30.5.25

+ LICENÇA POÉTICA PARA MATAR CANÇÕES


Publiquei há alguns dias um texto apontando erros gramaticais em músicas conhecidas, lembrando que artistas e público costumam perdoar as falhas alegando “licença poética”.

Licença poética é legítima quando o “erro” é proposital e em função da arte, mas não é aceitável quando é fruto do desconhecimento da norma, principalmente em canções famosas.  Então qualquer um pode escrever uma pedrada e justificar o erro como “licença-poética”.

É perdoável o desvio gramatical nas falas coloquiais ou entre pessoas humildes que não têm obrigação do uso da norma correta. O que me intriga é a legião de politicamente corretos defensores da falha gramatical como em um libelo pela liberdade de expressão.

Pois eu acho o politicamente correto uma das coisas mais chatas e cansativas que existem.

Aqui continuo o primeiro texto apontando músicas com erros imperdoáveis.

Outras, têm erros que só embelezam as canções.

MULHER- ERASMO CARLOS

Essa letra tem dois erros gramaticais. O primeiro no verso (Do barro de que você foi gerada/Me veio inspiração/Pra decantar você nessa canção). Há uma repetição da palavra DO. O certo seria “Do barro que você foi gerada.”

Mas o erro mais gritante está no verso (Mas pra quem deu luz não tem mais jeito). O correto é deu à luzEntendo que a correção feriria a métrica do verso de 10 para 11 sílabas, mas isso poderia ser corrigido com a construção: “Pra quem deu À luz não tem mais jeito”, que respeitaria a métrica e ainda deixaria elegantemente implícito — com uma elipse —, o “mas”, graças ao sentido adversativo da frase. (Quero uma mulher só minha/ “MAS” Pra quem deu À luz não tem mais jeito / Porque um filho quer seu peito.

ONDAS SONORAS- ED MOTTA

Há um erro de conjugação do verbo POR no subjuntivo no seguinte trecho da letra desta canção: Ondas sonoras/ A banhar as tardes, de sol/ E o que mais vier/ Quando ele se por.

O certo seria: Quando ele se puser

Tal erro fica mais evidenciado quando se vê que o lógico seria usar a palavra puser, que rima com o verso anterior (E o que mais vier/ Quando ele se puser). 

NÃO OLHE PRA TRÁS- CAPITAL INICIAL

Aqui há outro erro de conjugação do subjuntivo, mas do verbo VER.

 “Nem tudo é como você quer/ Nem tudo pode ser perfeito/ Pode ser fácil se você/ Ver o mundo de outro jeito”

O certo seria:Pode ser fácil se você/ VIR o mundo de outro jeito”

Tanto no caso de Ondas Sonoras quanto de Não Olhe Pra Trás a correção do tempo do verbo não geraria qualquer problema com a métrica das canções não sendo nada menos do que erro por descaso com a regra e não por licença poética.

COWBOY FORA DA LEI -  RAUL SEIXAS

Essa música tem um erro de interpretação na sua letra. No trecho (Eu não preciso ler jornais/ Mentir sozinho eu sou capaz/ Não quero ir de encontro ao azar).

O autor queria dizer: não quero ir na direção do azar (Não quero IR AO ENCONTRO do azar), mas o que escreveu foi o oposto (Não quero ir DE ENCONTRO ou seja, na direção contrária ao azar).

DE encontro A significa o oposto de AO encontro DE. 

ENTRE TAPAS E BEIJOS – LEANDRO E LEONARDO

Essa música tem um pleonasmo no trecho: Se me manda ir embora/ Eu saio prá fora/Ela chama pra trás.

Reconhecendo o erro, um dos seus autores, o cantor Leonardo, passou a corrigir a frase nas suas apresentações ao vivo quando canta: Se me manda ir embora/ Eu saio lá fora/Ela chama pra trás.

 

NÃO DIGA NADA – PEDRO MARIANO

Essa música tem um erro na conjugação do imperativo: “Olha pra mim/não diga nada...Sonha pra mim...Deixe o vento varrer as palavras).

