30.1.21

Miami, Uma Pocilga ao Sol

Logo no primeiro dia, senti que alguma coisa estava muito errada naquela viagem. No último dia, os envolvidos já queriam se matar. 

A primeira etapa consistiu no desembarquei com dois amigos no aeroporto de Miami. Haveria um espaço de 13 horas entre a chegada em Miami e a hora de deixar a cidade rumo a Washington, às 6 da tarde. 

A operadora no Brasil não conseguiu um voo mais cedo e ainda teríamos que pegar uma conexão de Washington para Nova Orleans às 9 da noite. Assim, pensei em conseguir no aeroporto de Miami um voo mais cedo para Washington e de lá outro mais cedo para Nova Orleans. Não queria ficar 13 horas em Miami. 

Às 5 da matina estávamos no balcão da United perguntando a um negão gente boa se haveria chance de conseguir esse voo para Washington mais cedo, mas meus amigos preferiam ficar essas 13 horas em Miami. O negão da companhia disse: "Não fiquem em Miami! Miami é horrível, não tem nada aqui que preste! Vocês vão ser assaltados! Miame Beach e South Beach são pocilgas. Eu boto vocês num voo em meia hora para Washington. Lá vocês pegam um shuttle que faz um passeio com guia que leva vocês à Casa Branca, ao cemitério de Arlington, ao Congresso, Capitólio, Museu Smithsoniano, aos monumentos a Washington, Lincoln e Jefferson etc. Depois leva vocês de volta ao aeroporto a tempo de pegarem o voo para Nova Orleans." 

Tentei argumentar com meus amigos para irmos. Se Miami tem praia, Salvador também tem e nós não estávamos viajando por causa de praia, estávamos? Quem trocaria Washington por Miami por causa da praia? Meus dois amigos recusaram. 

Descobrimos, sonolentos, o guarda-volumes do aeroporto, guardamos nossas malas, pegamos um ônibus e fomos para South Beach. Quase 1 hora depois, saltamos do ônibus, tomamos outro, saltamos no começo de South Beach às 7 da manhã. Andamos durante 3 horas pela beira da praia, pela areia da praia, pela rua e pela calçada e não encontramos nada! Quase deserta. Pouquíssimas pessoas na praia e na rua, as loja fechadas, os restaurantes fechados, poucos carros e nada de movimento. Só às 10h conseguimos tomar um caríssimo café da manhã. Mais 1 hora andando pela praia num sol escaldante até o fim de South Beach. 

O fim mesmo! Acabou a praia, acabou a cidade, acabou tudo, não tinha mais nada. Só víamos um descampado, um terrenão baldio enorme, deserto e uma espécie de camping abandonado. Paramos para descansar, nem tomar um banho num chuveirinho que tinha na praia a gente podia, porque deixamos os shorts nas malas no aeroporto. 

Estávamos exaustos e morrendo de calor e eu amaldiçoando os amigos a cada minuto. Imaginava que estávamos ali naquele sufoco quando podíamos estar no Museu Smithsonian em Washington no ar condicionado ou no cemitério de Arlington onde eu poderia tirar fotos para minha coleção de fotos em cemitérios famosos. 

Descansamos numa sombra improvável, atravessamos um descampado e um estacionamento abandonado, saindo numa rua deserta. Pegamos um táxi arredio, perdido naquele ermo. Foi nossa salvação. O motorista, um negão haitiano, nos explicou o que estava acontecendo: "Miami só acorda depois das 11 horas da manhã!" 

Então foi isso. O povo nessa cidade ferve até de madrugada e só acorda quase meio dia. O haitiano nos levou até Miami Beach para, digamos, "apreciar o movimento". Senti-me um jeca total quando meus amigos pediram ao motorista para parar em frente à casa de Versacce para eles tirarem uma foto ali. "Onde tombou Versacce", me disse um deles. Eu preferi não contrariar e esperar no ar condicionado do táxi enquanto eles se enquadravam nas fotos em frente à mansão em um estilo que não consegui identificar. 

