, como Ernesto, enche a tela de uma beleza juvenil cheia de sinceridade. A bordo da precária motocicleta La Poderosa, eles atravessaram a Argentina, atingem os Andes chilenos e, já despojados da velha Norton 500, chegaram ao Peru e à Venezuela. No caminho são transformados profundamente ao testemunharam as grandes injustiças praticadas contra os pobres latino-americanos, explorados à exaustão em minas de cobre, expulsos de suas terras, despojados, humilhados... a viagem aconteceu em 1952. Hoje, 52 anos depois, poucas coisas mudaram e a América Latina continua com suas veias abertas, como diz o escritor Eduardo Galeano, sangrando as suas riquezas, sugadas pelos eternos poderosos.

A parte mais tocante do filme é quando Ernesto chega à colônia de leprosos de San Pablo na amazônia peruana. Ali, ele e o amigo Granado trabalham voluntariamente por alguns meses e subvertem as ordens que exigiam luvas para quem tratava os doentes, mesmo quando a lepra já não era mais contagiosa. A segregação dos doentes em um dos lados do rio enquanto os médicos moram do outro já incomodava Ernesto que instala a irreverência na colônia, joga futebol com os enfermos e numa atitude reveladora do grande homem que — então — ele já era, no dia do seu aniversário, após um emocionante discurso onde pregava o sonho da união de uma América Latina irmã, decide atravessar o perigoso rio à noite, à nado, para comemorar com os amigos leprosos.

Ele, um asmático, tem uma atitude de tamanha coragem e destemor da qual, como definiu Sartre, somente um homem verdadeiramente completo seria capaz. Com sua crônica asma, sua vida foi uma batalha permanente. Alguém, como ele, para quem cada bocado de ar era uma luta, poderia ter envelhecido tranqüilamente na sua terra natal, aberto uma clínica e tornado-se um burguês, mas a viagem que fez pela América Latina mudou sua vida e esse filme mostra como se forja um herói, um revolucionário.
Um homem completo.

10.11.06

Alexandre

O maior de todos os mitos foi real. Com esse dístico, Oliver Stone nos apresenta sua versão de 3 horas e 150 milhões de dólares de Alexandre, o Grande, na verdade uma obsessão pessoal do diretor por 15 anos.
A principal pergunta que deve ser feita sobre o filme de Oliver Stone é: Ele conseguiu retratar à altura a magnitude do personagem Alexandre da Macedônia? Alguém tão monumental cujos fracassos superaram as conquistas da maioria dos homens recebeu um tratamento digno da sua importância?

Infelizmente não. Por dois motivos principais: primeiro, um filme sobre Alexandre jamais caberia em 3 horas de duração. Apesar de sua curta vida, 32 anos, ele conseguiu realizar feitos que ninguém até hoje conseguiu ou conseguirá. Conquistou 90% do mundo conhecido de então, lutou mais de 70 batalhas em oito anos e jamais foi derrotado. Conquistou mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, da Grécia aos atuais Egito, Iraque, Afeganistão, Irã, Turquia, Índia e muito mais. E isso numa época em que não havia a infraestrutura, a medicina e a comunicação que existem hoje. Alexandre foi profundamente transformado nesse processo de conquistas e por isso esse poderia ser o road movie dos road movies.

O segundo motivo para que o filme não retrate a grandeza de Alexandre é que o diretor claramente, ao editar a película que teria 5 horas, acabou por mutilar aspectos da construção do personagem que seriam essenciais para estruturar a sua complexidade dramática. Alexandre foi um grande general, mas por problemas com a edição das imagens, o que se vê dele é, em várias cenas, um jovem perplexo, dominado pela mãe, confuso sobre a relação com o pai, alcoolizado, desprezado, chorão, arrependido, paranóico... E sabe-se que ele era tudo isso, mas muito mais. Era um homem extraordinário e de um magnetismo arrebatador. Stone errou na mão ao optar por não mostrar os aspectos mais brutais de Alexandre que serviriam para dimensionar a complexidade da sua personalidade.

O filme não retrata várias batalhas importantes de Alexandre como a destruição da cidade grega de Tebas que, por ordem dele foi totalmente arrasada e toda a população assassinada. Outra batalha ferocíssima, que durou meses, foi a terrível tomada da cidadela de Tiro que também foi completamente destruída e todos os habitantes enforcados e as mulheres e crianças escravizados.