Há um falar coloquial no Sudeste do Brasil em que se conjuga errado os imperativos, o que não ocorre na Bahia por exemplo. O erro fica mais estranho quando notamos que o autor conjuga, na letra, alguns verbos corretamente e outros não.

Ele deveria unificar a conjugação seja usando o modo imperativo correto ou o incorreto. Então ficaria OLHE pra mim/ NÃO DIGA nada... SONHE pra mim...DEIXE o vento varrer as palavras)

Um exemplo do uso correto do imperativo está na canção TENTE OUTRA VEZ de Raul Seixas (Veja/ Não diga que a canção está perdida/ Tenha fé em Deus, tenha fé na vida/ Tente outra vez/ Beba/ Levante sua mão sedenta e recomece a andar/Queira..) 

ONDE VOCÊ MORA – CIDADE NEGRA

O título da canção está com uso correto do Onde, já que se refere ao verbo morar, que não indica movimento.

Mas há erros nos versos Aonde você mora?/ Aonde você foi morar?/Aonde está você?

O advérbio/pronome interrogativo correto seria, como está no título: ONDE,  já que não se refere a verbos de movimento. 

ADMIRÁVEL CHIP NOVO - PITTY

O mesmo erro da música acima está no trecho dessa canção da cantora baiana nos versos: Pane no sistema, alguém me desconfigurou /AONDE estão meus olhos de robô?

O certo seria o uso do pronome interrogativo ONDE pela mesma razão da música anterior: indica verbo estático. 

ME CHAMA-LOBÃO

Essa música tem dois erros mas ambos podem ser perfeitamente aceitáveis por conta da licença-poética.

O primeiro erro está na falha à regra que diz que não se inicia uma oração com pronomes oblíquos. Porém, isso se tornou tão frequente que é já atribuído ao tom coloquial e regional adequado na canção. Isso se vê nos versos "Me dá vontade de saber/Me telefona/Me chama."

O outro erro está no uso  do imperativo. O correto seria ME CHAME e ME TELEFONE, mas também aqui pode ser aceito por conta da coloquialidade. 


BEIJA EU- MARISA MONTE

Essa canção tem construção que é gramaticalmente desviante da norma, mas com versos muito sofisticados, bem construídos e respeitando a lógica interna da canção como Beija Eu/Molha Eu/Seca Eu/Deita e Aceita Eu.

Caso a construção fosse alterada para a forma correta, a letra perderia o seu aspecto lindo do falar coloquial e também o seu impacto sonoro e estético.

PRINCIPIA – EMICIDA

Essa canção tem letra elaboradíssima, como é comum nas músicas de Emicida e o belo refrão: TUDO QUE NÓIS TEM É NÓIS. É, obviamente, uma fuga da norma padrão que pediria outra construção. 

Mas a perfeição estilística da letra original é tão maravilhosa e reflete tão bem o linguajar das comunidades periféricas paulistanas, contrastando intensamente com a sofisticação do conteúdo dos versos, que tal "erro" embeleza mais ainda a ideia da canção.

DETALHES – Roberto Carlos

Aqui há uma frase interessante (Duvido que ele tenha tanto amor e até os erros do meu Português ruim)

Já li pessoas apontando erro gramatical no uso do verbo duvidar, transitivo indireto, pedindo assim um complemento e que o correto seria DUVIDO DE.

Há gente que diz que há um erro proposital no verso que se justifica no verso seguinte: “Até os erros do meu Português ruim e que seria um recurso metalinguístico de intertextualidade implícita (Por eu ter um Português ruim, uso o verbo duvidar errado).

Seria tudo lindo se não fosse uma bobagem. O verbo duvidar pode sim ser transitivo indireto, mas também pode, noutro contexto, ser transitivo direto e dispensar a preposição DE QUE.

É esse o caso citado: Duvido que ele tenha tanto amor. O verbo está seguido de uma oração completiva (oração que completa o sentido do verbo).