Finalmente vida! Finalmente Miami Beach, o povo patinando e se mostrando pelos calçadões. Vamos apreciar o movimento. Mas não dá para ficar apreciando movimento até 6 da tarde quando teríamos que voltar ao aeroporto para pegar o bendito voo. Bem, já que estamos nessa zorra dessa cidade por causa dessa zorra dessa praia vamos aproveitar e tomar um banho de mar né? Quem disse que consegui consenso? Um dos amigos que insistiram tanto para ficar em Miami por causa do mar, não queria tomar banho por dois motivos: 1º motivo, ele já havia se banhado no Atlântico e seu sonho era tomar banho no Pacífico! 2º motivo, ele não tinha shorts. 

Eu não podia discutir o primeiro motivo sob pena de perder completamente o resto de minha sanidade mental, mas o segundo dava para resolver. Compraríamos shorts em uma loja, loja não faltava! Convenci um, não o que queria o Pacífico. Argumentei até os limites da minha paciência que havíamos andado mais de 3 horas na beira da praia, sentimos como aquela cidade é quente e o que ele iria fazer quando nos visse, alegremente, na água do mar? Ou ele achava que iríamos perder a oportunidade de tomar um banho, mesmo que fosse um banho no Atlântico? 

Ele retrucava alegando que não teríamos como tirar a água salgada do corpo antes de ir ao aeroporto. Apontei os chuveirinhos nas praias mas ele, irredutível, garantiu que não iria tomar banho nem comprar shorts. 

Eu disse: "Olha, seu sacana, se você chegar na beira da praia e resolver entrar na água, não vai poder voltar aqui e comprar shorts porque temos pouco tempo." Como eu previra, o sacana mal botou os pés na areia lotada de gente bonita resolveu que queria entrar no mar. 

Quase explodi! Disse que ele não iria voltar porque a loja era longe e ele agora iria ficar ali vendo a gente se divertir. A cara dele deu pena e acabei sugerindo que ele dividisse o short com o outro amigo. Meu amigo que comprou o short o tirou na água e ficou de cueca dentro do mar. Levei o short dele para o outro vestir e fiz barreirinha para ele tirar a calça jeans e vestir o short do outro que estava no mar. 

Depois desse processo resolvemos dar uma volta pela praia e quando notamos estávamos há quase uma hora andando e nosso amigo, uma das pessoas mais brancas que conheço,  fora esquecido na água do mar sob um sol escaldante. Ao voltarmos o confundimos com um pimentão cozido no forno, pois ele, inibido e de cueca, não quis sair da água e de qualquer modo não alugamos um guarda-sol. 

Havíamos chegado àquela praia perto das 2 da tarde e estipulamos ficar só até as 4 horas, pois ainda tínhamos que nos lavar no chuveirinho da praia, tirar as roupas molhadas, vestir  roupas secas e pegar um ônibus para o aeroporto. O capítulo do chuveirinho foi quase uma novela. Por pouco não fomos presos por atentado ao pudor, pois tínhamos que nos lavar, tirar os shorts, vestir as calças e camisas, calçar os tênis ali mesmo e secar no sol pois nem toalhas tínhamos. 

As roupas molhadas foram guardadas nas sacolas plásticas da loja. Pegamos um ônibus. 

Um ônibus errado!  Ele não nos levou ao aeroporto. Perguntei ao motorista então qual era o ônibus certo e ele, gentilmente, nos deixou saltar e indicou outro ponto onde pegaríamos o ônibus correto. Já eram mais de 4 da tarde e o motorista disse que devíamos pegar o ônibus com a letra J. Ou seria letra G? Ele falou numa mistura de inglês e espanhol. 

Afinal era o ônibus. G ou J? Quase pegamos o ônibus errado novamente, mas fomos demovidos por uma negona jamaicana ou panamenha, que estava no ponto e que, praticamente, me puxou pela mochila de cima do segundo degrau. Agora sabíamos que era letra G. 

