27.11.22

UM MOMENTO DE LOUROS VERDES

Este foi o terceiro livro que li (após Criação e Ao Vivo do Calvário) e o primeiro livro de contos de autoria do romancista,  ator, tradutor, ensaísta e dramaturgo norte-americano Gore Vidal. 

Este livro, esgotado no Brasil, foi lançado nos anos 50 quando o autor estava com pouco mais de 20 anos. Ele era de uma família rica de políticos famosos, assumidamente homossexual, analista brilhante e que chegou a ser candidato ao senado nos EUA. 

Dos sete contos deste livro, que de um modo ou outro tratam do tema da homossexualidade, gostei especialmente de três: “O Papo Roxo” tem um final belíssimo sobre a perda brusca da inocência de duas crianças que tentam com dificuldade matar um pássaro que sofria com uma asa quebrada “Ficamos ali parados de pé muito tempo, sem olhar um para o outro, com a pilha de pedras entre nós. O sol brilhava, esplêndido. Nada havia mudado no mundo, mas, de súbito, sem uma só palavra e no mesmo momento, ambos começamos a chorar.”

O conto “Três Estratagemas” que se passa no litoral da Flórida, conta a história de um americano viúvo, aposentado, de meia-idade e com dentes postiços que passa os dias ociosamente tomando sol e bebendo rum enquanto aborda belos rapazes na praia: “É preciso ser prático. Não é POR QUE recebemos certas atenções e sim as atenções em si mesmas” e o fato de os rapazes que ele aborda não terem dinheiro lhe é conveniente: “Não é pior a pessoa ser amada por seu dinheiro do que por algo tão espúrio e efêmero quanto a beleza”.

Mas o conto mais bonito é “O Troféu Zenner”, publicado em 1950 e que, tenho certeza, inspirou o escritor Caio Fernando Abreu a escrever Aqueles Dois, conto publicado no seu livro Morangos Mofados, de 1982. Tanto no conto de Vidal quanto no de Caio Fernando, a homossexualidade dos personagens nunca é citada, mas nos dois casos eles são expulsos do colégio e da repartição devido ao seu suspeito afeto mútuo. Até seus nomes são curiosamente semelhantes: Sawyer e Flynn e Saul e Raul.

Nos dois contos os personagens são tão masculinos que por não demonstrarem qualquer aparência estereotipada, surpreendem a todos pelo carinho deles. Tanto Gore Vidal quanto Caio Fernando Abreu fazem seus ‘heróis’ darem a volta por cima após a expulsão, como um tipo de redenção, o que é surpreendente no caso de Vidal que tem uma famosa veia cínica. 

Ambos os finais são inesquecíveis. O do conto de Caio Fernando Abreu: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz. Quase todos tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. E o do conto de Vidal: “Ofuscado pelo clarão do sol, ele [o professor que expulsa os rapazes], atravessou o quadrângulo, cônscio de que nada havia que pudesse fazer”.


26.11.22

O MINISTÉRIO DA FELICIDADE ABSOLUTA e O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

O primeiro livro que li da autora e ativista indiana Arundhati Roy foi seu livro de estreia: O Deus das Pequenas Coisas que trata do amor proibido entre pessoas de castas diferentes na Índia. Fiquei tão encantado pela maneira sensível da autora contar a história, que a incluo nos meus livros favoritos da vida toda. A obra deu a Roy o privilégio de ser a primeira pessoa indiana a vencer o Man Booker Prize, a mais importante láurea literária do Reino Unido.

No seu segundo livro, O Ministério da Felicidade Absoluta, Arundhati Roy traça, 20 anos após o sucesso de O Deus das Pequenas Coisas, uma teia intrincada envolvendo Anjun, uma mulher transgênero muçulmana (uma hijra), uma criança abandonada que quer ser chamada de Saddam Hussein e uma jovem arquiteta perseguida pela sua luta pela libertação da Caxemira, entre vários outros personagens interessantíssimos numa ode aos excluídos da Índia, pungente retrato das discriminações e violações de direitos humanos em todos os possíveis e terríveis aspectos do seu país.

Se sua primeira obra, que é o maior best-seller indiano, levou a autora a responder a um processo por “obscenidade”, esse segundo livro lhe rendeu ameaças de morte por retratar criticamente o conflito na Caxemira. Um parlamentar indiano propôs que Roy fosse utilizada pelo exército como escudo humano. 

Em um dos trechos, repleto de dolorosa ironia, ela escreve: “Nada assustava mais aqueles assassinos do que a perspectiva de azar. Afinal, era para afastar o azar que os dedos a segurar espadas cortantes estavam cobertos de pedras da sorte e que os pulsos brandindo cassetetes de ferro estavam adornados com fios vermelhos amorosamente amarrados por mães zelosas”.

O livro reflete que num país com 300 milhões de deuses, a banalidade e naturalidade das doenças, da fome, corrupção, torturas, guerras civis, mendicância, acidentes de trem, filas gigantescas em hospitais imundos, cemitérios habitados por indigentes, vazamentos de gás, mutilações... são tão naturais que não chamam mais atenção, como uma paisagem que sempre esteve lá. Em outro trecho ela consegue trazer um pouco de humor negro, como quando diz: “Depois de uma festa, elas resolveram andar um pouco e tomar o ar fresco. Naquela época, havia algo como ar fresco na cidade”.

