24.5.25

LICENÇA POÉTICA PARA MATAR CANÇÕES ?

Se há um tema que gera debates entre linguistas e gramáticos, fãs e "puristas” da Língua Portuguesa, é quando se apontam possíveis erros gramaticais nas letras de canções famosas. A palavra  puristas está entre aspas porque o termo é frequentemente usado quando se quer criticar quem preza talvez um pouco demais pelo uso correto da Língua Portuguesa nas letras das canções. Puristas costumam receber junto o adjetivo de elitistas.

Então aqui fala um “purista elitista”.

Só que não! 

Não engulo a desculpa que se usa para perdoar erros gramaticais em canções atribuindo-os à “Licença Poética”. Curiosamente, esse perdão só é concedido se o artista for querido do mainstream e incensado pela crítica. Se for do pagode ou do arrocha não recebe a mesma dádiva. 

Deixemos claro: Licença Poética é a liberdade legítima de um autor em fugir de normas gramaticais se isso visa à comunicação da expressão artística e à originalidade em busca do maior impacto da mensagem por meio de subtextos, regionalismos, neologismos e até metalinguagem. Quando tais “erros” são propositais e o recurso é fruto de ousadia e criatividade, acho perfeito!

Aqui estão vários exemplos

ACIMA DO SOL - SKANK 

Canção com rica construção melódica e belas imagens na letra, mas com erro já no primeiro verso: “Assim ela já vai / Achar o cara que lhe queira/ Como você não quis fazer.

A música é dirigida a alguém na segunda pessoa: Você. O verso correto não é “Achar o cara que lhe queira” mas “Achar o cara que A queira”, uma vez que o querer não é dirigido a Você mas a Ela. Ela não vai achar um cara que queira você (lhe) mas que queira ela (a).

Mais adiante, há erro no uso do pronome te (Eu não posso te ajudar/Esse caminho não há outro). Toda a letra é dirigida a segunda pessoa VOCÊ e não a TU. A construção correta seria: Eu não posso LHE ajudar/Esse caminho não há outro.

Veja que o autor usa o pronome LHE no 1º verso quando não é o correto e não o usa no 3º quando seria o adequado 

FORMATO MÍNIMO- SKANK

Essa canção tem estrutura que imita Construção de Chico Buarque, com quase todos os versos terminando em proparoxítonas (última, único, tímido, máquina, mágico, lágrima, sábado, príncipe....). 

Aqui a música vai bem no uso das proparoxítonas: súbito, ótima, próxima, óculos, vírgulas, ácido, máximo.....até derrapar, no que se chama "silabada", justamente no último verso em que usa uma palavra que muitos pronunciam errado como proparoxítona, mas é na verdade uma paroxítona: rubrica. Da triste solidão, a rubrica”,  quebrando a magia da canção e soando como uma falha lamentável.

METAMORFOSE AMBULANTE – RAUL SEIXAS

Outra canção que tem um erro gramatica já no primeiro verso (Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo). Como todos sabemos, a regência do verbo preferir não permite DO QUE. Então o correto seria: Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ A ter aquela velha opinião formada sobre tudo). Adiante falo sobre a genialidade de Caetano Veloso, compositor também baiano como Raul, para driblar um problema na  métrica da letra por correção gramatical.

EU NASCI HÁ DEZ MIL ANOS ATRÁS- RAUL SEIXAS

Outra canção de Raul Seixas com erro gramatical. Independentemente de ser uma belíssima música, o erro começa já no próprio título e se repete no refrão. O certo seria EU NASCI DEZ MIL ANOS ATRÁS ou EU NASCI HÁ DEZ MIL ANOS. Gramaticalmente, não é aceitável, a construção em que se usa HÁ e ATRÁS na mesma frase. Uma solução para uma possível falha na métrica está em função do talento de um artista.

POEMA - CAZUZA

O mesmo erro que Raul Seixas comete, Cazuza replica na letra da canção interpretada maravilhosamente por Ney Matogrosso que apesar de belas aliterações como (Eu hoje tive um pesadelo/E levantei atento, a tempo), tem um erro no último verso (Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás). Não faz sentindo usar a desculpa de licença poética para justificar o erro pois a frase não perderia a métrica se fosse usada a forma gramaticalmente correta como seria em (Pela beleza do que aconteceu minutos atrás).

HINO DO SENHOR DO BONFIM

Pessoas de fora da Bahia podem não dar a mesma importância ao Hino do Bonfim, mas ele é bastante famoso e muito caro aos baianos. Mas há nele um erro gramatical que poucos notam. Na letra, o Senhor do Bonfim é tratado na 2ª pessoa do singular por toda o hino (Glória a Ti neste dia de glória ou Glória a Ti nessa altura sagrada ou Aos Teus pés, que nos deste o direito).