Após esse vexame, esperamos quase uma hora. O ônibus certo passou mas nós estávamos com tanto sono que dormimos. Os três! A negona dominicana ou salvadorenha não estava mais ali para nos salvar. Esperamos mais uma eternidade até outro ônibus. Meus amigos queriam ir de táxi mas eu disse que sairia muito caro, afinal foi mais de uma hora até o aeroporto. Finalmente, o ônibus certo de novo. 

Assim que entrei perguntei à motorista, uma negona de perucão e dedos cheios de anéis: “Miss, esse ônibus demora meia hora até o aeroporto não é?" 

Ela respondeu, seca: "Não! Uma hora" .

Eram exatamente 5 da tarde e ainda tínhamos que pegar as malas no guarda volumes e fazer o check in. Foi então que lembrei que nos Estados Unidos o povo sai do trabalho as 5:00. Amaldiçoei-me por não ter aceitado a ideia do táxi. Amaldiçoei meus amigos por quererem ficar em Miami em vez de Washington. E estávamos com uma fome! Nossa única comida do dia foi o café da manhã às 10 horas e um sorvete ao meio dia. 

Sem almoço, com sono, salgados, suados, com areia em algumas partes, um pouco sujos, cansados e estressadíssimos. Aquele era apenas o primeiro dia das minhas férias. Rush! O primeiro rush verdadeiro da minha vida. Faltava meia hora para chegar ao aeroporto e ainda estávamos presos no engarrafamento a uma milha de distância. Parecia que perderíamos o voo. Era o último voo do dia para Washington. Outro só no dia seguinte. Não havia mais voos para Nova Orleans. Teríamos que dormir em Miami. Não conseguia pensar em horror maior. 

A negona motorista com unhas imensas pintadas de lilás parecia imune ao meu sofrimento. Meus amigos traziam a angústia estampada no rosto. O trânsito parecia morto. O ônibus não andava, os minutos não paravam de andar. Algum anjo deve ter feito algum milagre pois o engarrafamento, subitamente, desapareceu. A negona motorista de lentes de contato verdes acelerou. Talvez devido às duas moças americanas que também estavam no ônibus e iriam pegar, coincidentemente, o mesmo voo que a gente. 

Como toda tragédia que se preza, essa não acabou assim tão fácil. O que aconteceu ali não sucedeu comigo em qualquer outro lugar em minha vida e aconteceu exatamente em Miami: logo após o engarrafamento desaparecer, o ônibus quebrou! Poderia escrever os e-mails dos colegas que estavam comigo no ônibus para qualquer dúvida ser esclarecida, mas, infelizmente, os dois não dirigem mais a palavra a mim, nem a eles mesmos, diga-se de passagem. Também não tenho o endereço das duas americanas e nem o nome da motorista black power. Parece mentira. Em minha vida inteira nenhum ônibus que peguei nunca havia quebrado. Em lugar algum do mundo em que peguei ônibus o desgraçado quebrou (exceto o ônibus que rolou uma ribanceira comigo dentro em Goiás matando um passageiro e ferindo outros em 1987). 

Pois o desgraçado do ônibus quebrou em Miami com a gente dentro e faltando 20 minutos para o voo, meia milha distante do aeroporto e após o maldito engarrafamento. As meninas americanas e nós três cercamos a negona de colares de pérolas falsas que sacou um celular e ligou para a central. Ela nos disse: "I am doing my best!" Parecia chocada, pois acredito que ela nunca vira um ônibus quebrar em pleno trânsito. 

Só que o "best" dela não estava funcionando. Não ia dar tempo de esperar o ônibus reserva. A negona suada sentiu a nossa dor e disse: "Ok, I will try!" E o ônibus foi sendo levado por ela aos solavancos. A gente tinha já perdido toda esperança. O aeroporto apareceu à nossa frente mas ainda estava longe. A negona, irritada, chegou a dirigir quase 300 metros aos trancos quando o ônibus quebrou de vez. 

