16.3.14

NINFOMANÍACA VOL.2 - HIPÓCRITAS, TREMEI

Há algumas semanas escrevi sobre o volume 1 de Ninfomaníaca, do diretor dinamarquês Lars Von Trier. Ali, eu comentava que qualquer análise seria incompleta sem a estreia da parte 2.  Dizia: “É muito incômodo falar a respeito de um filme que se assistiu até a metade. Como falar sobre a obra se ela não está completa? É como ver um quadro semiacabado ou ler um livro até o meio. Qualquer coisa que se diga é também incompleta”.
 
 
Pois agora, com a estreia da segunda parte, pode-se desnudar um pouco mais do véu que cobre (cobre?) esta obra cinematográfica e desvendar o que Trier já não mais esconde.
 
Menos que esconde, escancara, expõe, esfrega na face da plateia e certamente incomoda muita gente. A mim, só me faltou levar a testa até o chão e render todas as honras à coragem desse genial dinamarquês. Só não aplaudi ao final por puro estupor e porque as camadas de interpretação iam caindo uma a uma, como uma série de fichas caindo em uma velha jukebox.
 
Aqui é preciso que se diga que a obra precisa ser vista completa para extrair dela o seu melhor. Dividida em duas partes, por razões mercadológicas, não será devidamente fruída sem a sua integridade, o que certamente evita prejuízos para quem analisa as duas partes separadas. Não é que um volume é melhor ou pior do que o outro. Eles são, simplesmente, uma coisa só.
 
Nesta segunda parte, vemos a continuação da história, mas isso não significa uma sequência linear, pois aqui encontraremos fatos anteriores aos vistos no volume 1. E somente no final é que entendemos como Joe (Charlotte Gainsbourg) foi parar totalmente arrebentada naquele beco de onde foi resgatada por Seligman, personagem de  Stellan Skarsgård.
 
Aqui descobrimos que Joe se casou e teve um filho com Jerôme, personagem do excelente Shia LaBeouf. Consciente de que não era capaz de satisfazê-la sexualmente, Jerôme permite que Joe explore como quiser suas possibilidades eróticas com outros homens. E isso, desculpe a analogia vulgar, é praticamente como oferecer banana a um macaco: Joe cai literalmente na roda e se atira a uma espiral de sexo e perversões.

 
Lars Von Trier chega ao requinte de aludir, neste filme, a uma famosa cena da sua película anterior: O Anticristo, em que a mesma Charlotte Gainsbourg, durante uma relação sexual, vê, sem reagir, seu filhinho cair para a morte ao som da belíssima ária Lascia ch'io pianga. Estamos diante de um bebê, como o bebê do filme anterior, descendo de um berço e dirigindo-se para a mesma neve que cai ao som da mesma canção. O suspense é inegável.
 
Uma surpreendente interpretação é apresentada pelo ator Jamie Bell (o eternamente adorável Billy Elliot) como um sombrio K, um mestre do sadismo que “trata” Joe como um saco de pancadas e ainda dá a ela o nome de um cachorro. Ao receber dele 40 chibatadas, ela de fato supera o próprio Jesus Cristo, que aguentou 39.
 
O filme transita sobre analogias religiosas, discussões sobre pecado, culpa e expiação. Em um momento, quando Joe imagina ter tido a visão da Virgem Maria durante um orgasmo na infância, acaba descobrindo que se tratava, na realidade, da imagem da imperatriz Messalina, conhecida como a maior ninfomaníaca da história, e para acompanha-la, na visão, ninguém menos do que a imagem bíblica da Prostituta da Babilônia cavalgando uma besta.
 
E tome-lhe embate teórico com inúmeras cenas da degradação brutal de Joe transformadas em metáforas e analogias pelo intelectual Seligman: uma ninfomaníaca e um assexuado é uma combinação que não dá nenhuma liga. Dois extremos em busca de algum tipo de resgate. Ela, afirmando-se uma pessoa má e ele tentando, a todo custo, provar que ela não é má coisíssima nenhuma e chegando a conjecturar se um homem, no lugar de Joe, sofreria as mesmas críticas.

