10.11.06

Tróia e a Cassata da Minha Avó


Qual a história da sua vida? Que lenda ou romance marcou sua infância ou adolescência? Podem ter sido os livros de Monteiro Lobato, talvez você seja dos privilegiados que cresceram com as aventuras de Pedrinho, os quitutes de Tia Nastácia e as histórias de Dona Benta... isso sem falar das loucuras de Emília e experiências do Visconde.

Talvez esteja mais para Julio Verne e cresceu com as Vinte Mil Léguas Submarinas ou A Volta ao Mundo em 80 dias... Não? Então foi daqueles precoces que já liam Machado de Assis e se encantaram com sua luxuosa linguagem e com os personagens Capitu, Brás Cubas ou Quincas Borba, ou era mais regionalista e gostava de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Érico Veríssimo... Jorge Amado então. Certamente adorou Capitães de Areia, Dona Flor... Pedro Arcanjo...

E quando o encanto das palavras tomou outro caminho, também encantado, e se materializou em celulóide e luz na sala escura de um cinema? A linguagem é, em si, pura magia e a linguagem do cinema torna a mágica da literatura uma magia ricamente diferente.

Desde criança, fui criado como uma traça de livro. Nenhuma brincadeira me encantava mais do que as histórias. Obviamente, a rara doença que tive na infância —Coréia de Sydenham's—que impedia a coordenação de movimentos, foi fundamental para despertar o gosto da leitura. Sem contar que durante anos as injeções semanais de benzetacil foram fundamentais na elaboração das chantagens para que meus pais me fornecessem todos os gibis da cidade. Virei expert em manipular emoções e culpas. Se bem que as injeções doíam realmente e os sábados da minha infância tinham cheiro de xilocaína.

Já que estou na infância, lembra daquela sobremesa que sua tia ou sua avó faziam? Era uma torta? Um bolo? Um doce? O quê você não daria para comer aquele doce que sua avó fazia e que tinha um sabor especial, um certo gosto de infância que por mais que outra pessoa tenha tentado fazer depois nunca mais foi a mesma coisa, faltava um olho de menino para dar o sabor. E o menino cresceu.

Como a cassata que minha avó fazia, as injeções e a leitura da Ilíada (A Guerra de Tróia), foram partes integrantes da minha infância. Como poderia esperar que a história de Tróia transposta para o cinema, linguagem que aprendi a amar a partir da literatura, cometesse tantos crimes homéricos em relação ao original!

Talvez uma pessoa que provasse a cassata da minha avó e não soubesse que havia uma camada de pêssego, outra de chocolate, uma de leite condensado e outra de biscoito champanhe e pão de ló com uma deliciosa cobertura de chantily se deliciasse ao provar apenas da cobertura sem imaginar o que tinha embaixo.

Quem assiste ao filme Tróia e não conhece a história original estará se deliciando apenas com uma simples cobertura sem recheio, sem conteúdo, sem riqueza e sem magia. Assim foi a opção lastimável de realizar um filme sobre a guerra de Tróia sem os deuses, pois a guerra ocorreu devido a uma disputa de 3 deusas e vários deles chegaram mesmo a lutar algumas batalhas ao lado dos mortais. Omitir esse vasto material das telas, em si mesmo cinematograficamente riquíssimo de possibilidades imagéticas, é optar pela mediocridade.

Há no filme inúmeras falhas não somente do ponto de vista mitológico como também do ponto de vista histórico. Exemplos abundam: Se você viu o gigante Ájax no filme ser morto por Heitor, fique sabendo que isso não consta da história original. Ájax matou-se após a morte de Aquiles atirando-se sobre a própria espada. Outros erros grosseiros do filme: na luta com Menelau, Paris não fugiu da morte mas foi resgatado por Afrodite; Heitor não matou Menelau; Helena não escapa de Tróia, ao contrário, volta para casa com o marido Menelau e vivem felizes para sempre; Páris não escapa do incêndio de Tróia, mas é morto pela flecha de um arqueiro grego; Príamo não foi morto por Agamenon, mas por Neoptólemo, pelo filho de Aquiles; Andrômaca, viúva de Heitor, não escapa da guerra, mas casa-se com o mesmo Neoptólemo que matou Príamo e ainda dá a ele 3 filhos; o filhinho de Andrômaca e Heitor não escapa da guerra pois foi atirado para a morte do alto das muralhas de Tróia; Agamenon não é morto por Briseida, mas leva-a com ele para a Grécia e lá ambos morrem pela mão da rainha Clitemnestra... não faltam crimes contra Homero.

E o que se pode dizer de reduzir uma guerra que durou 10 anos a poucas batalhas que no filme parecem durar alguns dias? E a omissão imperdoável de figuras femininas incríveis como a rainha Hécuba, esposa de Príamo, a sua filha Cassandra, sacerdotisa de Apolo que tinha o dom da profecia e em quem ninguém acreditava, como um castigo infringido pelo deus, além das Amazonas, exímias guerreiras que lutaram por Tróia. E do lado grego as personagens de Electra e Ifigênia, filhas de Agamenon. Electra, junto com o irmão Orestes responsáveis pela morte da mãe Clitemnestra como vingança por ela ter assassinato o pai e Ifigênia, sacrificada no altar de Ártemis pelo próprio pai para aplacar a ira da deusa e permitir que os navios zarpassem para Tróia.

Podem alegar liberdade artística, mas da próxima vez que forem filmar A Volta ao Mundo em 80 dias não reclame se o diretor resolver encurtar para 30 dias, ou se as Vinte Mil Léguas Submarinas virarem uns 20 quilômetros. Não estranhe também quando as personagens de Monteiro Lobato, no cinema, vierem com uma Tia Nastácia branca ou sem personagens de fábula como Visconde, Emília, Cuca e Saci. Ah, E o que você acharia se em vez de Dom Quixote lutar contra moinhos “gigantes” pusessem o Cavaleiro da Triste Figura lutando, digamos, com moinhos “anões”?

Não há chance alguma de qualquer leitura pessoal moderna superar um clássico como A Ilíada ou qualquer dos citados. É por isso que nunca mais vou experimentar novamente a verdadeira, original e inesquecível cassata da minha avó. Também ela, um clássico.

Se não há como melhorar, deixemos os clássicos em paz!

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