Então ela rugiu algo como: “Corram seus bastardos!”  E a gente nem pestanejou. Saltamos do ônibus no meio do trânsito. Corremos feito loucos, nós três e as duas meninas. Só que elas não precisavam pegar as malas no guarda volumes e nós sim. 

Mas onde ficava o maldito guarda volumes? O aeroporto era imenso e havia 3 guarda-volumes. Não tínhamos tempo, nos dividimos e quando um achou o guarda-volumes certo gritou para os outros dois. Faltavam 3 minutos e a moça do guarda-volumes parecia ter tomado valium. Foi o tempo de pegar as malas e subir o elevador. Por sorte, o balcão da United estava exatamente à nossa frente, mas ainda tínhamos que fazer o check in. 

Estávamos cansados, famintos, suados, salgados, sujos e fedendo. As roupas grudadas no corpo, suor frio de medo misturado com o suor do calor terrível de Miami. Daria qualquer coisa por uma coca cola gelada com um Big Mac. Fomos os últimos a entrar no avião. Ao me sentar tive uma crise de riso histérico. Meus amigos se assustaram mas quanto mais eles se envergonhavam, mais eu gargalhava para desabafar e irritá-los ainda mais. Eu sentia o estômago doendo de fome e também pelo riso histérico. 

Foi então que uma aeromoça aproximou-se de mim preocupada e perguntou o que é que eu estava sentindo, eu respondi: Fome! Ela me trouxe um maldito pacote de amendoins e um copo de coca cola. O voo não servia jantar. 

PERDIDOS NO QUEENS


Logo que cheguei com dois amigos em Nova Yorque, um casal americano foi nos pegar no aeroporto La Guardia, que fica no Queens, um bairro maior do que a ilha de Manhattan e nos levou para dormir a primeira noite na sua linda casa em Staten Island, em frente à Baía de Nova Yorque. Mas essa moleza foi só no primeiro dia, no dia seguinte seguimos para nosso hotel. 
  
Aproveitamos bastante os cinco incríveis dias na cidade que nunca dorme apesar de o meu amigo que visitava NY pela primeira vez, mesmo com todos os meus alertas, ter desrespeitado o primeiro e máximo mandamento dos viajantes: NÃO PERDERÁS TEMPO EM NOVA YORQUE! 

Tempo foi tudo que ele perdeu. Paciência foi tudo que perdi. Ele demonstrou seus métodos de organização que fariam um virginiano radical com TOC parecer um inocente amador. Tinha 87 maneiras diferentes de pentear os cabelos e rituais de escovação dos dentes que fariam inveja a um sadomasoquista profissional e me aborrecia com a dedicação suprema ao consumismo. 

Após cinco dias de museus, parques,  noitadas, bares, musicais...deixaríamos NY e na noite anterior à nossa partida, meu amigo nos comunicou que iria acordar mais cedo no dia seguinte para conhecer o Central Park. Respondemos: "Meu filho, nosso carro está reservado para as 10 da manhã, você ficou 5 dias em NY e não conheceu o Central Park?" 

Detalhe: O Central Park, que ficava a dois quarteirões do nosso hotel, tem 340 hectares, mais de 500 mil árvores, 93 quilômetros de trilhas, o comprimento de 20 quarteirões e a largura de 6. Ele queria conhecer em 2 horas das 8 às 10 da manhã. 

E foi. 

Havíamos decidido alugar um carro e seguir por cinco horas até Boston para ter a experiência de dirigir na região da Nova Inglaterra que é muito bonita e com ótimas estradas. Se saíssemos de Nova Iorque as 10 da manhã, como previsto, com as paradas, chegaríamos em Boston lá para as 5 ou 6 da tarde. 

Isso aconteceria com pessoas normais, não conosco. 