O diretor toca o dedo direto na ferida da hipocrisia quando coloca na boca de Joe palavras consideradas politicamente incorretas como "negro" e "ninfomaníaca". Em ambas as cenas, ela é admoestada para substituí-las por afrodescendente e viciada em sexo. Para Joe, quando algo atormenta a sociedade, em vez de ela tratar o problema, enfrenta-lo, simplesmente suprime a palavra. Isso tem nome: hipocrisia.
 
E se qualquer um imagina que Lars Von Trier pretendia excitar alguém com esse festival de órgãos sexuais e taras pode se desapontar. Acho mesmo que ele deve estar até agora rindo dos incautos que esperavam extrair algum prazer físico. Posso dizer que nunca imaginei um ménage à troir mais sem graça e mais chocho na minha vida. Estamos diante de uma jovem tarada e especialista em perversões nas mãos de dois jovens e fortes negros excepcionalmente bem dotados: um clichê do clichê. Se dessa combinação podia sair algum prazer, o anticlímax é total. Ah, esse Trier não vale nada!!!
 
Um filme de fato mais verborrágico do que erótico e nem por isso menos político. O final é puro Trier atirando um jato de inconveniente verdade, um tiro seco de luz no escuro e sujo coração da hipocrisia. Uma cena de inegável choque. Machistas, moralistas e hipócritas, tremei. Trier chegou para desorganizar o puteiro.

9.3.14

AS FOGUEIRAS E A POSTERIDADE


Dois filmes a que assisti durante o Carnaval me chamaram a atenção por tratarem, com muita elegância, de temas que não têm hoje em dia muito charme e apelo para as gerações mais novas, aquela turma que prefere a sala ao lado, onde passam as séries Eclipse e Velozes e Furiosos (vê que agradei as mocinhas e os moleques). Pois bem, os filmes do meu Carnaval foram A Menina que Roubava Livros e Caçadores de Obras de Arte.  


De fato, os temas tratados em ambos não são de grande apelo para a galerinha. Afinal, entre um bom livro e um show mixo de pagode, quem há de negar que este lhe é superior? E entre uma exposição de Monet e um Ba-Vi quem aposta um picolé de limão na primeira opção?

Em comum, os dois filmes contam com atores de primeiro time. Em A Menina...temos Emily Watson e Geoffrey Rush. Em Caçadores...temos George Clooney, Matt Damon, Cate Blanchet, Bill Murray, John Goodman e  Jean Dujardin. Ambos se baseiam em livros de sucesso e são grandes produções. Em comum também o fato de que o nazismo é o pano de fundo das duas obras e que ambas falam do amor dos homens pelos livros e pelas obras de arte.


Uma ideia permeia os dois filmes e isso me chamou especialmente a atenção. O amor por esses objetos feitos pelo homem vale o sacrifício de uma vida? Sua preservação vale arriscar uma vida?

Antes que você responda, e se não leu o artigo de Contardo Calligaris na Folha de 6/3, certamente você deve pensar que nenhuma vida vale o sacrifício, mesmo que seja para salvar uma obra de arte ou um livro. Ok, falaremos sobre isso no final. Aguarde.

Estou lendo agora, com bastante atraso A Menina que Roubava Livros já que desde 2007 o seu autor Markus Zusak o lançou no Brasil e o fenômeno editorial permaneceu 99 semanas seguidas em primeiro lugar em listas de mais vendidos. Nele, acompanhamos a vida da pré-adolescente alemã Liesel durante o período da segunda guerra mundial. Ela vê o irmão bebê morrer de fome e frio, é separada da mãe logo no início da história e vai viver com uma família desconhecida. Logo, Liesel percebe que somente através dos livros ela encontrará uma salvação fugaz, uma fuga breve para toda a miséria do seu país, perseguição e matança de judeus e comunistas, racionamento de alimentos, fome, delações e espancamentos, o medo a veste como uma roupa que se recusa a deixar o corpo pela falta de outra.

Todo o livro é uma poesia em forma de prosa, e cada página surpreende pela delicadeza. Livro e filme têm um requinte: são narrados pela morte. Sim, a morte, a ceifadora de almas é a narradora da história e se isso lhe parece estranho, também a mim me pareceu, mas esse estranhamento passou na primeira página porque a ceifadora é uma narradora de primeira.