Como todo o tratamento é na 2ª pessoa do singular, que razão justifica o verso do refrão (Dai-nos a graça divina)? Aqui o imperativo muda para a 2ª pessoa do plural vós. Não é certo usar DAI-NO a graça divina, mas sim DÁ-NOS a graça divina. O uso correto do imperativo não alteraria a métrica. É erro mesmo e não licença poética.

EU TE DEVORO - DJAVAN

Aqui o caso é mais interessante porque a inspiração de Djavan foi uma entrevista em que Caetano Veloso diz que “Devoraria Leonardo DiCaprio” aludindo aos modernistas brasileiros e ao movimento antropofágico que simbolicamente devorava influências estrangeiras para criar algo nacional.

O verso em questão diz: “Noutro plano, te devoraria tal Caetano/A Leonardo DiCaprio”

Devorar é verbo transitivo direto e sua regência não pede a preposição A, exigência de verbos transitivos indiretos.

Ouvi muitos comentários alegando licença poética de Djavan porque ele queria facilitar a compreensão já que o uso da forma correta que seria “Noutro plano, te devoraria tal Caetano,/ Leonardo DiCaprio” geraria confusão. Ressalto a elegante elipse do verso quando ele omite a repetição do verbo devorar mas isso não redime o erro já que o verbo devorar em qualquer contexto, não perde sua função de verbo transitivo direto e não aceita a preposição A.

Se Djavan não pode ser acusado de algo é de facilitar a compreensão do ouvinte. Ele é famoso pelas letras aparentemente sem sentido. Então vamos ao seguinte exemplo, se em vez do verbo devorar usássemos um verbo transitivo indireto como obedecer: A frase seria (te OBEDECERIA tal Caetano/ A Leonardo DiCaprio) Sentiu? Tudo é a regência correto do verbo esteja ele ou não em elipse.

DOMINGO- TITÃS

Essa música tem um verso com três erros (E antes que eu esqueça aonde estou/Antes que eu esqueça aonde estou/Aonde estou com a cabeça?). O uso do advérbio Aonde só é aceitável com verbos que indicam movimento. Nos demais verbos, o adverbio é Onde. Nesse verso, o verbo é ESTOU então o advérbio não pode ser AONDE.


EXEMPLOS OPOSTOS


NEGUINHO-CAETANO VELOSO

Aqui, exemplos de músicas em que os erros gramaticas são aceitáveis já que estão a favor da criatividade e do contexto como na canção NEGUINHO, de Caetano Veloso e imortalizada por  Gal Costa no álbum Recanto (Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo/ Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo/ Nego abre banco, igreja, sauna, escola/ Nego abre os braços e a voz/ Talvez seja sua vez: Neguinho que eu falo é nós).

Obviamente, o último verso tem um erro de concordância. Em teoria o certo seria: (Neguinho que eu falo SOMOS nós). Mas o gênio de Caetano está presente no uso da dissonância de “É NÓS” em favor da expressividade do regionalismo.

Num dos versos seguintes ele habilmente constrói uma bela sonoridade no refrão rico em aliteração (Rei, rei, neguinho rei/ Sim, sei: neguinho/ Rei, rei, neguinho é rei/ Sei não, neguinho). Só esse verso  já mereceria um ensaio.

Como há quem diga, em favor da licença poética, que em alguns casos o erro se justificaria em respeito à métrica da canção, o próprio Caetano aqui diz, lindamente, fugindo com habilidade da perda da métrica e criando uma ilusão maravilhosa no verso (Se o mar do Rio tá gelado/ Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul/ Já na Bahia nego fica den'dum útero).

Que coisa mais maravilhosa esse verso. Den’dum em vez de dentro de um que, teoricamente, seria o correto. O verso ainda acrescenta a imagem do mar da Bahia quente e acolhedor como um útero, em contraposição ao mar do Rio, gelado, que expulsa pessoas correndo e azuladas). 

Então não me venham dizer que a licença poética é justificável por preguiça de encontrar uma forma mais criativa, rica e sonora. Caetano já mostrou como se faz!

INÚTIL – ULTRAJE A RIGOR

Essa é uma música que faz uso perfeito da licença poética com metalinguagem no verso do refrão (A gente somos inútil) que segue a lógica interna de (A gente não sabemos escolher presidente/A gente não sabemos tomar conta da gente/A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nóis é indigente).

Faz total sentido os erros gramaticais, pois eles estão em função do discurso que o autor pretende fazer em defesa de uma ideia. Não teria nenhum cabimento o uso da gramática normativa nesse caso, assim como nos casos abaixo. 

SAUDOSA MALOCA E SAMBA DO ARNESTO– ADONIRAN BARBOSA

A maravilhosa canção SAUDOSA MALOCA tem vários conflitos gramaticais adequados tanto ao conflito de classes retratado na letra como ao linguajar de paulistanos descendentes de italianos como: “Mas um dia nem quero me lembrar/ Veio os homens com as ferramentas/ O dono mando derrubar/ Peguemo' toda' nossas coisas/E fumos pro meio da rua/ Apreciar a demolição.

O mesmo acontece em SAMBA DO ARNESTO que já no seu primeiro verso trás essa belíssima pérola: O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás/Nós fumos, não encontremos ninguém/Nós voltermos com uma baita de uma reiva/ Da outra vez, nós num vai mais/ Nós não semos tatu!”

Essa icônica música de Cazuza famosa na voz de Cássia Eller tem alguns erros gramaticais bastante perdoáveis diante do contexto de um linguajar descomprometido e rock and roll. No primeiro verso, vemos (Quem sabe eu ainda sou uma garotinha). O correto, gramaticalmente, já que quem sabe indica incerteza, seria: Quem sabe eu ainda SEJA uma garotinha.

Essa construção poderia ser feita sem ferir a  métrica, mas como Cazuza repete o uso do "quem sabe" adiante, nesse contexto, não ficaria bom a correção nos versos (Quem sabe o príncipe virou um chato) que teria que ser corrigido para (Quem sabe o príncipe TENHA VIRADO um chato) e (Quem sabe a vida é não sonhar) que teria que virar (Quem sabe a vida SEJA não sonhar). Então aqui, Cazuza fez a melhor escolha possível.

VOCÊ, O AMOR E EU- CARLINHOS BROWN

As belas imagens dessa canção de Brown que termina com a frase Oromim má, obrigado por você me amar (referencia à canção iorubá que diz: Oro mi má / Oro mi maió / Oro mi maió / Yabado oyeyeo." "Deus é o mar. Deus é o maior!".

Na canção de Brown o refrão diz: Haverão-verão-verão verões/ Haverão-verão-verão verão nós/ Haverão-verão-verão verões/ Haverão-verão-verão verão. 

Há uma rica aliteração na mistura do verbo haver com o substantivo verão. Brown é mestre nessas misturas sonoras e apesar de ter quem aponte erro gramatical na frase Haverão verões já que o verbo haver não flexiona nesse caso, note que Brown brinca com o som e nunca diz Haverão verões, que poderia soar como erro, mas Haverão verão. E ainda introduz habilidosamente o verbo ver (verão verões). Então, temos o verbo haver, o verbo ver e o substantivo verão brincando sonoramente. Gênio!

GERAÇÃO COCA COLA -LEGIÃO URBANA

Tenho dúvida sobre a letra dessa canção ícone do Legião Urbana pois não dá pra saber se é um erro de paralelismo ou uma sacada do autor no verso: “Vamos fazer nosso dever de casa/E aí então vocês vão ver/Suas crianças derrubando reis/Fazer comédia no cinema com as suas leis)

Explico. Há uma contraposição em toda e letra entre NÓS e VOCÊS (Quando nascemos fomos programados X A receber o que vocês nos empurraram com os enlatados) (Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês) .

Então no verso (vocês vão ver/Suas crianças derrubando reis/Fazer comédia no cinema com as suas leis) o verbo FAZER tem como sujeito NÓS ou SUAS CRIANÇAS? Quem vai fazer comédia no cinema com as suas leis? 

Se o sujeito somos NÓS, o verbo está correto (Nós vamos fazer comédia com as suas leis). Mas se o sujeito for SUAS CRIANÇAS, sujeito do verso anterior (Suas crianças derrubando reis), o verbo do verso seguinte iria para o gerúndio (fazendo comédia) e não no infinitivo (fazer comédia) pela regra do paralelismo.

Estou inclinado a pensar que Renato Russo fez uma jogada inteligente, pois se fosse usar o paralelismo, quebraria a métrica. Foi uma bela saída ainda que um pouco espertinha.

17 comments:

Anonymous said...

Muito bom, amigo. Sempre bons teus textos.

Anonymous said...

Você é muito produtivo. Daria uma excelente aula.

Altenir Carvalho said...

