21.6.20

Livros de Janeiro a Maio


Aqui estão os 22 livros lidos entre Janeiro e Maio deste ano
Estão na ordem em que aparecem na ilustração acima e na lista abaixo
No mesmo período, do ano passado, li 27 livros. Então, estou abaixo da média do mesmo período do ano passado.

1 - HOMEM COMUM – Este foi o quinto livro que li do escritor Phillip Roth após Adeus Columbus, Complexo de Portnoy, O Teatro de Sabbath e Humilhação. O prolífico autor de mais de 30 romances aqui conta uma história de perda e arrependimento do protagonista lembrando da sua infância despreocupada, as conquistas da idade adulta até a velhice quando seus amigos estão morrendo e ele se deteriorando fisicamente com filhos que o desprezam e três casamentos destruídos.

2 - A CONFRARIA DOS ESPADAS – Após ter lido o excepcional Agosto, vi uma lacuna na minha leitura de Rubem Fonseca. Decidi reiniciar por este livro de contos, gênero que era o ponto forte do autor, sem desmerecer seus ótimos romances. Mas, diferentemente de outros livros dele, este tem a marca do minimalismo e da concisão e não foi muito bem recebido pela crítica. Acho que não recomecei pelo melhor.

3 - BARTLEBY, O ESCREVENTE- O segundo livro que li de Herman Melville após vencer o calhamaço que foi Moby Dick. Trata-se de um quase conto e é mais leve e acessível, com humor, inclusive. A história de um advogado do século XIX que contrata um novo copista. E entra Bartleby em cena. O personagem é tão marcante que fascina até hoje leitores e críticos e filósofos contemporâneos como Gilles Deleuze e Jacques Derrida escreveram textos sobre ele.

4 - A LITERATURA COMO TURISMO – Antologia poética de João Cabral de Melo Neto organizada pela sua filha. São poemas feitos durante cinquenta anos como diplomata na Espanha, Inglaterra, Senegal, Equador e Honduras retratando a cultura e a paisagem de lugares que o marcaram, pincipalmente Sevilha a cidade mais cantada pelo poeta.

5 - SALEM –O segundo livro publicado por Stephen King, em 1975. É abertamente inspirado em Drácula de Bram Stoker e é ambientado na cidadezinha de Jerusalem's Lot, na Nova Inglaterra. Conta a história de três forasteiros: um escritor que viveu na cidade quando criança e quer acertar contas com o passado; um menino obcecado por monstros; e um homem misterioso que abre uma loja de antiguidades na cidade. Vários assassinatos medonhos passam a acontecer e um grupo de sobreviventes decide fugir mas precisa livrar a cidade de vampiros.

6 - 1.356 –O sexto livro de Bernard Cornwell que li após Stonehenge, Azincourt e os três volumes das Crônicas de Artur (O Rei do Inverno, O Inimigo de Deus e Excalibur). O título evoca um dos anos mais devastadores da Idade Média após a peste negra assolar a Europa. É o quarto volume da série A Busca do Graal (precedida por O Arqueiro, O Andarilho e o Herege, que não li ainda). Passa-se no meio da Guerra dos Cem Anos entre a Inglaterra e a França. Aqui o arqueiro inglês Thomas de Hookton disputa da posse de la Malice, a espada usada por São Pedro para defender Jesus Cristo. Crê-se que quem possuir a espada vencerá qualquer guerra.

7 - OUTSIDER – Talvez o mais recente livro de Stephen King (ele tem mais de 60) e adaptado para uma série de tv. A partir da morte brutal de um menino, as testemunhas e digitais levam a autoria a um treinador de beisebol infantil. Após sua prisão, descobre-se que ele estava bem longe da cidade no momento do crime. É possível uma pessoa estar em dois lugares ao mesmo tempo?  O mestre Stephen King adiciona à trama uma criatura sobrenatural (o Forasteiro) que se alimenta dos terrores das suas vítimas, sem deixar de discutir um dos fenômenos mais atuais da sociedade, as fake news e suas consequências terríveis.

8 - OS SERTÕES –Um dos meus orgulhos: ter lido na íntegra a obra prima de Euclides da Cunha. A leitura é difícil. As duas primeiras partes têm parágrafos inteiros com termos científicos de botânica e geologia e muitas pessoas não conseguem ir adiante na leitura. Há edições que só trazem a terceira parte que é a luta em si. A história sobre a conquista do arraial de Canudos no sertão baiano foi publicada em 1902 é o primeiro livro-reportagem do Brasil. Foi adaptado para o cinema e também é tema de outro livro maravilhoso: A Guerra do Fim do Mundo, do peruano Mario Vargas Llossa.

9 - A CIVILIZAÇÃO DO OCIDENTE MEDIEVAL – Livro de Jacques Le Goff, um dos maiores medievalistas do mundo e traduzido em mais de 20 países. É um dos livros mais importantes sobre a Idade Média e trata dos principais aspectos daquele período como os religiosos, políticos, econômicos e sociais do ocidente medieval. Para quem gosta dessa parte da História (eu adoro), é um livro essencial e saboroso.

10 - A VOLTA NO PARAFUSO – Eu já havia lido três outros livros excelentes do autor Henry James (Retrato de uma Senhora, A Fera na Selva e Lady Barberina). Esse foi um dos maiores sucessos do autor que, ao contrário das obras anteriores, é uma história de terror com uma preceptora lidando com um casal de crianças possuídos por dois espíritos de ex-funcionários de um casarão da Inglaterra. Há um subtexto de exaltação sexual reprimida da era vitoriana. Já foi adaptado para o cinema, inclusive com o filme brasileiro Através da Sombra.

11 - BAGAGEM- O primeiro livro da excepcional poeta Adélia Prado que li e também seu livro de estreia. Já havia lido diversas poesias dele pela internet, mas aqui tive o prazer de ler o livro na íntegra. Foi publicado em 1976 sob recomendação de ninguém menos do que Carlos Drummond de Andrade

12 - MISERY – Famoso livro de Stephen King, adaptado com sucesso para o cinema como Louca Obsessão, rendeu à atriz Kate Bates, no papel da enfermeira Annie Wilkes, o Oscar, o Globo de Ouro e a 17ª honrosa colocação entre os 100 maiores vilões do cinema, lista organizada pela  American Film Institute (bem à frente de Drácula, Freddy Krueger e Coringa). História de desespero onde um escritor é sequestrado pela sua maior fã, a psicopata Annie Wilkes, que o obriga na base de tortura, a reescrever seu último livro onde ele matara a heroína Misery.

