Na
década de 1980, emocionado, li O Quarto de Giovanni, publicado em 1956 pelo
norte-americano, ativista gay e militante negro James Baldwin, livro que conta
a história intensa e tristíssima do amor do jovem garçom italiano Giovanni e do norte-americano David, um complicado bissexual numa Paris do pós-guerra.
O livro, lançado originalmente no Brasil com o título resumido de Giovanni, mexeu tanto comigo que o reli muitas vezes ao longo dos anos, sempre com imensa pena por nunca mais ter a chance de poder lê-lo pela primeira vez.
Vários dos meus amigos foram obrigados a ler a minha cópia mas, infelizmente, preciso admitir que nenhum deles teve um décimo do meu entusiasmo. Cheguei mesmo a considerar romper uma das amizades quando o meu então amigo leitor declarou sua torcida pelo personagem mais odioso do livro.
Em 1986, tive o privilégio de assistir sozinho à peça homônima, apresentada uma única vez em Salvador pelos então atores globais Caíque Ferreira e Hugo Della Santa, ambos vitimados pela AIDS dois anos depois. Foi a primeira vez que fui sozinho ao teatro e lembro que chorei muito no final.
Muitos anos depois de ter lido O Quarto de Giovanni, acabo de ler outra obra de Baldwin: Se a Rua Beale Falasse, de 1974, quinto livro do autor e cuja adaptação para o cinema deu o Oscar e o Globo de Ouro à atriz Regina King.
O livro se passa no bairro negro do Harlen em Nova Yorque e conta a história de Tish que aos 19 anos se descobre grávida do noivo Fonny, um escultor negro preso injustamente pelo estupro de uma porto-riquenha. Tish, a narradora, fará de tudo para libertar Fonny, cuja mãe Sharon viaja até Porto Rico para confrontar a suposta vítima do estupro que também é, a seu próprio modo, outra vítima do sistema. É uma cena intensa e que, no filme, demonstra o enorme talento da premiada Regina King.
A história tem o mérito extra de ser escrito por um homem, mas que tem como narradora uma moça negra grávida, o que demonstra uma imensa sensibilidade do autor de narrar a história sob o ponto de vista de uma jovem numa condição impossível de ser plenamente sentida por um homem.
Fonny, Tish e suas famílias e amigos, enfrentam o peso do racismo estrutural e sistêmico da Polícia e do Judiciário. Em um desabafo, Fonny diz: “Acho que não tem um branco neste país que não fique de pau duro ao ouvir um preto gemendo de dor”.
Tanto em O Quarto de Giovanni quanto em Se a Rua Beale Falasse, James Baldwin trata de temas espinhosos, como homofobia e racismo internalizados. No primeiro livro, publicado mais de uma década antes da Revolta de Stonewall, catalizadora dos movimentos LGBT, Baldwin aborda no subtexto a discriminação sexista interna entre homens bissexuais, que, mesmo vítimas do patriarcado heteronormativo, se consideram superiores aos gays afeminados, às drag queens e às mulheres trans graças à sua passibilidade heterossexual,
Já no segundo livro, além da discriminação sofrida pelos negros, alguns dos personagens têm que enfrentar, dentro do seu próprio núcleo familiar, um preconceito hoje conhecido como colorismo, em que alguns negros se julgam melhores do que outros por serem menos escuros.
O Quarto de Giovanni e Se a Rua Beale Falasse merecem ser lidos tanto por negros quantos gays, mas muito também por aqueles leitores que, não pertencendo a nenhuma dessas categorias, têm a corajosa empatia para tentar conhecer um pouco do drama pelo qual essas pessoas passam.
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