Stone não toca do incêndio comandado por Alexandre durante uma bebedeira da maravilhosa cidade e do imponente palácio real de Persépolis, uma das mais lindas capitais do império persa. Alexandre pessoalmente comandou o incêndio do palácio todo feito de ouro, prata, mármore e pedras preciosas. Um crime terrível.

O filme retrata a famosa batalha de Gaugamela onde Alexandre com 40 mil homens derrotou o imenso exército de Dario de 180 mil. Ocorre que esse não foi, como diz o filme, o primeiro combate entre os dois exércitos. 4 anos antes em Granico e depois em Isso Alexandre já derrotara duas vezes Dario que fugia sempre.Gaugamela é realmente uma batalha espetacular e lembra super produções como a batalha da Praia da Normandia no Resgate do Soldado Ryan ou as grandes batalhas de O Senhor dos Anéis mas a chave da batalha é mal explicada no filme. A estratégia de Alexandre para penetrar numa brecha ele mesmo criou nas fileiras do monstruoso exército persa é considerada até hoje por experientes militares como uma jogada de um gênio.Usando a infantaria, as falanges e a cavalaria em uma sincronia espetaculares.

Colin Farrell, definitivamente, não era o ator ideal para o papel de Alexandre. Além de não ter a beleza que o macedônio tinha, seus cabelos louros são escandalosamente falsos, vê-se que é uma peruca horrível. Um louro legítimo (há vários no filme) tem cílios, barba e sobrancelhas louras e Farrell exibe feios pêlos hirsutos e pretos na cara. Além do mais falta-lhe uma qualidade insuperável: carisma.

Usar narração como o filme faz, do faraó Ptolomeu, ex-general de Alexandre, não me perece uma das soluções mais criativas. Fica óbvio que isso serviu para justificar os cortes nas cenas importantes e apenas poder amarrar e citar fatos e batalhas imprescindíveis na construção do personagem. É uma pena, mas as pessoas não sabem a importância de Ptolomeu. Ele simplesmente foi ancestral de Cleópatra e criador de uma grande linhagem de faraós importantes e isso o filme não mostra.

A relação homoerótica de Alexandre com o general e amigo de infância Hefestion e as cenas em que o eunuco Bagoas aparecem são de uma falta de tato do tamanho da patada dos elefantes do rei Pórus na batalha de Hidaspes. Ao cortar as cenas em que Alexandre e Heféstion degolam, trucidam e esfolam povos, e mostrá-los cheios de meiguices, claramente perde a oportunidade de retratar o caráter ambivalente da sexualidade grega. No cinema onde assisti ao filme o público debochava rindo das afetadações de Alexandre. Hefestion era um guerreiro poderoso e derrubava o próprio Alexandre nas lutas. Por que retratá-lo de cabelos compridos, melífluo, cheio de rímel nos olhos e olhar lânguido? Heféstion era um carniceiro tão forte e violento quanto os demais soldados macedônios.

Há muito mais registros históricos do papel do eunuco Bagoas do que o de Roxane, até porque ela foi assassinada logo depois da morte do marido e, como mulher, tinha pouca importância para os registros dos historiadores da época enquanto Bagoas tornou-se um primeiro-ministro importante de Alexandre (no filme ele não dá um pio). Bagoas era o eunuco favorito de Dario e consta que o grande rei persa preferia seus carinhos ao de qualquer das lindas esposas do seu fornido harém. Para maiores informações recomendo o livro O Menino Persa de Mary Renault, autora de outras obras sobre Alexandre.

Há várias outras obras literárias ótimas sobre Alexandre. O historiador Plutarco escreveu sobre ele comparando-o ao imperador Julio César. O escritor Valério Manfredi escreveu 3 importantes livros sobre Alexandre mas nenhum deles toca no tema da bissexualidade do macedônio.

Já vi muitas cenas de sexo melhores e mais impactantes em produções mais simples do que a que mostra as núpcias de Alexandre e Roxana. Enquanto isso há apenas insinuações homoeróticas lânguidas demais como as melosas declarações de amor trocadas com Hesfastion. Quando Alexandre chama o eunuco para a sua cama a imagem do filme sofre um fade out para que ninguém veja o que aconteceu ali naquele leito. Para poupar o público de cenas mais fortes ?

A personalidade de Alexandre foi muito moldada pelos conflitos entre seus pais, mas o papel de Aristóteles chegou a ser muito mais importante na educação e formação humanista de Alexandre do que a influência dos pais. Olímpia, uma bacante que participava de orgias e Filipe, bissexual assumido, tendo inclusive vários amantes entre os soldados. No filme isso não é explicitado. E há apenas uma única cena onde Aristóteles aparece. É de uma falta de cuidado histórico impressionante o filme não dar mais espaço para cenas com o filósofo que ainda hoje é considerado um dos mais importantes da humanidade.