Não temos erro algum aqui e toda a análise poética metalinguística seria linda se não fosse uma viagem de quem interpreta a intenção do autor.

ANDAR COM FÉ- GILBERTO GIL

Aqui os versos: “Andá com fé eu vou/Que a fé não costuma faiá” tem uma sonoridade interessante. O título da música é Andar com fé, mas o verso é andá, bastante regional e coloquial, fazendo uma rima com faiá.

O autor poderia optar pela construção gramaticalmente correta: Andar com fé eu vou/Que a fé não costuma falhar, mas convenhamos que não teria a mesma beleza.


ASA BRANCA – LUIZ GONZAGA

Toda essa canção trás a carga do falar típico do homem nordestino pobre e pouco alfabetizado e isso é uma das coisas mais autênticas e belas da letra. 

Não haveria o mesmo impacto se obedecesse às regras da gramática como nos versos: “Quando OIEI a terra ardendo/QUÁ fogueira de São João/Eu PREGUNTEI a Deus do céu / Nem um pé de PRANTAÇÃO/Por FARTA d'água,  perdi meu gado/ INTÉ mesmo a asa branca/ ENTONCE eu disse: Adeus, Rosinha.”. 

FLOR DA PELE E ALMA NOVA- ZECA BALEIRO

Essas duas canções têm casos interessantes.

Em Flor da Pele o autor escreve (Ando tão à flor da pele/ Qualquer beijo de novela me faz chorar... Às vezes me preservo/ Noutras, suicido.

Há um suposto erro gramatical no uso do verbo suicidar que pode ser escrito “eu suicido” (a origem do verbo é do latim. Sui = a si e cídio = matar). Correta é a construção sem o pronome reflexivo se. Seu uso pode caracterizar até mesmo uma redundância.

Sobre a canção Alma Nova, alguns implicantes apontam cacofonia na frase "Calma alma minha/Calminha, ainda não é hora de partir" e "Calma alma minha/Calminha, você tem muito que aprender"

Realmente, a sonoridade da frase “calma alma minha” parece feio, lembrando a palavra maminha, um clássico caso de cacófono. Pode até soar feio, mas nesse caso há o mérito louvável de brincar com as palavras .

24.5.25

LICENÇA POÉTICA PARA MATAR CANÇÕES ?

Se há um tema que gera debates entre linguistas e gramáticos, fãs e "puristas” da Língua Portuguesa, é quando se apontam possíveis erros gramaticais nas letras de canções famosas. A palavra  puristas está entre aspas porque o termo é frequentemente usado quando se quer criticar quem preza talvez um pouco demais pelo uso correto da Língua Portuguesa nas letras das canções. Puristas costumam receber junto o adjetivo de elitistas.

Então aqui fala um “purista elitista”.

Só que não! 

Não engulo a desculpa que se usa para perdoar erros gramaticais em canções atribuindo-os à “Licença Poética”. Curiosamente, esse perdão só é concedido se o artista for querido do mainstream e incensado pela crítica. Se for do pagode ou do arrocha não recebe a mesma dádiva. 

Deixemos claro: Licença Poética é a liberdade legítima de um autor em fugir de normas gramaticais se isso visa à comunicação da expressão artística e à originalidade em busca do maior impacto da mensagem por meio de subtextos, regionalismos, neologismos e até metalinguagem. Quando tais “erros” são propositais e o recurso é fruto de ousadia e criatividade, acho perfeito!

Aqui estão vários exemplos

ACIMA DO SOL - SKANK 

Canção com rica construção melódica e belas imagens na letra, mas com erro já no primeiro verso: “Assim ela já vai / Achar o cara que lhe queira/ Como você não quis fazer.

A música é dirigida a alguém na segunda pessoa: Você. O verso correto não é “Achar o cara que lhe queira” mas “Achar o cara que A queira”, uma vez que o querer não é dirigido a Você mas a Ela. Ela não vai achar um cara que queira você (lhe) mas que queira ela (a).