13 - WILD CARDS 5- JOGO SUJO – No quinto volume dessa coleção de contos de ficção organizada por George R. R. Martin estamos 40 anos depois da disseminação de um vírus alienígena que contaminou parte da população da Terra e transformou parte da população mundial em super-humanos (Ases) e outra parte em deformados terríveis e párias (Coringas). No Bairro dos Coringas em Nova York, esse volume mostra uma violenta guerra de rua entre a Máfia e a gangue Punhos Sombrios. No meio dessa guerra um grupo de heróis permanece nas sombras em guerra contra os poderes do submundo.


14 - DIAS DE ABANDONO – O 7º livro que li da italiana Elena Ferrante após sua Tetralogia Napolitana adaptada para série de tv (A Amiga Genial, História do Novo Sobrenome, História de Quem Foge e de Quem Fica e A História da Menina Perdida), além dos livros A Filha Perdida e Um Amor Incômodo. Os temas dela são muito do universo feminino, o que nunca foi meu forte. Aqui ela retorna a esse universo com uma mulher traída e abandonada que tem que lidar com questões que a destroem psicologicamente como a administração da casa, doenças das crianças, a péssima relação com a filha birrenta e a solidão. Foi difícil para mim ter empatia pela personagem que me pareceu existencialmente uma vítima rejeitada.

15 - A HISTÓRIA SECRETA DE PARIS – São mais de 580 páginas para atravessar, mas este é um livro encantador com um subtítulo:  “Como ladrões, vigaristas, cruzados, santas, prostitutas, déspotas, anarquistas, poetas e sonhadores transformaram um povoado gaulês na cidade luz da Europa”.  O jornalista Andrew Hussey apresenta uma infinidade de personagens que originaram a Paris que conhecemos hoje, desde as tribos que viviam na região antes da chegada do império romano até os intelectuais e poetas atuais, passando pelos reis, imperadores e incontáveis massacres, guerras, revoluções, pestes e combates intermináveis. Uma obra fundamental para quem quer realmente saber sobre Paris.

16 - WILD CARDS 6 – ÁS NA MANGA – Todo esse volume se passa em 1988 em Atlanta, ao contrário dos outros volumes que basicamente são em Nova Yorque. Aqui o livro inteiro ocorre durante a convenção do partido democrata que definirá quem irá ser indicado à para concorrer à presidência: o senador Hartmann (apoiado pelos Curingas) ou o pastor Barnett (que prega que os Curingas carregam um vírus demoníaco e devem ser presos em campos de concentração).

17 - A DITADURA ACABADA – Finalmente encerrei a série sobre a ditadura brasileira do jornalista Elio Gaspari interrompido há anos. Havia encerrado a leitura dos quatro primeiros volumes (A Ditadura Envergonhada, A Ditadura Escancarada, A Ditadura Derrotada e A Ditadura Encurralada). O último volume demorou anos para sair e recebeu Grande Prêmio da Crítica de Literatura da APCA e mostra o período de 1978 a 1985, o final do governo Geisel, a posse de Figueiredo, a eleição de Tancredo Neves, a abertura política e o fim do AI-5 com manifestações pela anistia e pelas eleições diretas.

18 - A COLEIRA DO CÃO – Se no começo do ano eu disse que tinha recomeçado a ler Rubem Fonseca após o romance Agosto e não escolhi seu melhor livro de contos com A Confraria dos Espadas, agora acertei. Este foi o segundo livro de Rubem Fonseca, lançado em 1965 e é composto de oito contos que são a síntese das melhores qualidades do contista. O primeiro conto: “A Força Humana”, foi tido pelo crítico Wilson Martins como um dos melhores da literatura não apenas brasileira como da literatura universal. Ele integra o livro “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX”

19 - NOVEMBRO DE 63 – Mais uma obra magistral do mestre Stephen King. Também foi adaptada para uma série de tv como inúmeros outros livros do autor. Escrevi no blog uma resenha completa sobre o livro e vou apenas resumir: espetacular. A série é estrelada pelo ator James Franco.

20 - COMPLÔ CONTRA A AMÉRICA –Sexto livro de Phillip Roth que li. Diferente de todos os seus outros livros, que abordam temas reais com uma pegada naturalista, aqui o autor cria uma ficção baseada na premissa de que o herói americano Charles Lindbergh, primeiro homem a cruzar o Atlântico em um voo sem escalas, em 1927, é eleito presidente e, ao apoiar Hitler e o nazismo, leva terror à comunidade judaica. Adaptado para uma série de tv com Winona Ryder e John Turturro.

21 - VARIAÇÕES ENIGMA – O segundo livro que li de André Aciman após o retumbante sucesso de Me Chame Pelo Seu Nome, adaptado para o cinema. Esta não é a continuação do romance anterior, que está em outro livro que ainda não li. Este é dividido em cinco partes, cada uma contando um episódio da vida amorosa de um rapaz bissexual chamado Paul, um jovem italiano que vive nos Estados Unidos.

22 - DÁLIA NEGRA – Romance de estreia do autor James Ellroy e início da brilhante carreira de um autor de ficção policial moderna. Aqui ele narra os bastidores da investigação de um crime real ocorrido em Los Angeles em 1947 quando o corpo torturado e estuprado de uma bela jovem é encontrado num terreno baldio. Trata-se de um romance noir clássico com todos os ingredientes do gênero. Foi adaptado para o cinema por Brian de Palma em 2006 com Scarlett Johansson e Josh Hartnett.

8.5.20

NOVEMBRO DE 63


O Passado é Obstinado!”

Em torno da frase acima se desenrola a trama do excepcional livro “Novembro de 63”, obra de quase 730 páginas do mestre do terror Stephen King, que acabei de devorar.

Quem gosta do estilo do autor vai encontrar quase tudo que ele aborda nas suas obras. Digo quase tudo porque não estarão aqui monstros perigosos ou psicopatas assustadores que fizeram a fama do mestre e deliciaram os leitores dos livros de King. No entanto, há uma pitada saborosa para os fãs do universo do autor: parte da obra se passa na cidadezinha de Derry, cenário de medonhas cenas descritas por King, inclusive com a citação de um certo palhaço matador de crianças.

