27.12.06

Estrogênio e Morbidez


Uma das coisas mais tristes de ser fã de um diretor, de uma escritora e de uma atriz é ter uma grande expectativa num filme em que eles estejam reunidos e, no final, ter a sensação de que houve talvez desperdício de talento.

Assim é As Horas. Dói sentir que uma grande estrela como Nicole Kidman, vencedora do Globo de Ouro, só ganhou o Oscar pelo papel de Virgínia Wolf para corrigir a injustiça de no ano anterior ter perdido o merecido prêmio por Moulin Rouge para Halle Berry. E não é por falta de méritos de Kidman, que continua em boa forma, mas fica difícil gerar empatia em sua personagem uma vez que a atriz fica em cena míseros 35 minutos.

Stephen Daldry, diretor do ótimo e sensível filme Billy Elliot, também foi preterido há três anos pela academia, injustiça que também pode ser estendida a Julianne Moore que já teve chances em Boogie Nights (para o qual foi apenas indicada para o Globo de Ouro e Oscar), Magnólia (onde estava soberba e pelo qual não ganhou prêmio algum) e Fim de Caso (impecável, mas apenas indicada). Se ganhassem as estatuetas, seriam reparações, mas as reparações não cheiram muito bem. Vide o questionamento do personagem de Ed Harris, indicado, merecidamente, para o Oscar, se o prêmio literário que ganhou (no filme) não foi apenas porque estava à beira da morte.

A música solene e minimalista de Philip Glass pode ter sido até premiada, mas — mais sombria, impossível — dá a exata dimensão da angústia com um som instrumental duro e quase sem vocais. Não digo que a música deveria ser alegre, mesmo porque isso não faria sentido algum nesse filme, mas junte-se mais ainda a dose de amargor (a música) a essa mistura áspera e tem-se como resultado mais morbidez.

As Horas é um filme que trata de morte todo o tempo com suicídios em altas doses, tristeza, solidão, desamparo e amargura. A morbidez permeia cada fotograma e não há muita explicação para isso a não ser a própria incontinência humana para o sofrimento.

Em um momento Virgínia diz: “É preciso que alguém morra para que os outros dêem valor à vida” mas, contraditoriamente, logo adiante se vê que a personagem de Julianne Moore sente extrema culpa por sobreviver a toda a família, onde se morre de câncer a rodo. A moral e a culpa judaico-cristãs estão onipresentes e os personagens, como rebotalhos humanos usando os afetos como muletas, não disfarçam o imenso tédio das próprias vidas enfadonhas. Isso não tem muito de revolucionário, sejamos justos.

Pessoas fracas e cujas vidas banais são disfarçadas de algum sentido, mulheres sem auto-estima, indefinidas sobre a própria sexualidade, transitando pelo lesbianismo com maior ou menor convicção, homens marcados pelos fantasmas de antigas relações destruidoras — a AIDS aparece como um flagelo auto imposto... É sintomático que a única personagem com alguma auto-estima seja a de Toni Collette (de O Casamento de Muriel e Sexto Sentido) e o autor, como para condená-la por não se enquadrar no perfil de morbidez, enfia-lhe um tumor no útero. Simbólico que seja no útero não? Nada mais feminino do que um tumor no útero.

Mrs.Dalloway, filme de 1997, com Vanessa Redgrave no papel principal, retrata mais fielmente o espírito da Inglaterra no tempo de Virgínia Wolf do que o 3x4 de As Horas, onde Wolf é mostrada como uma mulher aborrecida, amalucada e cheia de literatices e não a autora e crítica literária consagrada como uma das mais criativas da literatura do século 20 e precursoras do feminismo. Seu livro O Quarto de Jacob, por exemplo, é considerado ponto de transição da ficção tradicional para o impressionismo poético Além do mais, As Horas nem mesmo é fiel a Wolf. Mrs.Dalloway, seu romance mais famoso, foi iniciado em 1923 e ela morreu 18 anos depois do que aparenta no filme. Suas obras: Passeio do Farol, de 1927, Quarto Próprio, de 1929, As Ondas, de 1931 e Os Anos, de 1937 são todos posteriores a Mrs. Daloway.
É uma pena que essas atrizes interpretem personagens atreladas a uma morbidez angustiante, como satélites perdidas a procura de um eixo de luz ou calor. Essa dor onipresente e opressiva nas almas tem uma densidade por demais rarefeita para sustentar o filme.

As Horas tem boa direção, porém é acadêmico nos enquadramentos e nos planos, apesar de se resolver muito bem nas fusões temporais. Cenários e figurinos corretos e fotografia e trilha sonora adequadas para filmes de época. Tem, também o inegável mérito de mostrar 3 mulheres vivendo suas vidas em períodos históricos diferentes ligadas por um liame imaginário em torno de uma grande personagem literária.
Essa opção criativa, mas algo arriscada, reduz, porém, a substância do filme e fica claro que esse é o típico exemplo de que o todo pode ser inferior à soma das partes. Mostradas separadamente potencialmente seriam 3 ótimas histórias, unidas, perdem intensidade e sabor. Como acontece às suas personagens, o filme perde o vigor e a vida.

No comments: