27.2.08

Quantas missas vale Canô ?


Adoraria mudar de assunto e não falar mais do útero do século do Recôncavo, quem sabe encerrar um ciclo após dois artigos seguidos sobre o tema (pois as boas - e as más - trilogias vêm sempre em três). Então talvez com este terceiro artigo encerre a implicância com a velha Canô.

Se eu tivesse um pouco de inteligência esse texto teria um estofo mais filosófico, adentraria o terreno da psicologia social e analisaria a atávica tendência humana de construir seus mitos e heróis para depois simplesmente destruí-los. Penso nisso quando calculo quantas matérias da Folha, Veja, Istoé, Caras, Quem... eu suportarei até que enjoem da ladainha. Afinal chegamos a um bom número redondo. 100 já está de bom tamanho. Que graça ou novidade teriam as matérias: "Canô completa 101!" "Canô comemora 102!" se jornalistas adoram um epitáfio.

Canô vale quantas missas? Henrique IV da França achava que Paris valia uma, justificando qualquer sacrifício por seu proselitismo católico. Penso nisso quando vejo seguidamente o ateu Caetano ajoelhado ao lado da mãe na matriz de Nossa Senhora da Purificação. Afinal, quantas missas vale Canô? Se minha mãe fosse católica fervorosa, como Canô e eu, como Caetano, ateu, me sujeitaria a essas coisas? Gosto menos da minha mãe do que Caetano da dele? Mas minha mãe não me arrastaria para uma Igreja sabendo que eu não creio no Deus dela. Penso que minha mãe respeita mais minhas descrenças do que Canô as do filho ateu dela.

Ora, direis: um filho tem que respeitar a fé da mãe. Mas o que vejo é a figura e os valores da velha Canô devorando a incredulidade do filho, como ela já fizera com a fama conseguida de segunda mão, via Caê. Lembro a pintura simbólica e sombria de Goya que retrata Saturno devorando o filho Zeus. Saturno é Cronos, o tempo inexorável, o velho devorando o novo. Canô, qual Cronos, quer se perpetuar sinistramente devorando tudo.

Mas o espectro da multimidiática Canô me ronda desde que resolvi falar desse tema. Não há uma única publicação que saia sobre ela que vários amigos não me enviem cópias. Parece que não tenho outro assunto para tratar. Há os que, quando a vêm, lembram imediatamente de mim. Um fardo.

Um me mandou um link da revista Vida Simples com a matéria: "Dona Canô: A baiana que é uma lição de calma e sabedoria há 100 anos". Na reportagem ficamos sabendo, pela milionésima vez, que Canô acorda às 6 da manhã e toma café com leite e suco. Ao meio-dia ela come moqueca com azeite de dendê e leite de coco. Prefere a moqueca de arraia com feijão de leite. Além desses dados fundamentais, somos informados de que Canô, (como milhares de senhoras do interior da Bahia), celebra São João com fogueira e mesa farta, comemora São Pedro, faz caruru de Cosme e Damião, reza a trezena de Santo Antônio e (agora sim, algo inédito), comanda a lavagem da Igreja de Santo Amaro. Ficamos sabendo que Isaura é a sua cozinheira de 40 anos e as ajudantes são Fifi e Odília. Informações importantíssimas.

Outro amigo me telefona eufórico com a propaganda de Canô para o Banco do Brasil. O que posso dizer sobre isso? Para certas coisas faltam palavras. Mas não resisto à matéria do Correio da Bahia de 28 de janeiro passado. Ali, verdadeiras pérolas são escritas pelo jornalista Alexandre Lyrio. Um título que ocupa 5 colunas, acompanhado de diversas fotografias estampa: "Dona Canô comanda cortejo da Lavagem de Santo Amaro".

Selecionei as seguintes pérolas da matéria (creia, não é uma crônica) que já começa assim: "O semblante da matriarca dos Velloso carrega a mesma pureza e doçura dos santos"; "Quando surgiu, iluminada, foi recebida pela filha e diva"; Enquanto isso, crescia a `fila de fiéis´ para render homenagens à `santa Canô´; "Foi seguida de perto por um cortejo de 500 baianas, e um caloroso aglomerado de pessoas, algumas delas ávidas por tocá-la para receber sua inspiração". Um comerciante de 61 anos disse: "Em primeiro lugar está Nossa Senhora. Depois rendo minhas homenagens a Dona Canô".

Mas a simbologia mais emblemática da irrelevância de Canô eu testemunhei ao ler sua entrevista para o site EcoFuturo, um portal dedicado a educação ambiental. Ali, Canô é perguntada sobre a poluição do Rio Subaé, assunto apropriado para um site de ecologia.

Canô responde lembrando do passado quando o rio era limpo. Diz: "Hoje o rio está imundo. O povo está pouco se lixando". Então o site pergunta se os moradores mais antigos tentam de algum modo melhorar a cidade. Ora, Canô é uma moradora antiga e a esta pergunta ela poderia responder se está fazendo algo. Mas eis sua resposta:

"A população não tem direito a nada. Quando tem um governo que se interessa pelo lugar, a coisa progride, mas eles não têm interesse. Pouco se incomodam se está limpo ou sujo." Será que fui só eu que achou que ela não respondeu à pergunta?

Mas o site insiste. Dá uma chance a ela: "A senhora sempre foi muito influente, sua casa sempre é referência". Você acha que ela se tocou? Olha a resposta da velha senhora:

"Não suporto política...Não voto em ninguém. Já passou o meu tempo de votar. Fui votar por causa dos meus amigos de Salvador mas para prefeito, não"

Cara pálida, me responda: Se Canô era amiga íntima de ACM e Cia, como de todos os governadores do PFL baiano, de Lula, do ministro Gil e de toda a corriola do PT, porque ela prefere rezar missas a usar a influência para limpar o Subaé? Prioridades, não é? E o que dizer do fato de Santo Amaro ser a cidade que tem o maior índice de poluição por chumbo do mundo. Repito: do mundo! O que será que a velha acha disso? Talvez alguém consiga uma resposta dela entre uma hóstia e uma colherada de vatapá.

Canô virou uma santa, uma seita, uma histeria coletiva, um caso de marketing, um fenômeno social. Essa babação não tem fim! E pensar que depois ainda teremos que agüentar ruas, praças, viadutos, feriados, aeroportos e uma inevitável canonização.

1 comment:

Carole Chidiac said...

Engana-se, caro. Sou amiga de Dona Canô e seu marido, seo Zeca, fez o que pode e o que não pode pelo rio Subaé. Canô disse de Santo Amaro o que é comum ao País: não há vontade política. A maioria da imprensa é burra, tendenciosa, paga. Um Paulo Francis, um Tarso de Castro, nunca mais. E mais: naquela entrevista Canô começara a perder a audição de um dos ouvidos e estava triste. Mas quero mesmo é continuar a comemorar seus 102 anos que fez ontem.