19.4.20

O ÓDIO PERDIDO


Pela terceira vez ela o encarava com aquele olhar de desdém. Ele não aguentava mais aquilo. Quanto tempo ela achava que ele suportaria? Três anos juntos e infinitas brigas, discussões, humilhações públicas. Era como um concurso, como um teste, cada um explorando ao máximo os limites do outro, testando sempre.

Experimentaram tudo juntos, as delícias intensas de serem como um só parecia ter ocorrido em um tempo lendário, ou fora um conto de fadas ou uma piada de mau gosto. Viveram também a lama, o lodo da relação, as drogas, o álcool...trocaram segredos íntimos, revelações...Tudo!

 Afinal, eram um só.

 Mas naquela noite ela estava usando a arma mais terrível, reservada para momentos extremos. Ele sentia um misto de raiva, desprezo e desejo. Segurou-a pelo pulso, forte. Ela levantou o queixo, jogou o cabelo para trás...e aquele olhar...Ele jogou-a no sofá e ela ainda exibia o mesmo sorriso, cínico, superior, cada vez mais venenosa.

Ela, cada vez mais dona da situação. Quem conseguiria dobrá-la, vencê-la?

Ele decidiu que naquela noite, naquela hora, pelo menos por um minuto ele seria capaz de derrotá-la. Meio envolvido por essa tênue gana de macho ferido ele se moveu. Seguro finalmente. Mas ela não o sabia ainda.

O sorriso ainda continuava ali, o desprezo também. Ela usava toda a munição.

Ele avançava como um gato, como uma cascavel e, sem que ela esperasse — porque ele nunca o fizera antes —, rasgou-lhe a blusa com violência e os seios dela saltaram firmes, sob o tecido.

 A visão o provocou mais. Era como um selo, um sinal, um símbolo. O sorriso agora já era forçado, o pudor, atávico. Surpresa mal disfarçada. Mas ela bem que tentou. Fêmea acuada, tentou... A munição já fora gasta? Ele ainda não sabia.

 Estava determinado. Sentou-se entre as pernas dela e com ódio e desejo no olhar, enfiou as mãos sob o seu vestido, tocando-lhe as coxas sem desviar os olhos do seu olhar.

Se ela resistisse, era como capitular, se se entregasse; como dar-se por vencida. A dúvida estava tão presente quanto a faísca quase morta do desejo que, súbita e sorrateiramente, parecia reacender. Ele seria capaz de fazer aquele desejo reviver? A umidade no baixo ventre parecia gritar que sim.

 Mas na mente, ou seria no peito, a raiva, os remorsos e o desejo de castigá-la pareciam ainda ser fortes. Ele era forte. Sua barba de alguns dias e o cheiro de álcool impregnado por todo o seu corpo tornavam sua figura um misto de mendigo, de homem do mundo, marinheiro, os desejos de moça dela.

Quanto tempo?

Ela ainda se lembrava de tudo, quanto se rastejara, quanto se humilhara, implorara carinho. Aquele era o homem que matara sua inocência. Aquela mulher agora era ela. Decidira, após esse tempo todo, vingar-se dele, mas a mão, alojada agora no encontro das suas pernas, era onipotente, retirando-lhe as energias que ela precisava para cumprir a missão de vingar-se dele, de resistir a ele.

 Aquela umidade teimava em contradizer o olhar de des-pre-zo.

 Ele baixou o rosto e mordeu delicadamente (queria ser rude, foi suave), um dos bicos de um dos seios. Percebendo-se suave mordeu mais forte. Queria ser rude. O bico do seio crescia dentro da sua boca. Ele desceu com a língua pela barriga até o umbigo, mergulhou devagar fazendo voltas, a barriga dela agora descia e subia, ela já arfava baixinho, tentava controlar-se, mas o sangue já inundava o seu rosto e todo o resto.

A mão dela queria acariciar os cabelos desse homem, mas ela resistiu no meio do caminho. Bravamente, ela lutava contra uma maré, um oceano de carne que pulsava.