Então eu que tenho um amor quase sagrado pelos livros, entendo o que levaria essa menina faminta a arriscar a vida invadindo casas para roubar livros ou mesmo arriscando-se a resgatar um livro que estava sendo queimado em uma fogueira nazista.

Fogueira nazista!

Os nazistas eram obsecados em queimar coisas. E pessoas. É esse também o tema de Os Caçadores de Obras de Arte: uma equipe de curadores de várias partes do mundo se junta para salvar obras de arte que estavam sendo roubadas ou destruídas pelos nazistas. E novamente voltamos à pergunta que o filme faz algumas vezes: a vida de um homem vale uma obra de arte?

Certamente você, um humanista, dirá que não, que por melhor que seja a obra de arte, ela não vale a vida de um homem. Então, sem hipocrisia, como diz Calligaris, você, católico ou evangélico, tem nas mãos o livro mais precioso do mundo: a Bíblia original de Gutemberg (de 1455) e pode escolher entre salvá-la de um incêndio ou a vida de Fernandinho Beira Mar. Você relativiza seus conceitos?

Pode também escolher entre salvar de um incêndio ou o esplêndido “O Beijo”, de Gustav Klimt, ou o deputado Marco Feliciano; ou a “Pietá”, de Michelângelo, ou Jair Bolsonaro. O que você faria? Talvez você prefira deixar “Guernica”, de Picasso, arder para salvar a vida de Ricardo Lewandovski.

Sobre a influência da arte e particularmente de Guernica (aquela obra que você deixou queimar para salvar Ricardo Lewandovski), recomendo que assista ao belo filme Basquiat que, na abertura, mostra uma cena que influenciou decisivamente o interesse de Jean Michel Basquiat pela pintura. Quando criança pobre, ele era levado pela mãe toda semana para ver Guernica. O menino não entendia nada de arte, mas se impressionava ao ver, constantemente, a mãe se debulhar em lágrimas em frente àquela tela que retrata os horrores da guerra. Anos depois, aquelas tardes com a mãe no museu moldaram o gosto e transformaram a vida do artista que é hoje um dos mais respeitados e caros do mundo.

A posteridade fez muito por Michelângelo, Klimt, Picasso e Basquiat. O que fará por Bolsonaro, Feliciano, Lewandovski e Beira Mar?
Você decide.

6.3.14

ROBOCOP

Antes de qualquer coisa, confesso que estava com enorme preconceito contra este filme. Tinha prometido que não iria a ele assistir, mas, aos poucos, fui diminuindo a resistência que, afinal, caiu por terra ao ver uma entrevista do seu diretor, o brasileiro José Padilha.

Padilha, como é de conhecimento de todos, é o diretor dos dois excelentes Tropa de Elite e do excepcional Ônibus 174. Muito se pode falar e bastante já se falou das três películas, então, foco em Robocop.

Quem conhece o estilo do brasileiro vai reconhecê-lo de cara em Robocop. Uma obra praticamente autoral, o que é uma grande façanha, tratando-se do primeiro filme dirigido por Padilha em um grande estúdio americano (MGM) e com um orçamento de 130 milhões de dólares. Façanha dupla pelo fato de Padilha ter conseguido impor um trio respeitável de brasileiros para dividir o trabalho com ele: o diretor de fotografia Lula Carvalho (Budapeste e Tropa de Elite), o montador Daniel Resende (Cidade de Deus e A Árvore da Vida) e o compositor dos dois Tropa de Elite, Pedro Bromfman. Enfim, como disse o próprio diretor, um blockbuster com alma brasileira.

Em uma das suas muitas entrevistas, Padilha teoriza, com muita razão, que o Brasil possui excelente equipe técnica em parte devido à limitação de recursos para fazer um filme no Brasil, o que estimula a criatividade dos brasileiros, rendendo boas histórias que chamam atenção pelo mundo. E o povo que tem dinheiro sabe reconhecer esses méritos chamando os técnicos para trabalhar na Meca do cinema mundial.

Não me recordo bem da primeira versão de Robocop, ainda nos idos de 1987 com direção do holandês Paul Verhoeven (O Vingador do Futuro e Instinto Selvagem), mas, apesar de ter se tornado um filme cult, sempre me pareceu uma produção extremamente datada. Não imaginava que algo a mais pudesse ser dito a respeito.

