3.3.13

Indomável Sonhadora


A péssima escolha do título em português para este belíssimo filme é plenamente recompensado pela espetacular atuação de Quvenzhané Wallis, uma pequena grande atriz que, a esta altura, todo mundo já sabe que foi a mais nova a ser indicada ao Oscar (e a que tem o nome mais complicado). Além disso, o filme e seu diretor e roteiro também concorreram à estatueta máxima de Hollywood sem contar os prêmios nos festivais de Cannes e Sundance.

A tradução mais fiel ao original “Beasts of the Southern Wild”, Bestas do Sul Selvagem, refletiria muito mais fielmente o espírito do filme: a vida dificílima de famílias semiabandonadas, mas extremamente unidas, de uma comunidade pobre do sul dos Estados Unidos, na região alagada do rio Mississipi.

Nesse lugar devastado, insalubre e completamente enlameado, conhecido como A Banheira, habitam pessoas que poderiam perfeitamente estar num daqueles lixões que estamos acostumados a ver nas grandes cidades brasileiras ou em imagens de favelas indianas e miseráveis aldeias da África, mas é estranho ver esse tipo de pobreza no país mais rico do mundo.

A pequena Hushpuppy, de apenas 6 anos, é uma das crianças da comunidade, onde praticamente todos os adultos buscam no álcool uma fuga para as dores da sobrevivência. Ela vive apenas com o pai doente. A vida de Hushpuppy é uma sucessão de perdas: a mãe a abandonou quando ela era muito nova, os amigos vivem morrendo com as constantes inundações do rio e em breve o pai também irá morrer.

Do mesmo modo como os adultos da Banheira buscam uma fuga no álcool, Hushpuppy, como toda criança, encontra na imaginação e nas fantasias, uma saída equivalente, como nos diálogos com a mãe ausente.

Não basteassem a pobreza e tantas privações, Hushpuppy e seu pai doente enfrentam uma forte tempestade que inunda toda a comunidade e eles passam a viver em um barco precário com alguns amigos sobreviventes. O drama poderia parecer forte demais, quase insuportável de assistir, mas nas mãos inspiradas do diretor novato Benh Zeitlin, a película assume um tom lírico e quase de realismo fantástico.

A relação da menina e seu pai é o motor do filme. Como o pai de Hushpuppy sabe que vai morrer e que a filha ficará sozinha, ele a cria para ser uma sobrevivente, quase um pequeno animal, como aqueles que eles estão habituados a comer. E assim, nesse ambiente de hostilidades, não há espaço para demonstrações de afeto, para fragilidades ou para lágrimas.

É realmente espantoso que um diretor tão jovem (30 anos) tenha conseguido construir, com esse material, um filme tão terno e utilizando não atores. A princípio, duvidei que ele conseguisse, pois desde a primeira tomada, com uma câmera nervosa e nenhuma beleza aparente, o filme parece convidar o espectador para uma rejeição. Mas logo vemos que a ternura está nos pequenos momentos, nos gestos simples da menina, nas suas fantasias e na sua narração de criança diante das adversidades, em sequências de beleza improvável.

Há cenas de grande impacto como duas particularmente especiais. Em uma delas, o momento sempre adiado em torno do segredo da doença do pai, quando dá uma tremenda tristeza ver que tanta inocência não resiste à crua realidade ao vermos Hushpuppy gritar no rosto do seu pai: “Você pensa que eu não sei?” Mas não se permitem lágrimas por ali.  Nenhuma criança deveria passar por algo assim. É como amadurecer a fórceps.

Em um dos momentos mais líricos, a menina atira-se ao mar, como teria feito a sua mãe para fugir daquele local. Acompanhada de três outras meninas, são resgatadas por um barco e levadas para uma espécie de bordel flutuante, onde elas recebem algo que nunca tiveram, o carinho das mulheres que ali vivem e que poderiam ser suas mães, como poderia ser sua mãe, a mulher que nina Hushpuppy.

Ao fundo, emoldurando toda a cena, uma canção, um belo e triste blues, como devem ser os melhores blues, na belíssima voz de uma daquelas cantoras negras sulistas, com seu inconfundível timbre anasalado. A letra da canção diz: “Eu posso ser um escravo para você/Eu posso ser um patife para você/Se isso não é amor/Faça de conta que é/Enquanto o verdadeiro amor não chega”.

Que pena que as palavras no papel não tragam, junto, a melodia da canção. Só assim se poderia compartilhar o sentimento de que a letra da música é o retrato fiel da relação daquele pai e daquela filha que fazem de conta que não tem um pelo outro um amor verdadeiro, já que o amor é um luxo a que não se permitem as bestas do sul selvagem, um local em que tudo pode se perder a qualquer instante.

Mas ele está lá, pronto para ser perdido de todas as maneiras possíveis e então é melhor fingir que ele é outra coisa. Mas seu nome é amor e não se perde algo precioso assim sem muitas lágrimas.

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