Aqui o universo é outro e tem como base a Teoria do Caos, segundo a qual uma pequena variação nas condições em determinado ponto de um sistema dinâmico pode ter consequências de proporções inimagináveis. Em termos mais gerais e que tornaram famosa a teoria, o bater de asas de uma borboleta na China pode provocar um furacão no México.

Nosso protagonista é Jake Epping, professor de uma pequena cidade do Maine (cenário de quase todos os livros de King), uma pessoa comum que é convencido por um amigo a voltar no tempo para impedir o assassinato do ex-presidente John Kennedy. Segundo esse amigo, muitas das piores coisas que ocorreram no mundo se deram em razão da morte de JFK.

Aqui, se você quer realmente apreciar uma boa história, vai ter que lançar mão do que é conhecido como: “Suspensão voluntária de descrença”, que tem esse nome porque se requer de um leitor ou espectador aceitar como verdadeiras as premissas de uma obra de ficção, mesmo que elas sejam fantásticas. Aceita-se a suspensão do julgamento em troca da premissa do entretenimento.

Você precisa então aceitar a premissa do livro que é a existência de um portal misterioso que leva Jake, nosso herói, do ano de 2010 até 1958, cinco anos antes da morte do ex-presidente Kennedy. Jake terá como missão abortar esse crime, mudar o passado e, por consequência, o futuro.

Mas as coisas não serão fáceis quando ele descobre que o passado não quer ser mudado e assim Jake encontra uma série de dificuldades Quanto mais mudanças possivelmente forem geradas, mais problemas Jake terá para conseguir alterar o passado. Assim, tempos como verdadeiro antagonista neste inspirado livro, não um indivíduo monstruoso ou um psicopata assassino. O inimigo é o passado em si.

Apesar de Stephen King ter imensa facilidade em criar histórias, descrever cenários, situações e personagens, fiquei com a sensação de que o livro é excessivamente caudaloso. Demora pra chegar ao clímax, mas compensa quando após cinco anos de aventuras, nosso herói finalmente chega a Dallas, se aproxima do infame Lee Oswald, o assassino de Kennedy.

Mas não se esqueça: O Passado é Obstinado!

Durante a leitura, eu me perguntava como o autor resolveria o seguinte dilema: se ele não impedisse o assassinato de JFK, toda a trama seria em vão e anti-climática; mas se salvasse Kennedy da morte, como explicar que vivemos num futuro em que o presidente morreu de fato? A solução desse dilema é um primor de elegância. King demonstra mais uma vez porque é o mestre.

Uma passagem do livro me deixou especialmente emocionado:

“Na Carolina do Norte, parei para abastecer num posto e depois dei a volta para usar o banheiro. Havia duas portas e três placas. HOMENS estava escrito com letras cuidadosamente pintadas com estêncil numa das portas, DAMAS na outra.

A terceira placa era uma seta numa vara. Apontava a encosta coberta de mato atrás do posto. Dizia DE COR. Curioso, andei pelo caminho, com cuidado para contornar alguns pontos onde as folhas oleosas do sumagre-venenoso, num verde fugindo para o marrom, eram inconfundíveis. Torci para que os papais e mamães que pudessem levar os filhos até aquelas instalações lá embaixo soubessem identificar o que eram aqueles arbustos problemáticos, porque no final dos anos cinquenta a maioria das crianças usava calças curtas.

Não havia nenhuma instalação. O que encontrei no fim do caminho foi um riachinho estreito com uma tábua atravessada em cima, sobre dois suportes de concreto dilapidado. O homem que precisasse urinar podia apenas ficar à margem, baixar o zíper e deixar sair. A mulher poderia se segurar num arbusto (supondo que não fosse urtiga nem sumagre-venenoso) e se agachar. A tábua era onde a gente se sentava se tivesse de cagar. Talvez sob chuva torrencial.

Se lhe dei a ideia de que 1958 era perfeito como um seriado de televisão, basta lembrar o caminho, ok? Aquele ladeado de sumagre-venenoso. E a tábua sobre o riacho.”.

Não fosse por ser um grande escritor, eu teria extrema simpatia por Stephen King pela sua incansável crítica a Donald Trump, seu apoio a Obama e sua coragem quando defendeu um dos meus escritores favoritos, o premiadíssimo Salman Rushdie, britânico de origem indiana, quando ele foi perseguido com ordem de assassinato pelos aiatolás do Irã quando publicou Os Versos Satânicos.

Rushdie escreveu diversos livros maravilhosos e li todos, mas ao ler sua biografia, que descreve seu sofrimento durante mais de uma década escondido para não ser morto, proibido de viajar em quase todas as companhias aérea e com livros boicotados, quando vários intelectuais, editoras e políticos de todo o mundo lhe viraram as costas, quando ele precisava urgentemente publicar seus livros para conseguir se sustentar, vejo que veio exatamente de Stephen King, um autor que ele nem conhecia, uma ajuda fundamental. Rushdie narra o episódio na sua biografia.

“À época da publicação de Os Versos Satânicos, foi a colaboração dos escritores que possibilitou sua comercialização nas grandes redes de livrarias. Stephen King entrou em contato com as editoras e as ameaçou dizendo que, se o meu livro não fosse comercializado, seus títulos também não seriam. King ainda os advertiu dizendo que outros autores fariam o mesmo, e Os versos satânicos foi então distribuído nas redes.”

19.4.20

PAI POR UM DIA











Pai, se eu fosse você por um dia
Começaria parando de fumar
Comprando uma bermuda nova
E me levando pra passear
Por um dia de pai, a gente curtiria
Eu e você, só os dois
Eu te mostraria quanta coisa pra falar a gente teria
Pensaríamos nos compromissos depois
Esqueceríamos
Seu celular desligaríamos, pegaríamos o carro ou o trem
E iríamos, só os dois, mais ninguém
Eu, se fosse você, aproveitaria e
Faria a mim umas perguntas sérias
Disfarçadas de bobagens, de curiosidades
Só para me conhecer melhor
Sem deixar eu perceber, me pegaria sem disfarces
Disfarces de filho e de pai que a gente costuma usar
Assim, faríamos para nós um programa de vida completo
Diante de nossos medos e
Saberíamos quantas vezes as brigas doeram tanto nos dois
Quantas vezes os castigos esconderam inseguranças suas
E me deixaria ver que pai também tem seu lado frágil
Seria o passeio mais pedagógico de nossas vidas
Não era para ser o super-homem, pai,
Era só não ser o vilão da história.