Mais adiante, há erro no uso do pronome te (Eu não posso te ajudar/Esse caminho não há outro). Toda a letra é dirigida a segunda pessoa VOCÊ e não a TU. A construção correta seria: Eu não posso LHE ajudar/Esse caminho não há outro.

Veja que o autor usa o pronome LHE no 1º verso quando não é o correto e não o usa no 3º quando seria o adequado 

FORMATO MÍNIMO- SKANK

Essa canção tem estrutura que imita Construção de Chico Buarque, com quase todos os versos terminando em proparoxítonas (última, único, tímido, máquina, mágico, lágrima, sábado, príncipe....). 

Aqui a música vai bem no uso das proparoxítonas: súbito, ótima, próxima, óculos, vírgulas, ácido, máximo.....até derrapar, no que se chama "silabada", justamente no último verso em que usa uma palavra que muitos pronunciam errado como proparoxítona, mas é na verdade uma paroxítona: rubrica. Da triste solidão, a rubrica”,  quebrando a magia da canção e soando como uma falha lamentável.

METAMORFOSE AMBULANTE – RAUL SEIXAS

Outra canção que tem um erro gramatica já no primeiro verso (Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo). Como todos sabemos, a regência do verbo preferir não permite DO QUE. Então o correto seria: Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante/ A ter aquela velha opinião formada sobre tudo). Adiante falo sobre a genialidade de Caetano Veloso, compositor também baiano como Raul, para driblar um problema na  métrica da letra por correção gramatical.

EU NASCI HÁ DEZ MIL ANOS ATRÁS- RAUL SEIXAS

Outra canção de Raul Seixas com erro gramatical. Independentemente de ser uma belíssima música, o erro começa já no próprio título e se repete no refrão. O certo seria EU NASCI DEZ MIL ANOS ATRÁS ou EU NASCI HÁ DEZ MIL ANOS. Gramaticalmente, não é aceitável, a construção em que se usa HÁ e ATRÁS na mesma frase. Uma solução para uma possível falha na métrica está em função do talento de um artista.

POEMA - CAZUZA

O mesmo erro que Raul Seixas comete, Cazuza replica na letra da canção interpretada maravilhosamente por Ney Matogrosso que apesar de belas aliterações como (Eu hoje tive um pesadelo/E levantei atento, a tempo), tem um erro no último verso (Pela beleza do que aconteceu há minutos atrás). Não faz sentindo usar a desculpa de licença poética para justificar o erro pois a frase não perderia a métrica se fosse usada a forma gramaticalmente correta como seria em (Pela beleza do que aconteceu minutos atrás).

HINO DO SENHOR DO BONFIM

Pessoas de fora da Bahia podem não dar a mesma importância ao Hino do Bonfim, mas ele é bastante famoso e muito caro aos baianos. Mas há nele um erro gramatical que poucos notam. Na letra, o Senhor do Bonfim é tratado na 2ª pessoa do singular por toda o hino (Glória a Ti neste dia de glória ou Glória a Ti nessa altura sagrada ou Aos Teus pés, que nos deste o direito).

Como todo o tratamento é na 2ª pessoa do singular, que razão justifica o verso do refrão (Dai-nos a graça divina)? Aqui o imperativo muda para a 2ª pessoa do plural vós. Não é certo usar DAI-NO a graça divina, mas sim DÁ-NOS a graça divina. O uso correto do imperativo não alteraria a métrica. É erro mesmo e não licença poética.

EU TE DEVORO - DJAVAN

Aqui o caso é mais interessante porque a inspiração de Djavan foi uma entrevista em que Caetano Veloso diz que “Devoraria Leonardo DiCaprio” aludindo aos modernistas brasileiros e ao movimento antropofágico que simbolicamente devorava influências estrangeiras para criar algo nacional.

O verso em questão diz: “Noutro plano, te devoraria tal Caetano/A Leonardo DiCaprio”

Devorar é verbo transitivo direto e sua regência não pede a preposição A, exigência de verbos transitivos indiretos.