A cena em que Filipe mostra a Alexandre os destinos cruéis dos heróis gregos Medéia, Hércules, Prometeu, Édipo e Aquiles é belíssima, à luz de achotes e numa espécie de caverna. As imagens que acompanharão Alexandre para sempre são retratadas em paredes escuras e vê-se um pai e um filho no processo de formação de um caráter. Infelizmente é triste constatar mas 90% do público do cinema nem sabem quem foi Medéia ou Prometeu e apenas tangenciam a complexa grandeza narrativa das histórias de Hércules, Édipo e Aquiles.

A cena em que a morte de Filipe é mostrada num flash back é na verdade muito esquisita, foge completamente da estrutura narrativa do filme. É a única cena em flash back de um filme que já em si é um grande flash back narrado por Ptolomeu. Se o diretor imaginava criar algum impacto com isso fez uma espécie de apêndice incômodo desnecessário. Porque não narrar tudo cronologicamente? Não faz o menor sentido.

Crítica e público norte-americanos esnobaram o filme que foi mais bem recebido além-mar, algo a que Oliver Stone já está acostumado, mas dessa vez mesmo ele se surpreendeu com a paulada. Mas o que se pode esperar de uma nação cujo fundamentalismo cristão elege um debilóide limítrofe duas vezes presidente? Uma nação de idiotas, como diz Michael Moore.

O filme não é também tão ruim. O crítico Inácio Araújo, da Folha, injustamente, dá a ele apenas 1 estrela. Chama a produção de "mise-en-scéne pomposa e balofa". Compara com Gladiador que, segundo ele: “dá ao público o prazer do kitsch, tão necessário às grandes produções. Alexandre é vítima de um bom gosto entediante: as coisas estão todas no lugar, os guerreiros lutam como, é de presumir, lutava-se na Antigüidade.”

São engraçados esse críticos não é? Marcelo Bernardes da Época diz exatamente o contrário: “Oliver Stone criou um filme kitsch e cafona”. Ambos malham o filme, só faltou entrarem em acordo sobre seus defeitos. Inácio Araújo, como a maioria do público (um crítico e não deveria estar num nível tão baixo) vê Alexandre como um homem que “simplesmente, não queria voltar para casa”.

Má vontade do crítico. Fica claro que Alexandre acreditava (seguindo as idéias de Aristóteles) que indo para o leste chegaria ao “Mar Exterior” ou “Oceano Circundante” e que dali, por um acesso para o Rio Nilo, voltaria rapidamente à Grécia navegando. Esse era um grande erro geográfico mas, na época, suficiente para justificar o desejo de Alexandre de rumar sempre para o leste. Ele queria sim, voltar para casa, mas queria também conhecer e conquistar o mundo antes. E realizou o que ninguém imaginou sequer sonhar.

Tróia e a Cassata da Minha Avó


Qual a história da sua vida? Que lenda ou romance marcou sua infância ou adolescência? Podem ter sido os livros de Monteiro Lobato, talvez você seja dos privilegiados que cresceram com as aventuras de Pedrinho, os quitutes de Tia Nastácia e as histórias de Dona Benta... isso sem falar das loucuras de Emília e experiências do Visconde.

Talvez esteja mais para Julio Verne e cresceu com as Vinte Mil Léguas Submarinas ou A Volta ao Mundo em 80 dias... Não? Então foi daqueles precoces que já liam Machado de Assis e se encantaram com sua luxuosa linguagem e com os personagens Capitu, Brás Cubas ou Quincas Borba, ou era mais regionalista e gostava de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo... Jorge Amado então. Certamente adorou Capitães de Areia, Dona Flor... Pedro Arcanjo...

E quando o encanto das palavras tomou outro caminho, também encantado, e se materializou em celulóide e luz na sala escura de um cinema? A linguagem é, em si, pura magia e a linguagem do cinema torna a mágica da literatura uma magia ricamente diferente.

Desde criança, fui criado como uma traça de livro. Nenhuma brincadeira me encantava mais do que as histórias. Obviamente, a rara doença que tive na infância —Coréia de Sydenham's—que impedia a coordenação de movimentos, foi fundamental para despertar o gosto da leitura. Sem contar que durante anos as injeções semanais de benzetacil foram fundamentais na elaboração das chantagens para que meus pais me fornecessem todos os gibis da cidade. Virei expert em manipular emoções e culpas. Se bem que as injeções doíam realmente e os sábados da minha infância tinham cheiro de xilocaína.