REMOVENDO A TATUAGEM


– “Então a culpa não foi minha?!”

Ela o disse em voz alta como para ter a confirmação de que estava livre de anos passados boiando num limbo de ignorância em relação à sua culpa pelo final daquela relação que ainda habitava, como uma espécie de zumbi, suas noites e madrugadas insones.

Então a culpa não foi sua!

Ficou tão acostumada a conviver com ela, como com uma espécie de tatuagem gravada no seu braço, uma âncora que a prendia ao fundo de um mar de águas paradas. 

De repente, sem a culpa a que se acostumou a dar bom dia e boa noite a cada dia e a cada noite, de repente o que seria da sua vida?

            Como se arrancassem a sua tatuagem-âncora deixando um buraco no lugar da culpa, o que colocar no lugar do buraco? O barco, livre da âncora, não saberia para onde navegar. 

Como preencher o espaço que ele deixou e por anos foi devidamente preenchido pela tatuagem da culpa, que se fixava em sua pele como uma anti-máscara de carnaval que nunca mais ela tirou e que, aparentemente, ninguém notou que estava ali, e que ela foi deixando ficar, por longos fevereiros, chuvosos abris, manhãs de setembros?

Agora estaria livre da angústia do toque do telefone. Em cada toque, a esperança de que fosse uma ligação dele, o coração disparando e o latejar da veia no pescoço. Nunca uma ligação dele. Ou melhor, houve duas, mas antes não houvesse porque havia sido algo puramente formal. Foram dois Natais e... 

“- Alô! Sou eu!”

Quantas palavras poderiam ter sido ditas em vez daquela economia terrível de sílabas: “Oi, quanto tempo, quanta saudade, ainda se lembra de mim? Tenho pensado tanto em você.” Mas, em vez disso, três simples palavras que, na falta de coisa melhor, ela bebeu como um vinho guardado por anos. Mas, apesar da saudade e tudo que não conseguiria resumir em mil páginas, restava algum orgulho misturado com a culpa já que, naquele tempo dos dois telefonemas natalinos, ainda tinha certeza de que foi a culpada.

O vinho da sua voz sabia a vinagre e ela o chamou pelo sobrenome, como já vira alguns amigos fazerem. Sentiu que assim estabelecia um distanciamento, mas isso soou falso. Não disse que rasgou suas fotos num acesso de desespero, que era aquilo ou rasgar o peito.

Naquele tempo dos dois telefonemas, ela ainda achava que foi a responsável pelo amor na lata de lixo, como pelas fotos na lixeira para onde também foram parar os cartões de aniversário e os postais de Paris em uma viagem em que ela não estava, mas que ele descrevia nos versos dos cartões o quanto fizera falta a sua presença em um passeio solitário ao lado do Sena.

“- Estou ligando para desejar Feliz Natal!”

Respirou fundo como a querer que o ar preenchesse um vazio imenso no seu peito onde antes havia uma massa informe da onipresente culpa, companheira tão permanente que muitas vezes ela até se esquecia da sua imanência.

Naquelas horinhas de sossego, como lembrava Guimarães Rosa, ela chegava a ser um pouquinho feliz, até ligava o som, punha um disco de Cássia Eller e chegava mesmo a dançar sozinha no apartamento tomando uma taça de Campari.

Mas, de vez em quando, Ney cantava Cartola e punha tudo a perder e a massa em seu peito a fazia consciente de que ainda continuava ali.

Respirou mais fundo ainda. Não imaginava que cabia tanto ar naquele buraco. Abriu as cortinas e sentiu-se como Cabíria reparando em uma nova e estranha luz a ferir-lhe os olhos. A luz iria varrer as sombras escondidas nos desvãos do assoalho, sob os móveis, revelando restos minúsculos e flutuantes de solidão.

A cidade amanhecia e ela sentia que estava ficando pronta para o resto da sua vida.

O dragão com quem dividia o apartamento saiu de vez. Precisava de mais ar e o dragão lhe deixava apenas o mínimo para sua sobrevivência. De repente, havia mais espaço para ela. Sobrava-lhe o apartamento inteiro, a cidade inteira, o mundo inteiro.

Afinal, após tanto tempo, descobriu as razões que ele não lhe revelara, então, sobre fim do romance. As razões chegaram através de uma carta dele a uma amiga que guardara esse tempo todo o segredo. Grandessíssima amiga! E as razões mesquinhas contidas ali mostravam a covardia dele, deixando-a tanto tempo a se culpar. Ao preservá-la da verdade, ele se mantivera protegido pelas memórias felizes, atirando-a aos chacais da dúvida e da culpa.

Então foi por uma razão tão banal! Ela chegou a sorrir, perplexa. Nada de incompatibilidades intelectuais ou conflitos de visões de mundo ou desvios de condutas ou traições de sentimentos, mas uma mera e simples banalidade.

Não poderia se deixar afundar por uma coisa assim. Sentia-se grande demais para aquilo.

Depois que o dragão e os chacais subitamente desapareceram, a selva da cidade deixava de ser ameaça e se transformava em uma sedutora promessa.

- Essa pele é nova, cidade. Arranhe devagar!

O ÓDIO PERDIDO


Pela terceira vez ela o encarava com aquele olhar de desdém. Ele não aguentava mais aquilo. Quanto tempo ela achava que ele suportaria? Três anos juntos e infinitas brigas, discussões, humilhações públicas. Era como um concurso, como um teste, cada um explorando ao máximo os limites do outro, testando sempre.

Experimentaram tudo juntos, as delícias intensas de serem como um só parecia ter ocorrido em um tempo lendário, ou fora um conto de fadas ou uma piada de mau gosto. Viveram também a lama, o lodo da relação, as drogas, o álcool...trocaram segredos íntimos, revelações...Tudo!

 Afinal, eram um só.

 Mas naquela noite ela estava usando a arma mais terrível, reservada para momentos extremos. Ele sentia um misto de raiva, desprezo e desejo. Segurou-a pelo pulso, forte. Ela levantou o queixo, jogou o cabelo para trás...e aquele olhar...Ele jogou-a no sofá e ela ainda exibia o mesmo sorriso, cínico, superior, cada vez mais venenosa.

Ela, cada vez mais dona da situação. Quem conseguiria dobrá-la, vencê-la?