Ouvi muitos comentários alegando licença poética de Djavan porque ele queria facilitar a compreensão já que o uso da forma correta que seria “Noutro plano, te devoraria tal Caetano,/ Leonardo DiCaprio” geraria confusão. Ressalto a elegante elipse do verso quando ele omite a repetição do verbo devorar mas isso não redime o erro já que o verbo devorar em qualquer contexto, não perde sua função de verbo transitivo direto e não aceita a preposição A.

Se Djavan não pode ser acusado de algo é de facilitar a compreensão do ouvinte. Ele é famoso pelas letras aparentemente sem sentido. Então vamos ao seguinte exemplo, se em vez do verbo devorar usássemos um verbo transitivo indireto como obedecer: A frase seria (te OBEDECERIA tal Caetano/ A Leonardo DiCaprio) Sentiu? Tudo é a regência correto do verbo esteja ele ou não em elipse.

DOMINGO- TITÃS

Essa música tem um verso com três erros (E antes que eu esqueça aonde estou/Antes que eu esqueça aonde estou/Aonde estou com a cabeça?). O uso do advérbio Aonde só é aceitável com verbos que indicam movimento. Nos demais verbos, o adverbio é Onde. Nesse verso, o verbo é ESTOU então o advérbio não pode ser AONDE.


EXEMPLOS OPOSTOS


NEGUINHO-CAETANO VELOSO

Aqui, exemplos de músicas em que os erros gramaticas são aceitáveis já que estão a favor da criatividade e do contexto como na canção NEGUINHO, de Caetano Veloso e imortalizada por  Gal Costa no álbum Recanto (Neguinho quer justiça e harmonia para se possível todo mundo/ Mas a neurose de neguinho vem e estraga tudo/ Nego abre banco, igreja, sauna, escola/ Nego abre os braços e a voz/ Talvez seja sua vez: Neguinho que eu falo é nós).

Obviamente, o último verso tem um erro de concordância. Em teoria o certo seria: (Neguinho que eu falo SOMOS nós). Mas o gênio de Caetano está presente no uso da dissonância de “É NÓS” em favor da expressividade do regionalismo.

Num dos versos seguintes ele habilmente constrói uma bela sonoridade no refrão rico em aliteração (Rei, rei, neguinho rei/ Sim, sei: neguinho/ Rei, rei, neguinho é rei/ Sei não, neguinho). Só esse verso  já mereceria um ensaio.

Como há quem diga, em favor da licença poética, que em alguns casos o erro se justificaria em respeito à métrica da canção, o próprio Caetano aqui diz, lindamente, fugindo com habilidade da perda da métrica e criando uma ilusão maravilhosa no verso (Se o mar do Rio tá gelado/ Só se vê neguinho entrar e sair correndo azul/ Já na Bahia nego fica den'dum útero).

Que coisa mais maravilhosa esse verso. Den’dum em vez de dentro de um que, teoricamente, seria o correto. O verso ainda acrescenta a imagem do mar da Bahia quente e acolhedor como um útero, em contraposição ao mar do Rio, gelado, que expulsa pessoas correndo e azuladas). 

Então não me venham dizer que a licença poética é justificável por preguiça de encontrar uma forma mais criativa, rica e sonora. Caetano já mostrou como se faz!

INÚTIL – ULTRAJE A RIGOR

Essa é uma música que faz uso perfeito da licença poética com metalinguagem no verso do refrão (A gente somos inútil) que segue a lógica interna de (A gente não sabemos escolher presidente/A gente não sabemos tomar conta da gente/A gente não sabemos nem escovar os dente/ Tem gringo pensando que nóis é indigente).

Faz total sentido os erros gramaticais, pois eles estão em função do discurso que o autor pretende fazer em defesa de uma ideia. Não teria nenhum cabimento o uso da gramática normativa nesse caso, assim como nos casos abaixo. 