Já eram 10 da manhã e meu amigo não voltava. Descemos para a rua todas as malas e ficamos em pé na porta do hotel esperando em vão seu retorno. Liguei para a locadora para mudar a reserva do carro para o meio-dia. Quando deu meio dia e ele também não apareceu, liguei novamente para a locadora para trocar para 1 da tarde.  A atendente alertou que mudava pela última vez e que se eu não buscasse o carro até 1 da tarde, cancelaria a reserva e eu pagaria mais caro. 

Ficamos mais 40 minutos na calçada em frente do hotel sem saber o que tinha acontecido com o sacana.  E se ele estivesse morto? E se tivesse sido assaltado, estuprado, preso? 

Finalmente, já no desespero, o fdp surge num táxi com 3 horas de atraso. Calmamente, ainda foi buscar uma roupa na lavanderia em frente ao hotel e ainda queria abrir a mala, ali mesmo na rua, para guardar as roupas lavadas. Eu o impedi aos berros. Se ele abrisse aquela mala ali levaria mais 3 horas para organizar tudo.  Pegamos um outro táxi, que nos levou a locadora. Aí começa o segundo problema. 

O carro era um Taurus automático e nenhum de nós sabia dirigir um carro daqueles naquela época. Pedimos um outro carro manual mas eles não tinham nenhum. Não podíamos dizer que não sabíamos dirigir esse tipo de carro porque senão a loja não alugaria. O que fazer? Ler o manual, claro. 

Guardamos as malas e entramos no Taurus, que parecia uma lancha de tão grande. Peguei o manual para ler. Em inglês. Eu tenho problemas para ler manual até em Português, o que dirá sob pressão na porta de uma locadora na rua 44 com a 2ª avenida ao lado da ONU. 

Para piorar as coisas, eis que aparece um policial atrás de mim e diz que aquela é uma área de segurança das Nações Unidas e não poderíamos ficar parados ali. Ao lado dele, o atendente da locadora apareceu sem saber o que ainda estávamos fazendo ali. 

Não sei até hoje como consegui ligar o Taurus e passar a única marcha que tem e que para complicar nossa vida era uma daquelas de mão ao lado do volante. Eu li que tinha que botar no D, mas como fazer isso se a alavanca estava dura e não encaixava?  Então descobri que a marcha só encaixava eu pisasse no freio até o fim. 

Os próximos passos eram: entrar na 2ª avenida, pegar a rua 48, passar pela 1ª avenida em frente ao prédio da ONU, tomar a highway FDR e seguir até a Ponte Triborough para a rodovia 95 que me levaria até Boston. Esse trajeto revelou-se um tormento. A embreagem que não existia parecia me atrair como aqueles membros amputados que coçam e o freio era hipersensível. O primeiro toque do pé nele atirou tudo que estava nos bancos no chão. Ok, freio, eu te respeito! 

A 2ª avenida parecia ser uma experiência instransponível, mas conseguimos superá-la. Vencida essa etapa, despistado o guarda, atravessada a ONU, estávamos, sabe-se lá como, na FDR. 

Nosso guia de NY dizia que era só seguir o East River até a Ponte Triborough sem virar em lugar nenhum. A ponte foi vista à distância o que me acalmou, pois eu só imaginava o inimaginável: perder-me em Manhattan. Subi pelo acesso à ponte e, ao longe, vi 10 pedágios. Nove pedágios nos levariam até a rodovia 95 para Boston. Um dos pedágios não era o certo. Qual deles eu peguei? Eu bem sei do que eu sou capaz. Peguei o único pedágio que eu não poderia em hipótese alguma pegar.    

Estar perdido ali era um atestado de óbito para um estrangeiro. O filme Fogueira das Vaidades começa com um acidente ali naquele lugar, naquela ponte. O personagem de Tom Hanks se perde ali mesmo. Adoro a história mas nunca pensei em reproduzir aquela cena na minha vida. 