Ele decidiu que naquela noite, naquela hora, pelo menos por um minuto ele seria capaz de derrotá-la. Meio envolvido por essa tênue gana de macho ferido ele se moveu. Seguro finalmente. Mas ela não o sabia ainda.

O sorriso ainda continuava ali, o desprezo também. Ela usava toda a munição.

Ele avançava como um gato, como uma cascavel e, sem que ela esperasse — porque ele nunca o fizera antes —, rasgou-lhe a blusa com violência e os seios dela saltaram firmes, sob o tecido.

 A visão o provocou mais. Era como um selo, um sinal, um símbolo. O sorriso agora já era forçado, o pudor, atávico. Surpresa mal disfarçada. Mas ela bem que tentou. Fêmea acuada, tentou... A munição já fora gasta? Ele ainda não sabia.

 Estava determinado. Sentou-se entre as pernas dela e com ódio e desejo no olhar, enfiou as mãos sob o seu vestido, tocando-lhe as coxas sem desviar os olhos do seu olhar.

Se ela resistisse, era como capitular, se se entregasse; como dar-se por vencida. A dúvida estava tão presente quanto a faísca quase morta do desejo que, súbita e sorrateiramente, parecia reacender. Ele seria capaz de fazer aquele desejo reviver? A umidade no baixo ventre parecia gritar que sim.

 Mas na mente, ou seria no peito, a raiva, os remorsos e o desejo de castigá-la pareciam ainda ser fortes. Ele era forte. Sua barba de alguns dias e o cheiro de álcool impregnado por todo o seu corpo tornavam sua figura um misto de mendigo, de homem do mundo, marinheiro, os desejos de moça dela.

Quanto tempo?

Ela ainda se lembrava de tudo, quanto se rastejara, quanto se humilhara, implorara carinho. Aquele era o homem que matara sua inocência. Aquela mulher agora era ela. Decidira, após esse tempo todo, vingar-se dele, mas a mão, alojada agora no encontro das suas pernas, era onipotente, retirando-lhe as energias que ela precisava para cumprir a missão de vingar-se dele, de resistir a ele.

 Aquela umidade teimava em contradizer o olhar de des-pre-zo.

 Ele baixou o rosto e mordeu delicadamente (queria ser rude, foi suave), um dos bicos de um dos seios. Percebendo-se suave mordeu mais forte. Queria ser rude. O bico do seio crescia dentro da sua boca. Ele desceu com a língua pela barriga até o umbigo, mergulhou devagar fazendo voltas, a barriga dela agora descia e subia, ela já arfava baixinho, tentava controlar-se, mas o sangue já inundava o seu rosto e todo o resto.

A mão dela queria acariciar os cabelos desse homem, mas ela resistiu no meio do caminho. Bravamente, ela lutava contra uma maré, um oceano de carne que pulsava.

Ele levou uma das mãos à braguilha e, apressadamente, sem jeito ou habilidade, tirou seu pedaço mais quente e resistente.

Ela olhou, misto de assustada, curiosa e desejo.

Ele avançou como um huno para dentro dela. Agora que ele sabia que havia toda aquela umidade ali, ele parecia ter um convite formal.

 Há eras, parecia ter ocorrido em outra vida, tal a distância que eles se impuseram, ela conhecia essa sensação. Lembrava-se agora. Fora a conquista, o prêmio que se permitira receber. Foi quando se concebera mulher.

 Mas não se tornara mulher quando ele destruiu sua inocência fazendo-a rastejar-se? Ou havia se tornado mulher antes?

 Aquele homem arremessava-se agora com uma fúria primal para dentro dela. Ela se lembrava. Ele se movia cada vez mais forte, cada vez mais bárbaro. A raiva e o desejo. O desejo, a raiva e o desejo. A raiva-desejo!

Ela se lembrava de algo parecido, mas nunca tão forte.

Ele decidira que ela viveria o maior prazer que já sentira na vida. Ela saberia como ele podia ser bom e como ela tinha sido estúpida de tê-lo afastado de si, atirando-o na terrível miséria de não ter a quem se dar. Ele iria destruir suas barreiras. Quanto mais forçava, mais elas iam caindo. Uma por uma. A raiva então parecia tão distante. Do que era mesmo que ela o culpava?

E o desejo em ondas. Aquelas vagas titânicas de desejo.

Ele não gozaria jamais, Ela jamais deixaria de gozar. Ele ainda tinha bem presente o ódio que havia entre os dois. Aquela conjunção era sua única arma contra tanto veneno. Ele não sabia ainda que tudo que agora restava daquela mulher-fortaleza era a caverna escura e úmida por onde a penetrava como um aríete em brasa. Tudo que sobrava dela eram ruínas de uma casamata onde ele, totem em chamas, saboreava sua vingança.

Ela estava toda entregue, acariciava-o, cruzava as pernas nas costas dele sobre o sofá, posição difícil, ela gritava, uma muralha inteiramente desabada de prazer.

Ele arremessava como um selvagem, um cruzado, um alucinado, a sua mulher, a sua mula, sua... Ele não ousava ainda pensar. Ele cada vez mais excitado, silencioso, nem um gemido, o suor banhava todas as partes, as mais secretas. Ele não falava, não gritava, só a respiração pesada, quase um arfar murmurado. Ele calado. Ele, concentrado, não gozaria jamais. Estava reservado para ela como uma overdose.

 Quanto tempo seria necessário, horas, dias, anos? Mais?

 A mão dele descia agora, suave, pelo rosto dela, pelos seios. Ele agarrara um seio. Agora seria dor? Ele a esbofeteava! Esbofeteava forte! Nunca fizera aquilo antes. Por que nunca fizera aquilo antes?

Ela nunca se sentiu tão dominada pelos sentidos. Cada bofetada dele era como uma rajada de espasmos que lhe percorriam todos os milímetros da pele, era calor e era cheiro, o som de cada tapa nas faces, na boca, a cabeça voltando-se para os dois lados, para um lado e para o outro, os cabelos selvagemente desalinhados, molhados de suor, grudavam em partes do rosto dela escondendo do olhar dele o olhar dela. Ela nunca antes se sentira tão liberta da vergonha. Sentia dor e gostava. A dor-prazer!

De onde vinha tudo aquilo? Daquele homem? Daquela mulher? Eram desconhecidos. Anos juntos e não se sabiam. Quanto mais ela gemia alto, mais ele se calava e, silenciosamente, arremessava-se, sequer a se permitir um único som.

