12.6.22

NÓS

 

A Mãe de todas as distopias

Acabei de ler NÓS, do escritor russo Ievguêni Zamiátin, considerado a mãe de todas as distopias na Literatura. A obra foi publicada nos anos 1920, precursora de todas as famosas distopias literárias: Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), Laranja Mecânica (Anthony Burgess), O Conto da Aia (Margaret Atwood) e Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), além dos mais recentes Batlle Royalle, Jogos Vorazes e Divergente, todas tendo NÓS como fonte primordial. É curioso que todas as distopias posteriores geraram filmes impactantes, continuações e refilmagens, mas NÓS continua a ser pouco reconhecido.

A obra estava esgotada há anos no Brasil, mas retornou pelas mãos da Editora Aleph, numa edição de luxo, que traz duas leituras complementares: uma resenha de George Orwell de 1946 e a tocante carta enviada pelo autor Zamiátin ao superpoderoso dirigente Stálin, pedindo permissão para deixar a União Soviética por conta da perseguição política e censura feroz.

Em NÓS temos, como nas distopias seguintes, um governo totalitário, aqui chamado Estado Único, que, em nome do bem estar geral, privou a população de toda liberdade, uma sociedade na qual a inspiração é um tipo de epilepsia e a imaginação, uma doença que pode ser erradicada com uma lobotomia.  Temos também aqui uma figura masculina central dominante: o “Benfeitor”, o “pai” do futuro “Grande Irmão”, de 1984, e sob o jugo de quem todos estão irremediavelmente presos.

Estamos no século 26 e não há nenhuma liberdade de expressão nem privacidade. As casas são de vidro transparente e as pessoas têm direito a apenas 1 hora por dia para assuntos particulares, quando podem abaixar as persianas. Nessa única hora está incluído o sexo, que deve ser requisitado através de um formulário. As pessoas não têm filhos particulares e nem mesmo nome, mas números.

O protagonista, o engenheiro D-503, está “feliz” com sua vida genérica até que uma mulher aparece na sua vida, I-330, que o faz questionar tudo em que acreditava. Ao ver-se completamente abalado por um novo sentimento, é diagnosticado por um médico como uma doença fatal: “Você desenvolveu uma alma”.

A ideia tem referências na expulsão do Jardim do Paraíso e George Orwell diz em sua resenha de NÓS: “O princípio condutor do Estado é que felicidade e liberdade são incompatíveis. No Éden, o homem era feliz, mas na sua loucura ele exigiu liberdade e foi expulso. Agora o Estado Único restaurou sua felicidade ao retirar a liberdade”. Mas então reaparece a mulher, qual uma nova Eva, para bagunçar tudo de novo.

O livro não chega a ser tão bom quanto as obras posteriores que incomodam muito pela contundência e mobilizam muito mais os leitores para os horrores das políticas totalitárias de Estado, mas aqui temos a relevância de tratar-se do primeiro livro distópico escrito, surgindo em plena ditadura soviética sob o tacão de Stálin e é incrível saber que Zamiátin que foi prisioneiro no regime czarista, voltou para o mesmo corredor da mesma prisão pelas mãos justamente dos bolcheviques, após a revolução.

NÓS merece ser lido quase como uma obrigação moral de todos que valorizam a liberdade de pensamento na Literatura. A obra, que tinha sido banida do seu país natal por mais de 60 anos, só podendo ser publicada em outras línguas, apenas conseguiu o direito de tradução em russo em 1988, graças à abertura promovida por Mikhail Gorbatchov.

Trata-se de um atestado sobre a importância da liberdade de pensamento crítico e o ofício de um escritor e é comovente ler na nova edição a carta-apelo de Zamiátin a Stálin: “Como escritor, ser privado de escrever é como uma sentença de morte. Não posso continuar meu trabalho pois nenhuma atividade criativa é possível numa atmosfera de perseguição sistemática que aumenta de intensidade ano após ano”.

7.6.22

UM HOMEM SÓ

Terminei de ler o maravilhoso livro Um Homem Só, do escritor e dramaturgo inglês Christopher Isherwood, um clássico da literatura LGBT e muito relevante pela atemporalidade e universalidade do tema: a solidão de um homem gay mais velho na década de 1960. A questão tem ecos em qualquer época já que o ser humano continua a ser o mesmo de sempre, com as mesmas dores e questões e a solidão de um gay mais velho não é diferente.