Já que estou na infância, lembra daquela sobremesa que sua tia ou sua avó faziam? Era uma torta? Um bolo? Um doce? O quê você não daria para comer aquele doce que sua avó fazia e que tinha um sabor especial, um certo gosto de infância que por mais que outra pessoa tenha tentado fazer depois nunca mais foi a mesma coisa, faltava um olho de menino para dar o sabor. E o menino cresceu.

Como a cassata que minha avó fazia, as injeções e a leitura da Ilíada (A Guerra de Tróia), foram partes integrantes da minha infância. Como poderia esperar que a história de Tróia transposta para o cinema, linguagem que aprendi a amar a partir da literatura, cometesse tantos crimes homéricos em relação ao original!

Talvez uma pessoa que provasse a cassata da minha avó e não soubesse que havia uma camada de pêssego, outra de chocolate, uma de leite condensado e outra de biscoito champanhe e pão de ló com uma deliciosa cobertura de chantily se deliciasse ao provar apenas da cobertura sem imaginar o que tinha embaixo.

Quem assiste ao filme Tróia e não conhece a história original estará se deliciando apenas com uma simples cobertura sem recheio, sem conteúdo, sem riqueza e sem magia. Assim foi a opção lastimável de realizar um filme sobre a guerra de Tróia sem os deuses, pois a guerra ocorreu devido a uma disputa de 3 deusas e vários deles chegaram mesmo a lutar algumas batalhas ao lado dos mortais. Omitir esse vasto material das telas, em si mesmo cinematograficamente riquíssimo de possibilidades imagéticas, é optar pela mediocridade.

Há no filme inúmeras falhas não somente do ponto de vista mitológico como também do ponto de vista histórico. Exemplos abundam: Se você viu o gigante Ájax no filme ser morto por Heitor, fique sabendo que isso não consta da história original. Ájax matou-se após a morte de Aquiles atirando-se sobre a própria espada. Outros erros grosseiros do filme: na luta com Menelau, Paris não fugiu da morte mas foi resgatado por Afrodite; Heitor não matou Menelau; Helena não escapa de Tróia, ao contrário, volta para casa com o marido Menelau e vivem felizes para sempre; Páris não escapa do incêndio de Tróia, mas é morto pela flecha de um arqueiro grego; Príamo não foi morto por Agamenon, mas por Neoptólemo, pelo filho de Aquiles; Andrômaca, viúva de Heitor, não escapa da guerra, mas casa-se com o mesmo Neoptólemo que matou Príamo e ainda dá a ele 3 filhos; o filhinho de Andrômaca e Heitor não escapa da guerra pois foi atirado para a morte do alto das muralhas de Tróia; Agamenon não é morto por Briseida, mas leva-a com ele para a Grécia e lá ambos morrem pela mão da rainha Clitemnestra... não faltam crimes contra Homero.

E o que se pode dizer de reduzir uma guerra que durou 10 anos a poucas batalhas que no filme parecem durar alguns dias? E a omissão imperdoável de figuras femininas incríveis como a rainha Hécuba, esposa de Príamo, a sua filha Cassandra, sacerdotisa de Apolo que tinha o dom da profecia e em quem ninguém acreditava, como um castigo infringido pelo deus, além das Amazonas, exímias guerreiras que lutaram por Tróia. E do lado grego as personagens de Electra e Ifigênia, filhas de Agamenon. Electra, junto com o irmão Orestes responsáveis pela morte da mãe Clitemnestra como vingança por ela ter assassinato o pai e Ifigênia, sacrificada no altar de Ártemis pelo próprio pai para aplacar a ira da deusa e permitir que os navios zarpassem para Tróia.

Podem alegar liberdade artística, mas da próxima vez que forem filmar A Volta ao Mundo em 80 dias não reclame se o diretor resolver encurtar para 30 dias, ou se as Vinte Mil Léguas Submarinas virarem uns 20 quilômetros. Não estranhe também quando as personagens de Monteiro Lobato, no cinema, vierem com uma Tia Nastácia branca ou sem personagens de fábula como Visconde, Emília, Cuca e Saci. Ah, E o que você acharia se em vez de Dom Quixote lutar contra moinhos “gigantes” pusessem o Cavaleiro da Triste Figura lutando, digamos, com moinhos “anões”?