Do que ela o culpava?

Do que ele a culpava?

Então, finalmente, quando não havia mais como resistir, ele, o homem, entregou-se a ela. Desabou num grito imenso. Um imenso e contido grito apenas e todo um mundo veio abaixo. Bastava aquele grito e todo o mundo não seria suficiente para restaurar o seu ódio perdido, esfacelado em meio ao jorro de vida com que ele a inundara.

ENTRE NÓS

       O primeiro de nós ligou a lâmpada do quarto enquanto os restos das sombras da casa, silenciosamente deixavam-se banhar pela tênue luminosidade de uma lua quase nova, uma escuridão violada também pelo brilho do vapor de mercúrio da lâmpada do outro lado da rua, pouco de luz que conseguia atravessar o mar de mariposas enlouquecidas que se debatiam, ferindo as asas, contra o globo imundo do alto do poste. Com a casa semi-iluminada pelo luar e o mercúrio deslizando até a soleira da porta, a lâmpada acesa naquele quarto revelou sua fluorescente redundância.


        A segunda de nós trazia no corpo um aroma novo de sândalo que impregnou por muito tempo os lençóis do quarto que precisava de uma limpeza. Felizmente, era noite e ela, a segunda de nós, não reparou na fina camada de poeira que aniversariava pelos cantos. O aroma era inebriante e ninguém prestou atenção na longínqua nota ácida de naftalina do quarto. A segunda de nós espreguiçou-se como uma felina doméstica que se divertia maltratando ratinhos. O pescoço é delicado e os dentes pequenos e afiados carregam doses sutis de veneno em cada gota de suor também chamado de sândalo. A segunda de nós sorri, displicentemente alta. Ela bebeu demais? Os outros dois de nós não sabiam. Isso poderia fazer parte do seu jogo.
           
O terceiro de nós não deixaria cheiros nos móveis. Habitava longe daquele logradouro voraz repleto de poeira e, agora, sândalo. Era novo demais para estar entre dois de nós, há bem pouco chegara aos 18. Mas, se aquele nem mesmo era seu caminho para casa, por que estava ali, marcando sua presença discreta entre os outros dois de nós, se não havia vínculos cronológicos ou geográficos que os ligassem? Que tanto de mel havia naquela casa onde a poeira de um e o perfume da outra poderiam ser como um imã para incautos? Uma teia para arrebentar frágeis asas? Ele tem as calças jeans rasgadas nos joelhos e não fuma. Não se importa se fumem, se bebam ou se chorem. Não se importa com nada. Ainda não tem porque se importar. Quiséramos que ele nunca precisasse. A pele do seu rosto ainda não tem vestígios de uma futura barba, mas a cor e a textura exatas de um pêssego amadurecendo. O olhar é um lago límpido cercado de cílios longos. Se houvesse algum tipo de justiça na terra, o terceiro de nós a mereceria. E mais ninguém.

O primeiro de nós julga-se um bocado sábio e já um pouco sujo, como as meias que guarda no fundo da cômoda e mereciam mais atenção. O primeiro de nós não sabe ainda que há muita lama e espinhos no caminho a trilhar e que há selvas de perigos em algum lugar adiante. Só está tentado evitar, o mais tempo que pode, atravessar esse charco. Sabe que não conseguirá evitar por muito tempo sujar as mãos, ferir a alma, machucar e ser machucado. Não é mais adolescente, com quase 30, e não se pode enganar as sombras por muito tempo antes de queimar as asas contra o mercúrio do falso luar. Já há nódoas na barra da sua vida. O primeiro de nós não conseguirá evitar.
           
Ela já ligara a música e iniciara a dança que usava nesses rituais particulares. Dire Straits foi o que escolheu, ou talvez fosse o que estivesse mais à mão. A agulha do aparelho de som fez o ruído característico do contato com o disco de vinil. Estávamos ainda no tempo do vinil. Olhou pelos cantos dos olhos, divisando os limites do território que dispunha para a atuação. Aquela era uma das suas qualidades menos evidentes, menos valorizadas, mas a mais apreciada pelos que, mesmo sem perceber, se admiravam com o seu domínio do espaço periférico. Ela comandava a cena como uma primeira bailarina. O balé da mariposa fêmea. A segunda de nós rodava.

O mais moço de nós observava, silencioso, os gestos do primeiro e da segunda de nós. Os seus eram movimentos imperceptíveis como os de um camundongo hipnotizado por duas serpentes. O moço dos longos cílios não sabia bem o que fazer, que papel executar, mas não parecia preocupado com isso já que não lhe cabia o costume de vítima nem combinava o figurino de predador. Sabia, intimamente, que era impossível que não cuidassem dele como de um cristal que se pode partir em pedaços, permanentemente a um passo do irremediável. O colchão sobre o tapete no chão pareceu um lugar seguro para proteger-se de uma queda fatal. Quem diria que aquele primeiro movimento rumo ao conforto do colchão partiria exatamente dele?

            O primeiro de nós era o dono da casa e da motocicleta em que os três chegaram do bar, ele pilotando, a segunda de nós abraçando-o, envolta pelos braços do menino dos olhos d’água. Ele, anfitrião, perguntou se os outros tinham fome. Cada um escolhera uma fruta diferente. Enquanto ela dançava com a sensualidade exata que o papel pedia, o primeiro de nós mordia uma maçã, evitando os olhos do rapaz. De algum modo, os rasgões do tecido nos joelhos daquela sua calça jeans pareciam-lhe dolorosos. Ela desfrutava de um cacho de uvas, sorria, dançava, reivindicava olhares. Ele sentou-se longe do rapaz com pele de pêssego e sumo de morangos nos cantos dos lábios. Uma língua, e já não havia mais vermelhos por ali. Seus olhos eram atraídos tanto pela imobilidade e silêncio dele quanto pelos movimentos ritmados da segunda de nós.

Seu vestido delineava as curvas de pernas esguias. Que papéis lhe caberiam naquele trio? Não se importava já que qualquer papel teria dela um desempenho não mais, não menos, do que perfeito. Àquela altura da noite, das frutas e do disco, somente dois dos três corpos já estavam no colchão. A noite ainda tardava a amanhecer e havia um espaço reservado para ela entre o primeiro e o terceiro de nós.