      O livro foi lançado no Brasil pela Cia das Letras e acompanha um dia na vida do professor George, cujo companheiro de toda a vida, Jim, morreu num acidente. A rotina e a falta de sentido na vida do protagonista se tornou algo tão avassalador e insuportável, que já sabemos de cara que ele decidiu que aquele será seu último dia de vida. Ele não aguenta mais a solidão. Se vai conseguir levar a intenção até o fim só lendo a obra para saber.

    Um Homem Só tem uma introdução impecável do ativista João Silvério Trevisan, ele próprio um escritor gay de 78 anos e por isso mesmo extremamente relevante para acompanhar a leitura da obra. A história foi adaptada para o cinema com Colin Firth como o protagonista, indicado ao Oscar de melhor ator em 2010, e contou com atuações memoráveis de Julianne Moore e do jovem ator Nicholas Hoult que magnetiza o olhar nas cenas em que seduz o professor mais velho, ainda mais quando a gente se lembra dele como o menino do filme Um Grande Garoto, de 2002. Infelizmente, no Brasil o filme que tem o mesmo nome do livro, recebeu o pavoroso título de Direito de Amar.

      No trecho a seguir o autor descreve a importância para ele da sua relação com o companheiro: “Seu livro está errado quando lhe afirma que Jim é o substituto que encontrei para um filho, uma mulher, um irmão caçula de verdade. Jim não era substituto de nada. E, permita-me dizê-lo, não existe substituto para Jim em lugar nenhum”.

      Permita-me, então, divagar um pouco sobre o encanto que uma obra de arte (um livro) pode proporcionar ao abrir janelas para outras obras de arte (outros filmes, um musical, uma peça, uma pintura). Isso aconteceu comigo exatamente por conta de Christopher Isherwood.

      Antes de conhecer o autor, eu já havia assistido ao filme Cabaret, de 1972, indicado a 10 prêmios Oscar inclusive para a atriz Liza Minelli e para o diretor Bob Fosse. Revi o filme várias vezes, tenho a trilha sonora premiada e, inclusive, tive o privilégio de assistir ao musical homônimo na Broadway, no icônico teatro Studio 54. Não me canso de ouvir as canções "Wilkommen", "Mein Herr", "Maybe This Time" e "Money, Money".

      Eu não sabia então que Cabaret era baseado no livro Adeus Berlim, de 1939, que conta a história de um escritor inglês dos anos 30, se esbaldando na frenética Berlim de antes da 2ª Guerra Mundial, obra autobiográfica de Isherwood. Infelizmente ainda não li Adeus Berlim mas esta falha não durará muito tempo.  

      Só me atentei que havia uma ligação entre as histórias quando assisti a um outro filme sobre a vida do autor: "Chistopher and His Kind", drama romântico-biográfico britânico dirigido por Geoffrey Sax em 2011 que é a história das viagens do autor a Berlim, seus romances e aventuras, inclusive o namoro com o célebre poeta romântico inglês W. H. Auden.

      Então temos aqui dois livros, três filmes, uma peça musical....que tal uma pintura? 

     Então entra em cena ninguém menos do que o pintor americano David Hockney, um dos maiores artistas plásticos modernos com inúmeras pinturas celebradas e que simplesmente pintou o quadro “Christopher Isherwood and Don Bachardy”, (foto abaixo) hoje no acervo do Museu Metropolitan de Nova Yorque, que retrata o escritor, já mais velho, na sua casa em Santa Monica na Califórnia, ao lado do seu companheiro da vida toda. 

     Don Bachardy, o grande amor da vida de Isherwood foi inspiração para o personagem Jim, do livro, mas ao contrário de Jim, Bachardy não morreu. Ele até faz uma ponta no filme Direito de Amar. A motivação da história foi uma breve separação que Isherwood e Bachardy tiveram. Mas a relação foi retomada até a morte de Isherwood em 1986, aos 82 anos.

      A leitura de Um Homem Só é quase pedagógica para quem deseja compreender a marginalização da solidão de um gay mais velho, não fosse pela humanidade da questão em si, pela relevância dela para jovens e adultos LGBT que, graças ao hedonismo de uma geração que recém descobriu uma importante e duramente conquistada liberdade e um intrigante culto ao corpo belo e jovem, não concebem as questões inerentes à velhice e à solidão.