6.7.18

O COMPLEXO DE PORTNOY E O TEATRO DE SABBATH



Os dois títulos acima fazem parte das 31 obras geniais do polêmico norte americano Phillip Roth, morto em maio último.

Roth foi um dos escritores mais prestigiados no mundo, o único americano em vida a ter suas obras completas publicadas pela Library of America, instituição que objetiva preservar a herança cultural americana. Oito dos seus livros foram adaptados para o cinema e o número de prêmios é respeitável, só tendo lhe faltado o Nobel, o que sempre motivou críticas unânimes à academia sueca.

O Complexo de Portnoy é a terceira obra de Roth e quando do seu lançamento, em 1969, foi uma bomba em termos de repercussão e polêmica. O livro levou o autor ao patamar dos grandes escritores e deixou-o milionário. Em 1972 o livro foi adaptado para o cinema

Toda a narrativa do livro é uma grande sessão de terapia do judeu americano Alexander Portnoy, — todos os protagonistas dos livros de Roth são judeus, como ele, espécies de alteregos — e aqui o narrador expõe ao analista suas pulsões sexuais incontroláveis e as obsessões com as quais não sabe lidar e que tenta, sem sucesso, reprimir.

Ao mesmo tempo o livro é obsceno e divertido e Portnoy tornou-se símbolo de uma cultura, um feito e tanto para um autor que ainda escreveria, com grande sucesso, dezenas de livros depois deste.

Quase meio século após seu lançamento, O Complexo de Portnoy mantém sua força, mesmo não chocando tanto como nos anos 70 e 80, quando a contracultura e a luta pelos direitos civis eram mais vibrantes.

Portnoy, o atormentado pelo seu forte Complexo de Édipo e culpa, não terá facilidade para se livrar das suas neuroses e da fortíssima influência da mãe judia — mãe judia é um clássico: "Ela estava tão profundamente entranhada em minha consciência que, no primeiro ano na escola, eu tinha a impressão de que todas as professoras eram minha mãe disfarçada. Assim que tocava o sinal ao final das aulas, eu voltava correndo para casa, na esperança de chegar ao apartamento em que morávamos antes que ela tivesse tempo de se transformar. Invariavelmente ela já estava na cozinha, preparando leite com biscoitos para mim. No entanto, em vez de me livrar dessas ilusões, essa proeza só fazia crescer minha admiração pelos poderes dela”.

Com linguagem vulgar e narrativa sem cronologia, quase fluxo de pensamento, já que se trata de uma grande sessão catártica com um terapeuta, Roth não economiza nas tintas e percebemos um Portnoy repleto de autoironia, inteligência e sagacidade. Em certas passagens, como já foi relatado por vários leitores, fui tomado por gargalhadas. Despudorado e engraçado, esse livro conquista. Não pede licença nem perdoa.

Leia-o com deleite e sem culpa. Deixe toda culpa para o pobre Portnoy, pois ele já a tem de sobra.

 


O Teatro de Sabbath, de 1995, era o livro favorito do próprio Phillip Roth, entre todas as suas obras. Mais polêmico ainda do que O Complexo de Portnoy, a obra tornou-se de imediato um fenômeno em termos de adoração ou aversão. As feministas mais ferrenhas chegaram a colocá-lo no índice dos livros mais odiosos e seu personagem principal, o cínico e imoral  Mickey Sabbath, considerado a epítome do porco chauvinista.

O judeu quase septuagenário Mickey Sabbath é um artista de fantoches aposentado apresentado ao leitor em plena crise existencial e decadência física e moral. Acompanhamos seu declínio graças ao talento para criar conflitos e buscar situações limites que o levem cada vez mais para baixo. Nesse caminho, ele vê seus pouquíssimos amigos morrendo e em alguns momentos temos a impressão de que este homem é um bólido desgovernado que só é capaz de sentir e causar amargor.

Ledo engano. Sabbath, contra todo seu instinto canalha, mantém forte melancolia com algumas pessoas: o irmão mais velho, herói aviador abatido pelos japoneses na 2ª Guerra; a mãe, força da natureza e esteio da família, em demência senil após não superar a morte do filho. Após a morte da mãe, o pai de Sabbath segue o mesmo destino.

Sozinho, esse homem faz sua jornada rumo a um prometido, mas improvável suicídio. No caminho, conquistando prisão por indecência, demissão da Universidade por assédio sexual a uma aluna graças à férrea recusa em integrar uma sociedade onde há convenções e regras, Sabbath é incoercível seja pela lei, pelos costumes, pela moral ou pelo remorso. Trai, rouba, mente, subjuga, corrompe e estraga tudo à sua volta.

Mesmo atormentado pelos fantasmas do passado — em certos trechos há vários diálogos com a mãe morta (uma imagem extremamente judaica) — uma metáfora da sua solidão, ele vive cercado de mulheres com quem divide a sexualidade desregrada.

Mas Sabbath não é um personagem óbvio, um vilão raso, pois sob um olhar mais cuidadoso do leitor, exibe talvez um envergonhado verniz de ternura. Isso fica evidente na sua busca desesperada por um sentido final para sua vida após a morte de todos os seus parentes e mesmo após o câncer levar a sua amante, alguém tão importante para ele quanto foi a própria mãe.

Após Sabbath perder tudo e todos, já totalmente à deriva, Phillip Roth, como que emulando Machado de Assis ao defender seu Bentinho em Dom Casmurro, diz diretamente para o seu leitor: “Não seja tão duro com Sabbath, Leitor”. E defende seu protagonista a seguir, refletindo sobre qual homem resistiria a uma oferta sedutora, repetida várias vezes por uma moça com um terço da sua idade: “Nem o turbulento debate interior, nem a superabundância de autossubversão, nem os anos de leitura sobre a morte, nem a amarga experiência da aflição, da perda, da injustiça e da dor tornam mais fácil fazer bom uso dos seus miolos quando confrontado com uma oferta como aquela”.

Para o leitor brasileiro, sobretudo baiano, o livro reserva alguns momentos mais divertidos quando o protagonista relembra seu período de marinheiro, onde só lhe importava chegar a um porto qualquer para se deleitar nos prostíbulos do lugar. Sobre Salvador, Sabbath afirma que havia uma igreja e um bordel para cada dia do ano: “Lugar propício à imaginação, a Bahia” e recomenda a um dos poucos amigos deixar sua jovem filha virgem vir para cá: “Ela aprenderia muito mais sobre o texto criativo em um mês na Bahia do que em quatro anos na Universidade Brown”. E ao revirar as gavetas da moça e só encontrar objetos que denotam seu recato, o bruto sentencia sobre ela: “Você não sobreviveria cinco minutos na Bahia”.


Tudo bem que só li "O Teatro de Sabbath" este mês, mas estou sobrevivendo na Bahia há 55 anos. Não podem me acusar de recato!

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