Percebi que estava no pedágio errado, mas aí já era muito tarde, pois apareceram vários carros atrás do meu e não pude retornar. 

Perguntei ao guarda do pedágio, num inglês corretíssimo e com toda calma: "Mister, sei que estou no pedágio errado e não posso dar ré, mas há um retorno para a rodovia 95? "

Ele respondeu: Yeah! 

Claro que perguntei: O senhor pode me dizer como eu pego esse retorno? 

Ele respondeu: No! 

Não pude acreditar. O homem não queria dizer onde era o retorno! Eu pensei que tinha entendido errado e insisti: Sorry Mister, but I am lost. I just want to know how can I take the detour to 95 road

Meu inglês foi perfeitamente entendido por ele e o dele por mim. Ele respondeu que não me diria onde era o retorno porque se ele dissesse e se eu me acidentasse, o culparia e ele não poderia se comprometer. 

A palavra bastard veio aos meus lábios, mas ficou por lá mesmo. 

A fila de carros aumentou atrás de mim e eu tive que arrancar com o Taurus para aquele terreno inóspito que era o Queens e o Bronx. 

A highway é um dos piores ambientes para se perder. Prefira o Saara! Não tem acostamento nem nada. Só a pista, horas de pista, mil retornos e a gente sem saber qual pegar. Na locadora, nos deram o mapa de Manhattan e da estrada para a Nova Inglaterra, mas não do Queens ou do Bronx. Não estava nos nossos planos nos perder ali. 

Sem mapa, sem acostamento, sem celular, sem informação e a cada retorno que passava ter que ouvir  dos meus amigos: “Será que o retorno não foi aquele que passou?” Eu estava tentando manter a calma e então gritava: "Ninguém fale comigo!!!Ninguém fale comigo!!!!" 

Reconheço esse momento de descontrole, mas ao mesmo tempo pensava que não fazia sentido algum uma batida, uma prisão, uma multa ou algo mais trágico na minha vida em pleno subúrbio de Nova Yorque. Minha vida não valia um filme trágico desses. 

Depois de quase 1 hora naquele ermo, sem sinal de esperança, vi finalmente uma placa que soou como uma gota de água para um sedento ou um acarajé para um faminto: AEROPORTO LA GUARDIA!!! 

Essa frase será usada na minha sepultura um dia como sinal de agradecimento aos deuses. Aeroporto La Guardia, um dia farei um poema com esse título. Estávamos de volta ao aeroporto, onde chegamos 5 dias antes. Imaginei que no aeroporto deveria haver um retorno, uma estrada para Boston. 

Entrei pela pista que levava ao aeroporto e passei quase meia hora tentando encontrar um americano no meio daquele inferno, mas só encontramos haitianos, paquistaneses, chineses ou filipinos. Ninguém para nos informar como encontrar o retorno para a 95. Não podíamos estacionar para pedir informações. 

Decidi por conta própria arriscar. Fui adiante e peguei outra highway. Ninguém garantia que era a estrada certa e eu arrisquei assim mesmo. Meus amigos deviam estar rezando, pois pararam de falar comigo. Após quase 1 hora, a Triborogh Bridge foi vista à distância. Pegamos outro pedágio. 

Quase sem acreditar disse ao moço algo assim: "Moço por favor, tenha pena desse pobre brasileiro perdido. Como eu faço para chegar na 95 até Boston?" 

Ele disse: Siga sempre. Você já está nela!. 

Quase não acreditei. Quase 2 horas perdido e finalmente free and safe. Essa sorte não teve o personagem de Tom Hanks em A Fogueira das Vaidades. 

Nossa. Saí melhor do que Tom Hanks!

14.1.21

ONDE OS VELHOS NÃO TÊM VEZ

    Tenho o hábito de ler sempre os autores de que gosto, que escrevem livros que combinam com meu gosto literário. A vantagem disso é se aprofundar no estilo daquele escritor e a certeza de uma boa experiência. Porém, isso me priva, às vezes, de descobrir grandes autores a quem ainda não tinha dado uma chance. E é sempre uma espécie de epifania cruzar com um escritor assim. Foi o que acabou de acontecer.

