15.7.07

Uma linda casa debruçadas sobre o Egeu


Há mais de dez anos trabalhei em uma Vara Federal. Digitava audiências e traduzia depoimentos de réus que falavam inglês. Um dia ela foi parar lá: alta, olhos verdes. Presa. Cinco quilos de cocaína na bagagem. Ela jurou que a droga não era sua. Uma grega.

Falava inglês, grego e africâner. Traficante internacional? Ela jurou que a droga não era sua. Fui chamado para digitar seu depoimento e traduzi-lo. Uma audiência estranha: o juiz fazia as perguntas, eu traduzia para ela, ela respondia, eu traduzia para o juiz que me mandava digitar o que eu acabara de traduzir.

Antes de a grega chegar eu já estava indócil, ansioso por vê-la. Na foto xérox do passaporte anexado ao processo lembrava uma femme fatale do cinema noir: misteriosa e loura. Artificial!, dizia, com desdém, minha colega Altenir. Não me importava. Ela era grega e os gregos estarão sempre no panteão da minha admiração. Li seu depoimento na Policia Federal. Ali ela já jurava: a droga não era sua.

Chegou algemada e com a roupa e o cheiro do cárcere. Sentou-se à minha frente. Fiz as perguntas costumeiras: nome, estado civil...Seu inglês tinha um sotaque lindo...As gregas seriam sempre assim? Helena, Penélope, Antígona? Até as traficantes?

No meio do seu depoimento o juiz saiu rapidamente para atender uma ligação. Aproveitei para perguntar-lhe: “De que cidade grega você é?”

Surpresa pelo meu interesse, ela respondeu: “Aegina”.

Repeti como autômato: “Aegina”....Perguntei ainda: “Sua família mora lá?”

Ela respondeu com uma tristeza infinita, mas com um brilho novo no olhar. Ele, o brilho, não estava lá antes. Surgiu quando ela disse, quase gaguejante: “Sim. Meu pai tem uma linda casa debruçada sobre o Egeu”.

Não lembro de mais nada daquele dia. Somente a imagem fixa de uma linda casa sobre o Egeu. Ninguém que possui uma casa assim, debruçada, lindamente sobre o Egeu, pode ter uma filha traficante. Ela jurou que a droga não era sua, mas o juiz discordou e condenou-a a quatro anos e meio de cadeia.

Ainda tive a oportunidade de vê-la uma segunda vez antes da sentença quando traduzi o depoimento de uma testemunha, seu namorado sul-africano.

Dois anos se passaram e eu pouco me lembrava dela. Sabia que o seu processo era complicado, tinha dupla cidadania e tentavam deportá-la ou expulsá-la do Brasil.

Até que em 1995 ganhei de presente uma viagem para a Europa. A viagem, além da França, Inglaterra, Itália, Espanha, Alemanha, Suíça, Bélgica e Holanda incluía a Grécia. E além de Atenas, haveria um passeio pelas ilhas gregas. E entre as ilhas que eu visitaria estava exatamente a ilha de Aegina. Lembrei-me de uma linda casa debruçada sobre o Egeu. Eu precisava encontrar novamente a grega. Talvez ela ainda estivesse presa. Quem sabe eu não encontraria o seu pai?

Usando os conhecimentos de um estagiário que trabalhava na mesma Vara, durante uma manhã e fora do nosso horário de expediente, fomos à penitenciária feminina. Lá eu perguntei por ela. Ainda estaria ali? Teria sido deportada?

Continuava presa. Chamaram-na. Fiquei ansioso. Afinal, passaram-se mais de dois anos. Quando caminhou em minha direção quase não a reconheci. Emagrecera. Seus cabelos tinham agora fios brancos e ela estava pálida. Mas ela me reconheceu imediatamente e abriu um enorme sorriso. Abraçou-me. Para provar que se lembrava de mim disse corretamente o meu nome.