Ele levou uma das mãos à braguilha e, apressadamente, sem jeito ou habilidade, tirou seu pedaço mais quente e resistente.

Ela olhou, misto de assustada, curiosa e desejo.

Ele avançou como um huno para dentro dela. Agora que ele sabia que havia toda aquela umidade ali, ele parecia ter um convite formal.

 Há eras, parecia ter ocorrido em outra vida, tal a distância que eles se impuseram, ela conhecia essa sensação. Lembrava-se agora. Fora a conquista, o prêmio que se permitira receber. Foi quando se concebera mulher.

 Mas não se tornara mulher quando ele destruiu sua inocência fazendo-a rastejar-se? Ou havia se tornado mulher antes?

 Aquele homem arremessava-se agora com uma fúria primal para dentro dela. Ela se lembrava. Ele se movia cada vez mais forte, cada vez mais bárbaro. A raiva e o desejo. O desejo, a raiva e o desejo. A raiva-desejo!

Ela se lembrava de algo parecido, mas nunca tão forte.

Ele decidira que ela viveria o maior prazer que já sentira na vida. Ela saberia como ele podia ser bom e como ela tinha sido estúpida de tê-lo afastado de si, atirando-o na terrível miséria de não ter a quem se dar. Ele iria destruir suas barreiras. Quanto mais forçava, mais elas iam caindo. Uma por uma. A raiva então parecia tão distante. Do que era mesmo que ela o culpava?

E o desejo em ondas. Aquelas vagas titânicas de desejo.

Ele não gozaria jamais, Ela jamais deixaria de gozar. Ele ainda tinha bem presente o ódio que havia entre os dois. Aquela conjunção era sua única arma contra tanto veneno. Ele não sabia ainda que tudo que agora restava daquela mulher-fortaleza era a caverna escura e úmida por onde a penetrava como um aríete em brasa. Tudo que sobrava dela eram ruínas de uma casamata onde ele, totem em chamas, saboreava sua vingança.

Ela estava toda entregue, acariciava-o, cruzava as pernas nas costas dele sobre o sofá, posição difícil, ela gritava, uma muralha inteiramente desabada de prazer.

Ele arremessava como um selvagem, um cruzado, um alucinado, a sua mulher, a sua mula, sua... Ele não ousava ainda pensar. Ele cada vez mais excitado, silencioso, nem um gemido, o suor banhava todas as partes, as mais secretas. Ele não falava, não gritava, só a respiração pesada, quase um arfar murmurado. Ele calado. Ele, concentrado, não gozaria jamais. Estava reservado para ela como uma overdose.

 Quanto tempo seria necessário, horas, dias, anos? Mais?

 A mão dele descia agora, suave, pelo rosto dela, pelos seios. Ele agarrara um seio. Agora seria dor? Ele a esbofeteava! Esbofeteava forte! Nunca fizera aquilo antes. Por que nunca fizera aquilo antes?

Ela nunca se sentiu tão dominada pelos sentidos. Cada bofetada dele era como uma rajada de espasmos que lhe percorriam todos os milímetros da pele, era calor e era cheiro, o som de cada tapa nas faces, na boca, a cabeça voltando-se para os dois lados, para um lado e para o outro, os cabelos selvagemente desalinhados, molhados de suor, grudavam em partes do rosto dela escondendo do olhar dele o olhar dela. Ela nunca antes se sentira tão liberta da vergonha. Sentia dor e gostava. A dor-prazer!

De onde vinha tudo aquilo? Daquele homem? Daquela mulher? Eram desconhecidos. Anos juntos e não se sabiam. Quanto mais ela gemia alto, mais ele se calava e, silenciosamente, arremessava-se, sequer a se permitir um único som.

Do que ela o culpava?

Do que ele a culpava?

Então, finalmente, quando não havia mais como resistir, ele, o homem, entregou-se a ela. Desabou num grito imenso. Um imenso e contido grito apenas e todo um mundo veio abaixo. Bastava aquele grito e todo o mundo não seria suficiente para restaurar o seu ódio perdido, esfacelado em meio ao jorro de vida com que ele a inundara.

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