19.7.09

Deus uma Biografia - 2ª parte


Conforme disse em artigo anterior sobre Deus uma Biografia, livro de Jack Miles, considero uma grande sacada da obra a análise da Bíblia como uma obra literária e de Deus como seu personagem principal. Para o autor, a personalidade de Deus vai sendo descortinada nos diversos livros do Velho Testamento, com todas as suas complexidades, contradições e emoções conflitantes, como solidão, orgulho, vaidade, arrependimento e sentimentos de vingança e de ira. A obra tem um gancho brilhante quando vê o personagem Deus em processo de constante auto-conhecimento, aprendendo com sua própria criação, definindo, a partir dos atos humanos, seus próprios conceitos morais.

No Gênesis, Deus ainda não havia proibido nem assassinato nem fraticídio quando se defrontou com o assassinato de Abel. Caim não fora proibido de matar, tal regra moral ainda não existia, e a reação de Deus é de surpresa. Ninguém ainda matara ninguém e Deus não sabia como resolver esse dilema. Como ele não tinha outros argumentos, saiu-se com essas palavras: "A voz do sangue do teu irmão clama da terra por mim". Tal frase revela muito mais uma agitação pela necessidade de justificar uma punição do que uma condenação moral. Afinal, Caim não poderia ser condenado por fraticídio, pois não havia lei sobre o tema. Deus só descobre seu papel de regulador dos assuntos humanos quando se vê obrigado a regulá-los. E ele percebe que o homem é cheio de surpresas que aparentemente ele não previra. Isso, ao contrário de fasciná-lo, o aborrece e intimida.

Como disse no artigo anterior, quando a serpente provou que Deus criara, sob falso argumento, uma interdição para Adão e Eva, sobrou castigo para todo lado. Já quando Caim provou que Deus não criara normas claras de conduta contra o assassinato, o Criador deu um jeito de condenar também Caim, a quem, de fato, jamais fora determinado o papel de guardião do irmão.

“'Stamos em pleno mar e tanto horror perante os céus”, diria Castro Alves. Estamos no dilúvio bíblico e Deus anteciparia a promessa de Luís XV, "Après moi, le deluge”. Como uma criança contrariada, dona da bola, estraga — ou inunda —, o jogo. Vimos a face do Deus criador e agora vemos o outro lado da moeda: o destruidor. Quando ele proíbe o homem de derramar o sangue do outro homem, é porque reivindica este atributo unicamente para si. O homem começa a ver que Deus é capaz de mentir, romper promessas, fazer ameaças e deixar um rastro de destruição. Ele não é somente imprevisível, como diz Jack Miles, mas é perigosamente imprevisível.

Jack Miles ensina: "Em qualquer relato literário um personagem se torna interessante quanto mais sabemos como o seu passado o levou até aquele ponto. A experiência molda o caráter e este determina a ação. Todas as experiências novas de um personagem desenvolvem seu caráter, mas ele já carrega uma bagagem prévia. Deus, como personagem sem passado, sem história para contar, não é literariamente interessante nem coerente. Podemos vê-lo como um recém-nascido".


Muitas coisas escritas no Velho Testamento a respeito de Deus são raramente pregadas em um púlpito, pois, examinadas de perto, seriam um escândalo. Entretanto, mesmo que somente parte da Bíblia seja ativamente pregada, nenhuma de suas partes é, pelos fiéis, contestada.


Durante longa parte do Velho Testamento, Deus depende do homem até para o funcionamento das suas próprias intenções. Se o homem nada desejasse, como Deus poderia descobrir o que quer? Ele prometera ao homem a reprodução ilimitada, mas arrependeu-se disso e inundou toda a terra, matando praticamente todos os animais e plantas e os descendentes do casal original. Com Abraão ele promete uma fertilidade mais restrita e a simbologia da circuncisão é muito mais rica e cheia de significados do que meramente um corte no falo. Deus retira para sim uma parte da potência do homem.

Para o autor, desde o Gênesis até a história de José, a Bíblia é uma narrativa brutal, obcecada com esterilidade, concepção, nascimento, masturbação, sedução, estupro, uroxídio, fratricídio, infanticídio e genocídio. A narrativa se preocupa somente com a reprodução, excluindo quase todo o resto da experiência humana.

Jack Miles questiona porque razão o monoteísmo ético é considerado a grande contribuição judaica para a civilização ocidental. Qual a grande vantagem do monoteísmo em relação ao politeísmo? Considerada uma conquista cultural, não seria na verdade uma vaidade etnocêntrica? Desse modo, deveríamos julgar que somos mais éticos do que os indus por conta do nosso Deus único. Em termos de mortes nada éticas causadas em nome desse único deus em uma história de dois milênios, não ficamos devendo nada aos “não-éticos” politeístas.

Na parte do Velho Testamento em que Moisés conduz os hebreus à Terra Prometida, Deus comanda uma limpeza étnica sem precedentes, agindo de modo mais cruel do que o próprio faraó fizera com os israelitas durante o período de escravidão no Egito. O genocídio dos judeus contra os povos cananeus é um festim de morticínio desumano. Deus superou o faraó que permitia aos judeus professassem sua fé no Egito. Deus não deu aos cananeus a chance sequer de se converterem ou coexistirem com os israelitas. Para eles era a morte ou a morte!

É a partir desses festins de holocausto dos mais de 30 povos cananeus pelos hebreus que Deus passa a exigir rituais de sacrifícios mais elaborados. O termo sacrifício deriva dos radicais ‘sacro' e ‘oficio', (oficio sagrado). Obviamente, não foram somente os hebreus que realizavam essas matanças, pois vários povos acreditavam que isso agradava aos deuses, mas no Velho Testamento essa história começou com o ato de Abel de oferecer esse tipo de presente sangrento a Deus. Até então, Deus não havia dado qualquer instrução em relação a esses rituais. Abel, na realidade, adulou Deus, que passou a gostar dessa bajulação e passou mesmo a exigi-la. Mais uma vez, vemos que Deus age (e reage) de acordo com os atos dos homens.

E começaram as prescrições desde o número exato de bois a serem mortos, como deviam ser sangrados, como recolher este sangue e até mesmo quanto desse sangue devia ser esfregado nas paredes do templo e derramado nos altares. Uma sanguinolêcia sem fim. E por falar em matança, o próprio Moisés, após receber as tábuas dos mandamentos e encontrar os hebreus adorando um bezerro, ordenou que os soldados matassem na hora 3 mil homens do seu próprio povo. Quando Moisés implora a Deus perdão pela idolatria do seu povo, o Senhor fica ainda mais indignado e manda uma peste que completa a miséria enchendo um campo com 24 mil novos cadáveres.

Não é conveniente que essa parte, e tantas outras pouco éticas, sejam omitidas em todos os filmes e relatos edificantes desta história da origem do monoteísmo "ético"?

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