Não recebia visitas há dois anos. Contei que iria para a Grécia. Para Aegina. Seus olhos brilharam.
“Você vai para minha cidade. Para minha ilha?”

Ofereci-me para levar um presente para o seu pai, afinal ele tinha uma linda casa debruçada sobre o Egeu não tinha?

Ela sorriu e perguntou: “Quando você chegará lá?”

Respondi: “20 de setembro”.

Ela não acreditou. Era o dia do seu aniversário.

Ali estava eu, na penitenciária feminina, sendo abraçado por uma traficante grega que tinha os olhos molhados e um enorme sorriso no rosto. Uma virginiana que aniversariava no dia em que eu chegaria à sua ilha do mar Egeu no dia 20 de setembro de 1995

“Que coincidência”, disse eu e me ofereci para tirarmos uma foto que eu levaria para o seu pai. Havia levado a minha velha Yashica pré-histórica. Ainda nem se falava em máquina digital.

Ela agradeceu, comovida, e contou que o pai não sabia da sua prisão. Não lhe escrevia para que ele não descobrisse a origem das cartas: a cadeia. Nada sabia do pai nesses anos.

Determinado a encontrar aquele homem, dois meses depois pousei em Atenas. Jamais conseguirei descrever a sensação única que foi estar na cidade que me encantava desde garoto. Se havia um lugar no mundo que sempre sonhei conhecer desde pré- adolescente, não era a Disney, mas Atenas. Nunca fui um menino normal mesmo.

Foram dias inesquecíveis com minha melhor amiga, passeios pela cidade histórica, edifícios de mármores milenares, museus, noites com sol às 9 da noite, jantares em restaurantes ao ar livre com música grega ao vivo em lindas praças iluminadas, repletas de árvores frutíferas, figueiras, oliveiras e limoeiros. Tardes de passeios pela Acrópole, Teatro de Herodes, Tempo das Cariátides, Areópago e o Partenon. Senti-me pisando onde Sócrates, Platão e Aristóteles haviam pisado.

Terceiro dia: viajamos para o Peloponeso, passando por Corinto e sobre o famoso canal que liga o Mar Jônico ao Egeu. Seguimos para Epidavros onde conferimos a lendária acústica do seu famoso teatro construído há séculos. Continuamos o passeio por Náuplias, Mégara, Argos e Micenas, onde conhecemos, nas montanhas, as ruínas do palácio e da tumba de Agamenon. Atravessamos a famosa e milenar porta dos dois leões.Um privilégio.

No penúltimo dia da viagem pela Grécia seguimos até o porto de Pireu e embarcamos em um cruzeiro pelas ilhas de Hydra, Poros e Aegina. Finalmente eu iria tentar encontrar o pai da minha “amiga” traficante.

Hidra e Poros são ilhas paradisíacas, repletas de templos e história, tudo muito bem contado pelo nosso guia. Seus portos eram fervilhantes de vida, cor e alegria com grandes navios transatlânticos ao lado de pequenos barcos de pesca dos marinheiros locais. Então chegamos a

Aegina sob um lindo sol de outono. O mar Egeu inebriava os olhos com seus matizes de azul indescritíveis. Muito mais belo do que eu jamais imaginara. Ficaríamos ali apenas três horas. No programa, um almoço em um hotel, mas minha amiga se enturmou com um grupo de brasileiros e aceitou que eu fizesse outros planos.

No píer de Aegina procurei um morador que falasse inglês e indaguei pelo nome do pai da grega. Após várias perguntas, indicaram-me o local. Não compreendi direito, mas arrisquei. Subi várias ladeiras e me perdi seguidas vezes, indo parar em vielas e becos sem saída. As crianças e velhas a quem eu fazia perguntas não me compreendiam. Todas as casas eram pintadas com o mesmo branco e as mesmas janelas azuis. As ruas estreitas serpenteavam, sempre subindo e os números das casas não obedeciam a qualquer lógica. Suando muito, faminto, sedento e vendo o mar se afastar cada vez mais, à medida que eu subia a montanha já estava pronto para desistir dessa aventura impossível.