        Ainda estou sob o impacto da leitura de Onde os Velhos Não Têm Vez (No Country for Old Men), do norte americano Cormac McCarthy. No Brasil, o filme adaptado do livro recebeu o título: Onde os Fracos Não Têm Vez. Um balaço no juízo do leitor.

     Fico me perguntando por que ainda não tinha lido Cormac McCarthy, unanimemente reconhecido como um dos maiores escritores da atualidade e laureado com o prêmio Pulitzer pelo romance pós-apocalíptico A Estrada, também já adaptado para o cinema com Viggo Mortensen e Charlize Theron. Vai ser minha próxima leitura, pois McCarthy acabou de me viciar.

        Uma das características do autor é a maneira única de escrever, com um texto direto, fluido que lembra José Saramago quando não usa sinais para indicar os diálogos que costumam ter início no meio de uma frase. No começo a leitura pode parecer estranha, mas logo me acostumei a esse estilo peculiar e ao invés de ser um texto difícil na verdade é o contrário. É muito simples, com frases curtas em orações coordenadas, quase como a transcrição literal de pensamentos e falas dos personagens. Uma coisa viciante que não dá para parar. Seria como querer parar um pensamento.  

      Quase não se sabem as características físicas dos seus personagens, o que permite formar uma imagem mental por parte de cada leitor. Outras particularidades são a extrema violência das ações e a virilidade da narrativa e também dos personagens, como se a testosterona derramasse pelas páginas.

        Impossível não associar ao filme dos irmãos Coen, de 2008, indicado para 8 Oscar e que levou 4 estatuetas (inclusive filme, roteiro e direção, todos para as mãos dos Coen), além de ator coadjuvante para o assustador vilão interpretado por Javier Bardem.

A história segue três personagens: o xerife Bell (Tommy Lee Jones no cinema); o desafortunado Moss (Josh Brolin, na tela); e o já citado Javier Bardem, que encarna Chigurh, um dos antagonistas mais enigmáticos que já vi nas telas ou na literatura e que traz a marca da maldade gratuita de um psicopata com um ego gigantesco. Ele carrega um cilindro de oxigênio e costuma matar suas vítimas não com um revólver, mas com um único e mortal jato de ar comprimido na cabeça.

Acompanhamos, num fôlego só, a busca do xerife Bell e do vilão Chigurh pelo soldador Moss, que encontrou (por azar) uma sacola com milhões de dólares em pleno deserto ao lado de carros varados de balas e traficantes mortos em uma disputa de dois cartéis de drogas. O roubo do dinheiro leva Moss a uma fuga desesperada e um rastro de mortes que se seguem.

As reflexões internas do xerife Bell são um contraponto às ações frenéticas, interrompidas por elipses inesperadas e diálogos afiados. Transcrevo um trecho, mas poderia selecionar inúmeros outros: “Fechou os olhos sim. Fechou os olhos e virou a cabeça e ergueu uma das mãos para desviar o que não podia ser desviado. Chigurh atirou em seu rosto. Tudo o que Wells já tinha sabido ou pensado ou amado escorreu devagar pela parede atrás dele. O rosto de sua mãe, sua primeira comunhão, mulheres que tinha conhecido. Os rostos dos homens enquanto morriam de joelhos aos seus pés. O corpo de uma criança morta num barranco junto à estrada em outro país. Ficou caído parcialmente sem cabeça na cama com os braços abertos, a maior parte da mão direita faltando”.

Recomendo muito a leitura com sua sonoridade rara e fácil de acostumar. Em pouco tempo, a gente percebe que aspas, travessões e vírgulas não fazem mesmo a menor falta e a agilidade da narrativa e os diálogos irão hipnotizar o leitor que não sairá o mesmo após a última página.