19.4.20

ENTRE NÓS

       O primeiro de nós ligou a lâmpada do quarto enquanto os restos das sombras da casa, silenciosamente deixavam-se banhar pela tênue luminosidade de uma lua quase nova, uma escuridão violada também pelo brilho do vapor de mercúrio da lâmpada do outro lado da rua, pouco de luz que conseguia atravessar o mar de mariposas enlouquecidas que se debatiam, ferindo as asas, contra o globo imundo do alto do poste. Com a casa semi-iluminada pelo luar e o mercúrio deslizando até a soleira da porta, a lâmpada acesa naquele quarto revelou sua fluorescente redundância.


        A segunda de nós trazia no corpo um aroma novo de sândalo que impregnou por muito tempo os lençóis do quarto que precisava de uma limpeza. Felizmente, era noite e ela, a segunda de nós, não reparou na fina camada de poeira que aniversariava pelos cantos. O aroma era inebriante e ninguém prestou atenção na longínqua nota ácida de naftalina do quarto. A segunda de nós espreguiçou-se como uma felina doméstica que se divertia maltratando ratinhos. O pescoço é delicado e os dentes pequenos e afiados carregam doses sutis de veneno em cada gota de suor também chamado de sândalo. A segunda de nós sorri, displicentemente alta. Ela bebeu demais? Os outros dois de nós não sabiam. Isso poderia fazer parte do seu jogo.
           
O terceiro de nós não deixaria cheiros nos móveis. Habitava longe daquele logradouro voraz repleto de poeira e, agora, sândalo. Era novo demais para estar entre dois de nós, há bem pouco chegara aos 18. Mas, se aquele nem mesmo era seu caminho para casa, por que estava ali, marcando sua presença discreta entre os outros dois de nós, se não havia vínculos cronológicos ou geográficos que os ligassem? Que tanto de mel havia naquela casa onde a poeira de um e o perfume da outra poderiam ser como um imã para incautos? Uma teia para arrebentar frágeis asas? Ele tem as calças jeans rasgadas nos joelhos e não fuma. Não se importa se fumem, se bebam ou se chorem. Não se importa com nada. Ainda não tem porque se importar. Quiséramos que ele nunca precisasse. A pele do seu rosto ainda não tem vestígios de uma futura barba, mas a cor e a textura exatas de um pêssego amadurecendo. O olhar é um lago límpido cercado de cílios longos. Se houvesse algum tipo de justiça na terra, o terceiro de nós a mereceria. E mais ninguém.

O primeiro de nós julga-se um bocado sábio e já um pouco sujo, como as meias que guarda no fundo da cômoda e mereciam mais atenção. O primeiro de nós não sabe ainda que há muita lama e espinhos no caminho a trilhar e que há selvas de perigos em algum lugar adiante. Só está tentado evitar, o mais tempo que pode, atravessar esse charco. Sabe que não conseguirá evitar por muito tempo sujar as mãos, ferir a alma, machucar e ser machucado. Não é mais adolescente, com quase 30, e não se pode enganar as sombras por muito tempo antes de queimar as asas contra o mercúrio do falso luar. Já há nódoas na barra da sua vida. O primeiro de nós não conseguirá evitar.
           
Ela já ligara a música e iniciara a dança que usava nesses rituais particulares. Dire Straits foi o que escolheu, ou talvez fosse o que estivesse mais à mão. A agulha do aparelho de som fez o ruído característico do contato com o disco de vinil. Estávamos ainda no tempo do vinil. Olhou pelos cantos dos olhos, divisando os limites do território que dispunha para a atuação. Aquela era uma das suas qualidades menos evidentes, menos valorizadas, mas a mais apreciada pelos que, mesmo sem perceber, se admiravam com o seu domínio do espaço periférico. Ela comandava a cena como uma primeira bailarina. O balé da mariposa fêmea. A segunda de nós rodava.

O mais moço de nós observava, silencioso, os gestos do primeiro e da segunda de nós. Os seus eram movimentos imperceptíveis como os de um camundongo hipnotizado por duas serpentes. O moço dos longos cílios não sabia bem o que fazer, que papel executar, mas não parecia preocupado com isso já que não lhe cabia o costume de vítima nem combinava o figurino de predador. Sabia, intimamente, que era impossível que não cuidassem dele como de um cristal que se pode partir em pedaços, permanentemente a um passo do irremediável. O colchão sobre o tapete no chão pareceu um lugar seguro para proteger-se de uma queda fatal. Quem diria que aquele primeiro movimento rumo ao conforto do colchão partiria exatamente dele?

            O primeiro de nós era o dono da casa e da motocicleta em que os três chegaram do bar, ele pilotando, a segunda de nós abraçando-o, envolta pelos braços do menino dos olhos d’água. Ele, anfitrião, perguntou se os outros tinham fome. Cada um escolhera uma fruta diferente. Enquanto ela dançava com a sensualidade exata que o papel pedia, o primeiro de nós mordia uma maçã, evitando os olhos do rapaz. De algum modo, os rasgões do tecido nos joelhos daquela sua calça jeans pareciam-lhe dolorosos. Ela desfrutava de um cacho de uvas, sorria, dançava, reivindicava olhares. Ele sentou-se longe do rapaz com pele de pêssego e sumo de morangos nos cantos dos lábios. Uma língua, e já não havia mais vermelhos por ali. Seus olhos eram atraídos tanto pela imobilidade e silêncio dele quanto pelos movimentos ritmados da segunda de nós.

Seu vestido delineava as curvas de pernas esguias. Que papéis lhe caberiam naquele trio? Não se importava já que qualquer papel teria dela um desempenho não mais, não menos, do que perfeito. Àquela altura da noite, das frutas e do disco, somente dois dos três corpos já estavam no colchão. A noite ainda tardava a amanhecer e havia um espaço reservado para ela entre o primeiro e o terceiro de nós.

Mas e aquela lâmpada? Alguém, por favor, o alertasse de que havia luz demais naquele quarto. Descobriram formas de, rindo, disfarçar a ausência de espontaneidade quando acabaram as frutas. Muita cerveja os ajudara a chegar até ali, mas não havia mais cerveja e se queriam aproveitar o efeito que ela lhes causara, não poderiam esperar muito mais. Em breve, a alvorada desfaria o mistério, as mariposas estariam arrebentadas sob o poste, em breve acabaria o disco do Dire Srtaits e aquela lâmpada daquele quarto não tinha qualquer razão para estar acessa.

Finalmente, ela já não dançava mais e não eram somente dois os corpos no colchão. Mas eles ainda não haviam iniciado o balé das mãos que ditariam os rumos a seguir, que abririam os caminhos que não deixariam marcas visíveis para outras trilharem. Cada uma daquelas mãos teria um valioso papel a desempenhar. Precisávamos apenas de um pouco menos de luz.  Até que houve a mágica e a luz, subitamente, apagou-se. Sozinha! Então haveria esperança para as mariposas daquele quarto.

            Foi quando o menino de longos cílios, aparentemente caído numa teia de poeira e sândalo, disse aquela que seria a frase que deixaria os outros dois de nós certos de que ele não precisava de fato da proteção, seu cristal não se partiria fácil e, pelo visto, ele saberia aonde chegar se não o cegassem com a luz que cega as mariposas. A luz apagou-se sozinha e ele foi o dono das únicas palavras que aqui se registra, já que, entre todas, foram as únicas que jamais foram esquecidas.

            — Sua luz é ensinada?

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