Mas a ideia do remake foi bastante acertada, pois o filme, apesar de passados tanto tempo, trata de um tema extremamente atual diante de toda a violência no mundo e as guerras contemporâneas que têm um componente a mais a diferi-las de todas as anteriores: o fenômeno dos temíveis drones, armamentos mortíferos tripulados à distância, a automatização das armas.

Chamou-me muito a atenção o tom geral do filme que é bastante crítico ao militarismo americano, à paranoia daquele país e do seu povo com relação à segurança pública. Lembramos que os Estados Unidos têm uma emenda sagrada na sua constituição que permite a todos os cidadãos a posse de uma arma. O lobby das armas é um dos mais poderosos do país e a indústria bélica é a mais poderosa. Dificilmente um filme com esse tom seria feito por um diretor norte americano. Palmas merecidíssimas para Padilha.

Nos três primeiros dias no Brasil a bilheteria de Robocop foi a segunda maior do ano, atingiu o formidável número de 600 mil espectadores e mais de R$ 8 milhões arrecadados. Ficou em primeiro lugar em dez países, incluindo os da Ásia e Europa. Talvez não tenha empolgado tanto nos EUA exatamente pelo seu tom político e até mesmo por não subestimar a inteligência das plateias, afinal há uma máxima no cinema americano: “nunca se perde dinheiro por subestimar a inteligência da audiência”. Soou-me bastante instigante um comentário do diretor: "Todo adolescente quer ser o Homem de Ferro, ninguém quer ser o Robocop. Ele é muito mais próximo do Frankenstein do que do homem". Descontando o fato de que Frankenstein é o nome do médico e não da sua criatura, Padilha deu corretamente o seu recado.

O filme tem apenas uma única falha e é no roteiro. Há uma contradição na premissa de que a automatização da polícia levaria ao fim da violência e isso mobiliza a bilionária indústria que cria e comercializa as máquinas que acabarão com os crimes. Ora, se o crime acabar não haverá necessidade de mais máquinas, mas são as máquinas que acabarão com o crime. Paradoxal, como é o paradoxo do queijo suíço (*). Uma falha interna que o filme não resolve.

Mas o filme me conquistou de cara, nos primeiros minutos. Em uma espécie de prólogo do que se assistirá, vemos um homem que teve o braço amputado e recebeu uma prótese de última geração. Preocupado se voltará a tocar, o vemos pegar um violão. Aos primeiros acordes, ouve-se não qualquer música, mas “A música”. Peço que desculpem por não disfarçar meu deslumbramento, mas o homem toca simplesmente a minha canção favorita de todos os tempos. Nenhuma música supera a beleza do Concierto de Aranjuez, obra prima do espanhol Joaquim Rodrigo, considerada como a melodia espanhola mais interpretada em todo o mundo, com especial destaque para o seu sublime adagio.

Intimamente, eu ouvia os primeiros e belíssimos acordes da canção de Joaquim Rodrigo e entregava todas as minhas bestas resistências, quase agradecendo a Padilha por aquele momento. Mas eis que o violonista amputado se emociona e erra os acordes seguintes da canção. O médico lhe diz que ele errou por se emocionar, que deveria deixar que a mente comandasse o braço cibernético. Então o homem diz a frase que, certamente, resume a ideia do filme: “Sem emoção eu não posso tocar”. Paradoxal: sem a razão ele não comandaria o braço para trocar corretamente e para tocar corretamente não poderia sentir a música. Resultado: a emoção, o que o tornava humano, era um empecilho. Mas como apreciar uma canção sem senti-la?

É isso que o filme tenta responder: o que nos torna humanos? Até que ponto a razão fria é um substituto para a vida? Afinal, o que é mesmo a vida? Convenhamos, para tentar responder a essas questões intrigantes a gente bem aguenta um bocado de tiroteio,  perseguição de moto e explosões. Uma troca justa.

*Paradoxo do queijo suíço (O queijo suíço tem buracos. Quanto mais queijo, mais buracos. Mas se os buracos ocupam o lugar do queijo, quanto mais buracos menos queijo. Então, quanto mais queijo, menos queijo).