Mas e aquela lâmpada? Alguém, por favor, o alertasse de que havia luz demais naquele quarto. Descobriram formas de, rindo, disfarçar a ausência de espontaneidade quando acabaram as frutas. Muita cerveja os ajudara a chegar até ali, mas não havia mais cerveja e se queriam aproveitar o efeito que ela lhes causara, não poderiam esperar muito mais. Em breve, a alvorada desfaria o mistério, as mariposas estariam arrebentadas sob o poste, em breve acabaria o disco do Dire Srtaits e aquela lâmpada daquele quarto não tinha qualquer razão para estar acessa.

Finalmente, ela já não dançava mais e não eram somente dois os corpos no colchão. Mas eles ainda não haviam iniciado o balé das mãos que ditariam os rumos a seguir, que abririam os caminhos que não deixariam marcas visíveis para outras trilharem. Cada uma daquelas mãos teria um valioso papel a desempenhar. Precisávamos apenas de um pouco menos de luz.  Até que houve a mágica e a luz, subitamente, apagou-se. Sozinha! Então haveria esperança para as mariposas daquele quarto.

            Foi quando o menino de longos cílios, aparentemente caído numa teia de poeira e sândalo, disse aquela que seria a frase que deixaria os outros dois de nós certos de que ele não precisava de fato da proteção, seu cristal não se partiria fácil e, pelo visto, ele saberia aonde chegar se não o cegassem com a luz que cega as mariposas. A luz apagou-se sozinha e ele foi o dono das únicas palavras que aqui se registra, já que, entre todas, foram as únicas que jamais foram esquecidas.

            — Sua luz é ensinada?

7.1.20

Livros de Outubro a Dezembro

Bati todos os meus recordes mundiais-intercontinentais e galáticos de leitura em 2019.

Foram 68 livros lidos. 27 lidos de Janeiro a Maio, 17 de Junho a Setembro, e 24 livros de Outubro a Dezembro, como já havia publicado aqui no blog.

Intencionava bater a marca de 2018 quando havia lido 40 livros. Depois de ultrapassá-la, almejei atingir os 52 livros, o que daria 1 livro por semana.

Com 68 livros, deu pra ler um pouco em média um livro a cada 6 dias do ano.

Faltava publicar a lista dos lidos de Outubro a Dezembro. Não falta mais. Estão na ordem em que aparecem na estante acima e na lista abaixo.

A HUMILHAÇÃO – O 4ª livro de Phillip Roth que li, após Adeus Columbus, O Complexo de Portnoy e O Teatro de Sabbath. Para não variar, uma obra sombria que aborda o envelhecimento de um ator em crise de criatividade. Ele foi um grande astro do teatro, mas perde a autoconfiança e acredita que não tem mais talento. Numa espiral de decadência, ele perde a mulher e o público até cogitar o suicídio.

A CASA DAS BELAS ADORMECIDAS - Um livro que causa irritação em muitos leitores e vários relatam não ter levado a leitura adiante. Seu autor, o japonês Yasunari Kawabata ganhou o prêmio Nobel de literatura em 1968 e aqui ele narra a história do quase septuagenário Sr. Eguchi, que descobre uma casa em que pode passar a noite ao lado de meninas nuas e profundamente adormecidas. O desnudar do corpo é um mote para o autor desnudar o interior daquele velho, rememorando episódios do seu passado.

WILD CARDS 3-APOSTAS MORTAIS – Após os dois primeiros volumes desta série coordenada por George R.R. Martin, li este volume que é o melhor deles. A ideia da série surgiu após Martin se reunir diversas vezes com amigos para jogar RPG. São várias histórias onde heróis e vilões convivem numa Manhattan em um passado alternativo, após um vírus alienígena alterar estruturas genéticas dos humanos. A série já está no volume 23, mas somente 7 foram traduzidos no Brasil.

EPITÁFIO PARA TRÊS MULHERES – O 12º volume que li da série da autora inglesa Jean Plaidy sobre a Saga dos Plantagenetas. Apenas 10 das 13 obras foram publicadas no Brasil. Aqui acompanhamos a vida de Henrique VI que assumiu a Coroa inglesa aos nove anos de idade. A figura central do livro, no entanto, é a santa guerreira Joana D'Arc.

79 FILMES PARA ASSISTIR ENQUANTO DIRIGE – O grupo humorístico Choque de Cultura, que é um fenômeno no YouTube e mais recentemente na Rede Globo comentando os filmes da Temperatura Máxima, lançou esse livro divertidíssimo. Diversas vezes parei a leitura para dar gargalhadas. Os comentários mais escrachados sobre filmes de todos os gêneros.

MYTHOS – Um livro escrito pelo conhecido ator e diretor inglês Stephen Fry e me surpreendeu porque eu não sabia que ele gostava de mitologia grega. O livro é muito engraçado e para mim, que adoro mitologia grega foi interessante ler as histórias de heróis, deuses e titãs contadas sob um olhar tão engraçado e inteligente.

A DAMA DE ESPADAS – Um conto do autor russo Alexander Pushkin, o primeiro texto dele que li. A história de uma velha condessa que esconde um segredo que pode tornar alguém milionário ou destruir sua vida num jogo de cartas. O texto foi adaptado para duas óperas, uma delas de Thaikovsky. Pushkin é o maior nome da poesia russa e fundador da literatura russa moderna.

RETRATO DE UMA SENHORA – Um livro fabuloso de Henry James.  Já havia lido do autor: Lady Barberina e A Fera na Selva, mas esta é sua obra prima. Escrito na mesma época que Anna Karenina e Madame Bovary, aqui encontramos uma protagonista que foge ao padrão literário das heroínas trágicas citadas. Isabel sai dos Estados Unidos para a Inglaterra onde herda uma fortuna, vê-se como objeto de amor de dois homens afetuosos de quem ela foge para ver-se vítima de um homem inescrupuloso. Foi adaptado para o cinema com Nicole Kidman no papel principal.

21 LIÇÕES PARA O SÉCULO 21 – O terceiro livro do premiado historiador israelense Yuval Harari. Tenho os dois primeiros livros dele: Sapiens e Homo Deus, mas não os li ainda. Aqui o autor aborda temas palpitantes como guerras nucleares, cataclismos ambientais, crises tecnológicas fake News e terrorismo entre outros dilemas atuais.