SAUDOSA MALOCA E SAMBA DO ARNESTO– ADONIRAN BARBOSA

A maravilhosa canção SAUDOSA MALOCA tem vários conflitos gramaticais adequados tanto ao conflito de classes retratado na letra como ao linguajar de paulistanos descendentes de italianos como: “Mas um dia nem quero me lembrar/ Veio os homens com as ferramentas/ O dono mando derrubar/ Peguemo' toda' nossas coisas/E fumos pro meio da rua/ Apreciar a demolição.

O mesmo acontece em SAMBA DO ARNESTO que já no seu primeiro verso trás essa belíssima pérola: O Arnesto nos convidou pra um samba, ele mora no Brás/Nós fumos, não encontremos ninguém/Nós voltermos com uma baita de uma reiva/ Da outra vez, nós num vai mais/ Nós não semos tatu!”

Essa icônica música de Cazuza famosa na voz de Cássia Eller tem alguns erros gramaticais bastante perdoáveis diante do contexto de um linguajar descomprometido e rock and roll. No primeiro verso, vemos (Quem sabe eu ainda sou uma garotinha). O correto, gramaticalmente, já que quem sabe indica incerteza, seria: Quem sabe eu ainda SEJA uma garotinha.

Essa construção poderia ser feita sem ferir a  métrica, mas como Cazuza repete o uso do "quem sabe" adiante, nesse contexto, não ficaria bom a correção nos versos (Quem sabe o príncipe virou um chato) que teria que ser corrigido para (Quem sabe o príncipe TENHA VIRADO um chato) e (Quem sabe a vida é não sonhar) que teria que virar (Quem sabe a vida SEJA não sonhar). Então aqui, Cazuza fez a melhor escolha possível.

VOCÊ, O AMOR E EU- CARLINHOS BROWN

As belas imagens dessa canção de Brown que termina com a frase Oromim má, obrigado por você me amar (referencia à canção iorubá que diz: Oro mi má / Oro mi maió / Oro mi maió / Yabado oyeyeo." "Deus é o mar. Deus é o maior!".

Na canção de Brown o refrão diz: Haverão-verão-verão verões/ Haverão-verão-verão verão nós/ Haverão-verão-verão verões/ Haverão-verão-verão verão. 

Há uma rica aliteração na mistura do verbo haver com o substantivo verão. Brown é mestre nessas misturas sonoras e apesar de ter quem aponte erro gramatical na frase Haverão verões já que o verbo haver não flexiona nesse caso, note que Brown brinca com o som e nunca diz Haverão verões, que poderia soar como erro, mas Haverão verão. E ainda introduz habilidosamente o verbo ver (verão verões). Então, temos o verbo haver, o verbo ver e o substantivo verão brincando sonoramente. Gênio!

GERAÇÃO COCA COLA -LEGIÃO URBANA

Tenho dúvida sobre a letra dessa canção ícone do Legião Urbana pois não dá pra saber se é um erro de paralelismo ou uma sacada do autor no verso: “Vamos fazer nosso dever de casa/E aí então vocês vão ver/Suas crianças derrubando reis/Fazer comédia no cinema com as suas leis)

Explico. Há uma contraposição em toda e letra entre NÓS e VOCÊS (Quando nascemos fomos programados X A receber o que vocês nos empurraram com os enlatados) (Vamos cuspir de volta o lixo em cima de vocês) .

Então no verso (vocês vão ver/Suas crianças derrubando reis/Fazer comédia no cinema com as suas leis) o verbo FAZER tem como sujeito NÓS ou SUAS CRIANÇAS? Quem vai fazer comédia no cinema com as suas leis? 

Se o sujeito somos NÓS, o verbo está correto (Nós vamos fazer comédia com as suas leis). Mas se o sujeito for SUAS CRIANÇAS, sujeito do verso anterior (Suas crianças derrubando reis), o verbo do verso seguinte iria para o gerúndio (fazendo comédia) e não no infinitivo (fazer comédia) pela regra do paralelismo.

Estou inclinado a pensar que Renato Russo fez uma jogada inteligente, pois se fosse usar o paralelismo, quebraria a métrica. Foi uma bela saída ainda que um pouco espertinha.