Não há chance alguma de qualquer leitura pessoal moderna superar um clássico como A Ilíada ou qualquer dos citados. É por isso que nunca mais vou experimentar novamente a verdadeira, original e inesquecível cassata da minha avó. Também ela, um clássico.

Se não há como melhorar, deixemos os clássicos em paz!

Menina de Ouro


Dificilmente a atriz Hillary Swank deixaria de receber o segundo Oscar pela sua torturante e torturada boxeadora no filme Menina de Ouro. A academia gosta de personagens aleijões ou com deficiências no corpo ou na alma. Este é o diagnóstico da personagem de Swank em Menina de Ouro, filme indicado a 7 estatuetas.

Quem acompanha a carreira do diretor Clint Eastwood já diagnosticou — esta palavra não está repetida à toa — sua tendência à morbidez e às mágoas humanas. Em seu oscarizado Sobre Meninos e Lobos, Eastwood já mostrava predileção por feridas expostas.

Em certo sentido Eastwood reforça nesses últimos filmes a idéia de que em Hollywood um filme de sucesso não pode tratar de muitos temas. Em Sobre Meninos e Lobos o diretor não desenvolveu o papel da Igreja Católica nos casos de pedofilia, vertente dramática que merecia ser explorada. Ora, o pedófilo do filme era um padre e o filme se passa em Boston, cidade onde estourou um gigantesco escândalo de pedofilia da Igreja, por que o diretor passou ao largo desse rico tema?

A mesma inapetência em diversificar abordagens acontece em Menina de Ouro. A boxeadora do filme parece ser assexuada, como se não tivesse desejos ou se sua opção pelo boxe, algo, convenhamos, não muito feminino, não tivesse lhe trazido dissabores sexuais. Ela gostava de rapazes? Foi magoada por eles? Era lésbica? Em momento algum aborda essa vertente também plena de significados. Isso empobrece os filmes.

Eastwood, ultimamente, faz com que eu me sinta um sádico que, no papel de voyer — papel que, em última análise, cabe aos cinéfilos — está em frente a uma tela para apreciar Mr. Eastwood destilar sua frustração com a humanidade.

Uma polêmica envolve este filme nos Estados Unidos. Ela não pode ser detalhada aqui pelo risco de antecipar o final da película, mas gira em torno da opção do diretor em mostrar uma visão degradante de um certo tipo de deficiente. Uma Associação Nacional de Afetados nessa deficiência e o grupo “Not Dead Yet” (Ainda não estamos mortos) nos EUA estão em campanha contando para os espectadores o final do filme em represália à maneira pouco edificante com que o diretor lidou com o tema. Eles acusam o filme de "confirmar os piores estereótipos".

Eastwood tem uma queda especial pela tragédia humana, pelas almas despedaçadas, pela falta de misericórdia de Deus diante das angústias dos homens. Seus heróis são vítimas da vida em uma permanente luta vã. Não há proteção contra as armadilhas do destino, só resta sofrer e lamber as feridas.

Em Menina de Ouro vemos um filme competentemente dirigido, mas com um argumento relativamente batido, repletos de clichês e simplismos como as personagens da boxeadora vilã, do treinador bonzinho, do aluno mau e do aluno bobo de alma pura. Registre-se, porém, o esforço algo inglório, do diretor em escapar dessas armadilhas esquemáticas e a coragem em abordar a indigesta relação da boxeadora com a família. Desculpem, mas isso também soou meio previsível mesmo a pesadíssima cena da assinatura do contrato no hospital. É bem feita, mas grotesca ao extremo.

Aparentemente Eastwood quer mostrar que amadureceu (ou envelheceu) nos seus temas. Quando interpretava o bruto Dirty Harry, seus personagens não eram vítimas da dor, mas lutavam contra ela e a venciam. Hoje, Eastwood demonstra um imenso desencanto, como seu pistoleiro recluso de Os Imperdoáveis e seu detetive enfartado de Dívida de Sangue. Há uma certa contradição aqui, pois Eastwood, ex-prefeito da cidade de Carmel, é também um político ligado ao partido republicano de Bush e amigo de Reagan. Há tempos os Estados Unidos não abarcam valores tão conservadores e republicanos, algo que deveria agradar ao conservador Eastwood, no entanto seus últimos filmes tratam de desencanto e um certo niilismo. Se a justiça divina não protege os homens e a justiça dos homens não os acolhe resta o fardo da dor e da culpa e as feridas expostas.

Sinceramente, acho que já chega de tanta dor. Ou, como diz uma amiga minha: me poupe!