UM LUGAR BEM LONGE DAQUI - O primeiro livro que li da autora Delia Owens e que já vendeu mais de 2 milhões de exemplares, ficando por mais de um ano nas listas de best-sellers dos Estados Unidos desde o lançamento. A história de Kya, a “Menina do Brejo” vivendo num pântano de uma cidadezinha do litoral da Carolina do Norte. Ela foi abandonada pela mãe, os irmãos e o pai alcoólatra. O livro é construído como uma história de mistério. A atriz Reese Witherspoon adquiriu os direitos de adaptação cinematográfica da obra.

HEADHUNTERS - Este é o nono livro do escritor norueguês Jo Nesbo que li e o primeiro sem o investigador Harry Hole como protagonista. Novamente, temos um romance policial intrigante como é característico do autor, fenômeno editorial mundial. A obra já foi adaptada para o cinema com o ator Nikolaj Coster-Waldau (o Jaime Lannister de Game of  Thrones). A trama envolve um arrogante caçador de talentos que também é ladrão de obras de arte e que se vê vítima de um homem mais inescrupuloso do que ele.

WILD CARDS 4 – ASES PELO MUNDO – Continuação da série em que, após a carnificina da comemoração dos 40 anos do acidente com o vírus Carta Selvagem, uma grande viagem pelo mundo é organizada pelo ambicioso senador Gregg Hartmann levando ases e curingas (humanos infectados pelo vírus e que adquirem superpoderes ou deformações horríveis) de Nova York a viajar pelo mundo conhecendo as anomalias causadas pela infecção, passando inclusive pelo Rio.

A CASA NEGRA – Este livro é a continuação de O Talismã, de Stephen King e Peter Straub, dois mestres do terror e suspense. Se no primeiro volume Jack Sawyer, com 12 anos, precisava demonstrar uma extrema coragem para enfrentar os mistérios dos Territórios, aqui ele está com 32 anos e voltará a enfrentar entidades sobrenaturais. Só que ele não se lembra de nada do que aconteceu 20 anos antes. Este livro é um calhamaço de mais de 600 páginas enquanto o anterior passava de 900 páginas. Li quase sem consegui parar para dormir.

A ESTRELA DO DIABO – Este romance de Jo Nesbo, o 10º livro do autor que li, encerra uma trilogia à parte na sua carreira, que se inicia com Garganta Cortada e continua em A Casa da Dor, ambos eu li no ano passado. Aqui, o investigador Harry Hole luta contra o alcoolismo e enfrenta um inimigo dentro da própria polícia de Oslo na investigação da morte de uma colega policial.

A CASA DO INCESTO – O primeiro livro que li da escritora Anais Nin. A autora foi amante do escritor Henry Miller e pode ser vista no cinema no filme Henry e June, na pele da atriz Maria de Medeiros. Este livro tem a forma de uma grande poesia, mas o excessivo detalhismo das descrições me incomodou. Valeu pela primeira experiência com a autora.

A HORA DO LOBISOMEM – Outro livro de terror do mestre Stephen King descreve os ataques de um lobisomem misterioso uma vez por mês na noite de lua cheia na cidade de Tarker’s Mill. Não é um dos melhores contos do autor, mas vale a leitura, que é rápida já que o livro tem pouco mais de 150 páginas.

A FESTA DE BABETTE - O segundo livro que li da dinamarquesa Karen Blixen (conhecida pelo pseudônimo Isak Dinensen). O primeiro foi A Fazenda Africana, adaptado para o cinema como Entre Dois Amores (ganhador de 7 Oscars). A Festa de Babette também foi um filme premiado internacionalmente, incluindo o Oscar de filme estrangeiro. A história de Babette, uma renomada chef de cozinha francesa que, fugindo da revolução em Paris, se abriga na casa de duas irmãs puritanas.

AS BRUXAS DE SALEM – Obra prima do escritor Arthur Miller. Peça teatral abundantemente encenada em todo o mundo e adaptado para o cinema algumas vezes com sucesso. Aborda um fato real ocorrido nos EUA durante o período colonial em que um grupo de crianças histéricas provoca uma caça às bruxas na pequena cidade puritana de Salem em 1692 levando mais de 200 pessoas ao tribunal com 20 delas sendo enforcadas. O livro é uma forte metáfora contra a perseguição aos escritores simpatizantes do comunismo perseguidos nos anos 50 pelo congresso norte americano.

BONEQUINHA DE LUXO – Livro que deu grande fama ao escritor Truman Capote e adaptado com sucesso para o cinema com Audrey Hepburn no papel principal da jovem garota de programa Holly Golightly, em Nova Yorque dos anos 60 que tem que decidir se se casa com um milionário ou se prefere viver pobre e livre. 

AS CRIANÇAS DO MILHARAL – Um conto de Stephen King que foi adaptado para a cinema e tv com o nome de A Colheita Maldita. Um terror gótico como os melhores do gênero do autor que gera uma grande inquietação no leitor com um grupo de crianças cuja infância é dominada pela religiosidade fanática e cruel em uma cidade fantasma. Um casal incauto sofre no lugar do leitor, confortavelmente instalado na frente das páginas perigosas do mestre do terror.

AMAR É CRIME – Livro de contos do pernambucano Marcelino Freire, deu fama ao autor pelas histórias com forte conteúdo sexual e a oralidade bruta com prosa ritmada no feitio de cordéis do Nordeste.

CONTOS NEGREIROS – O segundo livro do autor Marcelino Freire que li. Assim como o primeiro, formado por contos em que o foco são as figuras marginalizadas a quem o autor dá uma pátina de nobreza. Este livro ganhou o premio Jabuti de melhor livro de contos.

ESPERANDO GODOT- Peça clássica do dramaturgo irlandês Samuel Becket publicada em 1952 e famosa em todo o mundo. Há tempos eu devia ter lido este texto, mas felizmente desta vez essa lacuna não está mais presente nas minhas listas de leituras. Em apenas dois atos e com um palco formado apenas por uma árvore ressecada, dois personagens estão durante todo o tempo do texto esperando um certo Godot, que nunca aparece.

ATÉ O DIA EM QUE O CÃO MORREU- Belo livro do brasileiro Daniel Galera. O autor ficou famoso pelo seu premiadíssimo livro: Barba Ensopada de Sangue, que não li ainda. Aqui temos um personagem sem nome que encontra um cão na rua e o leva para casa. O cão também não recebe um nome por algum tempo e a relação desses dois seres é um retrato da solidão. Um livro rápido e fácil de ler não só pelas suas breves 100 páginas, mas principalmente pela narrativa fluida do autor.