Aegina, sob o sol de mais de 40 graus acabava comigo. Já passava há tempos do meio-dia. Com fome e sede, e nenhum dracma no bolso (em 95 ainda não existia o euro) para comprar uma coca cola eu imaginava a minha amiga já almoçada e tomando banho de mar na praia do hotel ou se afogando em daikiris, pelo que eu conhecia dela.

Em menos de uma hora meu barco partiria e ali estava eu, no alto de uma montanha, molhado de suor e faminto...

Ao sentar-me sob a única oliveira que encontrei numa pequena pracinha vi a casa que procurava. Era igual às demais, mas o número da porta batia. Dei um pulo e apertei a campainha. Demorou uma eternidade. Apertei de novo até que o velho apareceu à porta. Cabelos e bigodes brancos, olhos claros, camisa de manga comprida abotoada até o colarinho e boina marrom. Uma réplica de todos os velhos que eu vira desde que chegara a Aegina.

Educadamente, eu disse Parakaló, seguido do seu nome, como a filha dissera.

Ele respondeu: Kalispéra e abriu o portão

Foi quando me vi em um lindo pátio de uma casa exuberantemente arejada, com um pórtico de madeira branca coberto de trepadeiras e samambaias que se debruçava sobre um belíssimo mar Egeu de um azul turquesa que estava além da minha imaginação.

Ele e eu não falávamos uma única língua comum, mas nos entendemos com vários gestos e sorrisos. Ele compreendeu que eu conhecera sua filha no Brasil. Ofereceu-me deliciosos pistaches e azeitonas pretas, colhidos de árvores do seu jardim. Sentei-me sob a sombra formada pelo beiral do telhado e, com a fome que estava, devorei aquele prato. Ele, então, serviu-me ouzo, o vinho grego com gosto de anis e pães temperados com azeite de oliva, além de uma ótima salada de polvo que ele se gabou de ter pescado naquela manhã, pelo que entendi.

Eu estava muito emocionado. Tudo aquilo parecia irreal. Há quase três anos eu ouvira falar daquela linda casa num depoimento de uma traficante grega e agora ali estava eu, bebendo e comendo com o seu pai. E não podia contar que a filha estava presa. Mas podia registrar tudo aquilo em fotografias.

Ao me despedir do velho, recebi um beijo no rosto. Alguma coisa me dizia que ele sabia da verdade, mas teve a nobreza de não perguntar. Seu sorriso era idêntico ao que vi no rosto da sua filha, um mês depois, quando apareci novamente na penitenciária, levando as fotos tiradas naquela bela casa de Aegina.

Contei a ela do vinho, dos pistaches, do azul do mar...Seu olhar de gratidão encheu-me de profundo orgulho. Custou-me tão pouco e, no final, fui eu quem teve um dia e um almoço maravilhoso ao lado de um velho grego que nunca me vira na vida. Despedi-me da minha traficante grega sem lhe perguntei se a droga era realmente sua. Não importava, ela perdera aquele jogo e, afinal, já estava presa mesmo.

Jorge Luis Borges já dissera: “Há uma dignidade no fracasso que dificilmente encontramos na vitória”.

4 comments:

Pedro said...

Um grande amigo meu, Rafael Ianner, me mandou o link desse post e disse que certamente eu iria adorar. E foi o que aconteceu. Parabéns pela impecável escrita e profunda sensibilidade.

Forte abraço.

Unknown said...

Lu, adorei! Uma bela historia! Uma bela experiencia!

Anonymous said...

Já tinha amado este texto antes, mas relê-lo nesta madrugada chuvosa em Salvador, me trouxe um desejo profundo de estar em sua mala, maravilhoso Lú! Bjs.Conceiçao Moraes

Unknown said...

O Rafael foi quem me indicou também. Excelente conto.