8.10.19

CORINGA E BACURAU


“Sangue sobre o asfalto e sob o sol do sertão”

             
Se algo liga a poeira do sertão de Bacurau ao asfalto da Gothan City do Coringa são a vingança como ética e a sujeira como estética. Mas há tantas camadas de interpretação das duas películas que é pretensioso avaliar os aspectos que elas têm em comum. Já peço desculpas pela veleidade.

Os rastros de sangue do massacre final de Bacurau e as pegadas sanguinolentas do Coringa no manicômio Arkham marcam uma catarse histérico-coletiva e são os epílogos dos dois filmes. O primeiro, ganhador do Prêmio do Júri do Festival de Cannes; o segundo, vencedor do Leão de Ouro do Festival de Veneza.

Há a influência inegável de cineastas geniais como Quentin Tarantino e Robert Rodriguez sobre Kleber Mendonça Filho e Juliano Dorneles nos planos de Bacurau, nos seus diálogos e na própria ausência de um núcleo dramático definido.

E se Bacurau é um duplo twist carpado na carreira dos realizadores dos inspirados Aquarius e O Som ao Redor, o mesmo se pode dizer da virada radical de estilo na direção de Todd Phillips, que antes de Coringa foi responsável pelos três Se Beber Não Case.
               
Assim como encontram-se registros tarantinescos em Bacurau, Coringa traz ecos de Martin Scorsese a Gus van Sant, os três diretores sintomaticamente ganhadores da Palma de Ouro: Tarantino por Pulp Ficcion (1994), Scorcece por Taxi Driver (1976) e Gus van Sant por Elephant (2003). Estamos todos imersos no universo da extrema violência.

Distópicos ambos, Bacurau se passa num nordeste de futuro indefinido enquanto Coringa é retratado num passado recente igualmente brutal. Não há qualquer intenção de pegar leve. Mesmo com uma paleta de cores pálida e lavada em ambos, o sangue será sempre vermelho vivo, seja derramado sobre o asfalto sujo de Gotham City, seja sob a canícula do sertão.

Está na moda falar em viés ideológico. O público nordestino que majoritariamente votou contra Bolsonaro é representado em Bacurau como vítima que se redime no final catártico, assim como em Coringa, os brancos pobres (os white trash*) resolvem a fatura na base do quebra-quebra indiscriminado contra “tudo que está aí”.

Apesar de se afastar um bocado da mitologia estrita do Homem Morcego, o assassinato de Thomas Wayne, consequência da catarse coletiva, gerará um Bruce Wayne/Batman também revoltado que, em uma roda do destino, levará os bandidos como o próprio Coringa para trás das grades. A violência produzindo mais violência.

Impossível não notar que a súbita aparição de um revólver nas mãos do palhaço Arthur Fleck é o estopim da selvageria, assim como a profusão de armas de fogo em Bacurau conduz ao morticínio. Quem se lembrar dos massacres em escolas, boates e igrejas nos Estados Unidos não estará longe de encontrar em comum uma revolta difusa de grupos que se sentem preteridos pela sociedade e que, como em Coringa, geram bandos de ressentidos (os mass shooters) que se vingam na base da bala e da carnificina indiscriminada. É gente que vota em Trump e em Bolsonaro, não?

Seria simplificar demais as coisas ver apenas por essa ótica e um dos méritos do filme de Todd Phillips é mostrar que a violência não parte apenas dos endinheirados e ricos, como os executivos que espancam o palhaço no metrô. Antes disso, o mesmo Arthur Fleck já levara uma sova de moleques delinquentes num beco escuro onde explode a violência.

Aqui se separam Bacurau e Coringa. Enquanto o primeiro deixa um travo amargo de chancela da brutalidade da vingança, o segundo, apesar de certamente estetizar o caos, nega a validação aos atos criminosos dos revoltados, até porque sem direção ou objetivo senão o próprio caos.

O acachapante Coringa me acompanhou por dias. Já sobre o sertão de um raso Bacurau, prefiro continuar com o de Guimarães Rosa: “O sertão é uma espera enorme”.

*White trash (lixo branco) termo em inglês usado para pessoas brancas de baixo estatuto social, pouca educação formal e dependente de serviço social. Grupo que é maioria em todas as classes sociais nos Estados Unidos (Fonte: Wikipedia)

2 comments:

Unknown said...

Excelente! Note que embora não tenha assistido Bacurau deu perfeitamente para captar a essência do texto, o paralelo entre um filme e outro. Assisti Coringa e adorei. Amei o q escreveste sobre ele 10!

Unknown said...

Fui eu que escrevi texto acima! Rsrs