Talvez o leitor brasileiro menos informado sobre a conflituosa história da Índia, não aproveite tanto os capítulos em que a autora trata das guerras da Caxemira e os conflitos civis envolvendo indianos, muçulmanos paquistaneses e aguerridos caxemires, realmente com muitas informações que não estamos acostumados, mas é reconhecível por qualquer um o drama da discriminação sofrida pelas pessoas trans em praticamente todo o mundo: “Em urdu, a única língua que ela conhecia, todas as coisas – tapetes, roupas, livros, canetas, instrumentos musicais, tinham gênero. Tudo ou era masculino ou feminino. Tudo, menos seu bebê. Sim, ela sabia que havia uma palavra para os iguais a ele: 'hijra'. Duas palavras, na verdade: 'hijra' e 'kinnar'. Mas duas palavras não fazem uma língua”.

Surpreende também que apesar de tudo, a obra consiga ter tanto humor fino em meio aos horrores, um respiro para que o leitor consiga avançar pelas tragédias como em momentos em que descreve os hábitos das mulheres trans: “Ela aprendeu a se comunicar com a assinatura hijra de bater palmas com os dedos estendidos, como um tiro, e que podia significar qualquer coisa – sim, não, talvez, a piroca da sua irmã, você nasceu pelo cu. Só outra hijra era capaz de decodificar o que significava especificamente o estalo específico, naquele momento específico”.

SE A RUA BEALE FALASSE e O QUARTO DE GIOVANNI

Na década de 1980, emocionado, li O Quarto de Giovanni, publicado em 1956 pelo norte-americano, ativista gay e militante negro James Baldwin, livro que conta a história intensa e tristíssima do amor do jovem garçom italiano Giovanni e do norte-americano David, um complicado bissexual numa Paris do pós-guerra.

O livro, lançado originalmente no Brasil com o título resumido de Giovanni, mexeu tanto comigo que o reli muitas vezes ao longo dos anos, sempre com imensa pena por nunca mais ter a chance de poder lê-lo pela primeira vez. 

Vários dos meus amigos foram obrigados a ler a minha cópia mas, infelizmente, preciso admitir que nenhum deles teve um décimo do meu entusiasmo. Cheguei mesmo a considerar romper uma das amizades quando o meu então amigo leitor declarou sua torcida pelo personagem mais odioso do livro.

Em 1986, tive o privilégio de assistir sozinho à peça homônima, apresentada uma única vez em Salvador pelos então atores globais Caíque Ferreira e Hugo Della Santa, ambos vitimados pela AIDS dois anos depois. Foi a primeira vez que fui sozinho ao teatro e lembro que chorei muito no final.


Muitos anos depois de ter lido O Quarto de Giovanni, acabo de ler outra obra de Baldwin: Se a Rua Beale Falasse, de 1974, quinto livro do autor e cuja adaptação para o cinema deu o Oscar e o Globo de Ouro à atriz Regina King.

O livro se passa no bairro negro do Harlen em Nova Yorque e conta a história de Tish que aos 19 anos se descobre grávida do noivo Fonny, um escultor negro preso injustamente pelo estupro de uma porto-riquenha. Tish, a narradora, fará de tudo para libertar Fonny, cuja mãe Sharon viaja até Porto Rico para confrontar a suposta vítima do estupro que também é, a seu próprio modo, outra vítima do sistema. É uma cena intensa e que, no filme, demonstra o enorme talento da premiada Regina King.

A história tem o mérito extra de ser escrito por um homem, mas que tem como narradora uma moça negra grávida, o que demonstra uma imensa sensibilidade do autor de narrar a história sob o ponto de vista de uma jovem numa condição impossível de ser plenamente sentida por um homem.


Fonny, Tish e suas famílias e amigos, enfrentam o peso do racismo estrutural e sistêmico da Polícia e do Judiciário. Em um desabafo, Fonny diz: “Acho que não tem um branco neste país que não fique de pau duro ao ouvir um preto gemendo de dor”.

Tanto em O Quarto de Giovanni quanto em Se a Rua Beale Falasse, James Baldwin trata de temas espinhosos, como homofobia e racismo internalizados. No primeiro livro, publicado mais de uma década antes da Revolta de Stonewall, catalizadora dos movimentos LGBT, Baldwin aborda no subtexto a discriminação sexista interna entre homens bissexuais, que, mesmo vítimas do patriarcado heteronormativo, se consideram superiores aos gays afeminados, às drag queens e às mulheres trans graças à sua passibilidade heterossexual,

Já no segundo livro, além da discriminação sofrida pelos negros, alguns dos personagens têm que enfrentar, dentro do seu próprio núcleo familiar, um preconceito hoje conhecido como colorismo, em que alguns negros se julgam melhores do que outros por serem menos escuros.

O Quarto de Giovanni e Se a Rua Beale Falasse merecem ser lidos tanto por negros quantos gays, mas muito também por aqueles leitores que, não pertencendo a nenhuma dessas categorias, têm a corajosa empatia para tentar conhecer um pouco do drama pelo qual essas pessoas passam.