Excelente análise. Uma aula. Parabéns!

Anonymous said...

Tenho outras observações, mas uma coisa me pega de cara: vc já reparou que essa construção do “quem sabe eu ainda “sou”uma garotinha” está se tornando lugar comum? Pensei que era somente entre os adolescentes, mas já vi isso em entrevistas, matérias, professores da UFBA. Acho que estamos assistindo a uma mudança da língua que, em breve, não duvido nada, se transformará em uma norma. A mim me soa incorretíssimo. Fico chocada!
Eu vi que alguns erros que vc aponta também têm origem nessa forma de falar informal. Esses aí eu tbm não ligo : “eu nasci há 10.000 anos atrás”, por exemplo. É assim que a gente fala. Eu mesma me pego falando "há minutos atrás", mesmo sabendo. Aí eu acho que a música só reproduz o nosso falar, mesmo que de maneira não intencional.
Mas "Formato mínimo" do Skank podia passar sem essa, né? Feio mesmo. Até porque eles poderiam ter achado outra proparoxítona. Aí eu concordei.
Hino do Bonfim: imperdoável.
Domingo, Titãs, concordei. Não ia ferir a métrica se tivesse dito “onde” (Mas. é bem verdade que sendo Titãs eu também "não tô nem aí"!).
Abraços, amigo. Me divirto com suas observações sobre livros, literatura, cinema... Amo!

Dani Giron said...

Meu comentário saiu sem meu nome! Mas é Dani, vc sabe!

Manoel Filho said...

Nossa!!! genial, pois o texto demonstra as formas possíveis de genialidades, caminhos e controles nas construções das letras. Divertido e suave, como sempre conduz seus textos. Parabéns! Excelente. Há coincidências como penso, também. Obrigado!

Anonymous said...

Interessante o ponto de que realmente a crítica releva o ‘erro’ do artista mainstream e não daquele menos querido.

Anonymous said...

Luiz Gonzaga tem uma infinidade de erros gramaticais, próprios da expressão do nordestino "trabaiadô", de vida "sufrida" e sem estudo. Para quem conhece(u) a realidade vovenciada por ele e pelos conterrâneos nordestinos, os erros gramaticaos enaltecem a sua história.

Jennifer Carneiro said...

Amei as explicações. Eu não tinha me tocado para alguns desses exemplos. Também aproveitei para aprender.

Luciana said...

Muito interessante análise. Confesso que meu conhecimento em gramática não chega aos pés do teu, mas vou observar mais as letras agora.

Anonymous said...

Ficaram melhor com erros gramaticais 😂

Rodrigo Sarmento said...

ótima análise. alguns erros eu nunca tinha notado antes

Freitas Jr. said...

Questão de métrica, sonoridade, coloquialismo, fluidez na comunicação, aproximação da linguagem utilizada no dia-a-dia por quem faz e para quem se faz podem explicar. A discussão entre o que é "falar certo" e o que é "falar errado" perde densidade diante de regionalismos, gírias, corruptelas e outros aspectos que envolvem a dinâmica da linguagem. O português que falamos hoje não é o de ontem e não será o de amanhã, já que, como língua viva, está em constante mutação e fricção com outras culturas. Palavras novas pipocam e as articulações
da fala (que, inexoravelmente, deitam efeitos sobre a escrita) seguem pródigas. Tenho visto, até em avaliações, uma maior preocupação com a interpretação, com a compreensão do que com o português castiço. O que me preocupa, sinceramente, é o crescente analfabetismo funcional. Seu olhar aguçado, contudo, como sempre, dá ensejo a provocações que nos levam a refletir.

Américo,José de Ávila,Agro. said...

Salve amigão! Artigo deveras instrutivo e noutro prisma, controverso;amo Adoniran,Raúl, Lula Gonzaga O Buarque,degluto seus petiscos métricos ,ou mesmo assimétricos sem engasgos,instigado pelo poético que aos meus tímpanos soam.Parabens por estares a ajudar em manter vivo o nosso velho e assoreado Português.

Manoel Pinto said...

Acho pertinente as críticas, inclusive algumas músicas novas deixei de ouvi-las pelas "pedradas" nos ouvidos, tipo "a epiderme da alma" não dá para ouvir; bem observado, parabéns.

Anonymous said...

A licença poética como um "mantra" para encobrir falhas na formação em língua portuguesa é bastante comum. Esse argumento sugere que, em vez de buscar uma compreensão mais profunda e rigorosa da língua, muitos recorrem a essa licença para justificar erros ou falta de domínio.

Anonymous said...

Tiago Moraes.