16.7.21

BATTLE ROYALE

Acabo de ler Battle Royale, best seller japonês cuja adaptação para o cinema é considerado por Quentin Tarantino seu filme favorito de todos os tempos. Exagero do diretor de Django Livre e Kill Bill? Creio que sim, mas não há como negar que a história preenche todos os requisitos de um filme tarantinesco, repleto de violência extrema e morticínio.

Para ter-se ideia do nível da violência, o livro foi finalista do Japan Grand Prix Horror Novel, mas foi desclassificado pelo seu conteúdo polêmico. O livro virou um filme com uma sequência, série de mangás e um jogo eletrônico. O filme está disponível no YouTube dublado, o que me parece mais conveniente pois não gosto muito da língua japonesa no cinema, cheia de gritinhos esganiçados.

A história se passa numa ilha japonesa onde 42 alunos do ensino fundamental são confinados e obrigados a lutar até a morte. Haverá apenas um vencedor em um programa de um governo japonês totalitário que nesta distopia é a República da Grande Ásia Oriental. Os 21 rapazes e 21 moças recebem coleiras de metal que podem ser explodidas caso algum deles resolva fugir ou se ninguém morrer durante 24 horas.

Cada participante recebe um kit de sobrevivência com uma arma aleatória que pode ser uma metralhadora ou um simples garfo, um colete a prova de balas ou um bumerangue. A forma como cada um usará sua arma fica por conta da sorte e habilidade.

Apesar de ter mais de 650 páginas, o livro poderia ser maior para abarcar todas as diversas subtramas internas. Uma grave falha está no rebuscamento de certa linguagem quase barroca como esta: "Um cartucho dourado saiu voando e os raios de sol se refletiram nele enquanto abria caminho entre os galhos" e no abuso de soluções narrativas como o fato de os personagens encontrarem facilmente na ilha isolada aparelhos eletrônicos ou remédios e possuírem habilidades impossíveis para estudantes de ensino fundamental. 

Tenho sérias ressalvas à linguagem do livro. A história é muito boa, o seu desenvolvimento, no entanto, não me agradou tanto. Percebe-se que o autor lançou mão de diversos facilitadores de narrativa e preguiça no tratamento de algumas questões como a exibição do único personagem gay entre os 42 participantes. Nunca li uma descrição tão estereotipada de um personagem gay, com todos os preconceitos narrativos possíveis. Outro ponto que incomoda é a frequência com que os personagens insistem em falar de amor enquanto o morticínio avança. Há até um episódio em que uma moça mata um rapaz que, enquanto agoniza, lhe revela que a ama profundamente.

Além disso é desconfortável para um ocidental gravar tantos nomes parecidos de 42 personagens. Não dá muito para saber pelo nome se estamos diante de um rapaz ou de uma moça como Keita, Yutaka e Sho que são homens e Takako, Mitsuko e Izumi que são mulheres. Também há uma cena longa em que 3 mulheres lutam entre si e seus nomes são exatamente Yukie, Yuko e Yuka. É impossível discernir quem é quem.

A adaptação para o cinema americano empacou em razão do lançamento da série de filmes blockbusters Jogos Vorazes, de Suzanne Collins, que tem infinitas semelhanças com Battle Royale. Os produtores consideraram que o remake seria encarado como uma cópia, apesar de Battle Royale ser anterior a Jogos Vorazes.

3.7.21

A MONTANHA MÁGICA

Por anos adiei a leitura deste clássico do escritor alemão e prêmio Nobel de Literatura Thomas Mann. Sempre algum livro ultrapassava A Montanha Mágica na ordem de prioridades. Talvez fosse pelas suas 856 páginas e temática difícil, mas havia o desafio de ler aquela que é considerada pelos críticos como a obra prima de Thomas Mann. Pois bem, 22 dias de leitura depois, cheguei ao fim e confesso que foi um prazer único. Difícil algumas vezes, mas na maior parte envolvente e cativante.

Já havia lido de Thomas Mann o inesquecível A Morte em Veneza, que julgo, na sua versão cinematográfica, o filme mais impactante que já vi na minha vida, e olhe que já vi muito filme bom nessa vida. Então, se A Morte em Veneza teve esse efeito em mim, A Montanha Mágica, apesar de muito mais volumoso, não iria me decepcionar. E não errei.

Acompanhamos aqui a história de Hans Castorp, um engenheiro burguês alemão que decide passar quatro semanas num sanatório para tuberculosos em Davos nos Alpes suíços em visita a um primo internado. Mas as coisas não se dão como ele esperava e Hans acaba passando sete anos por lá e onde se relaciona com diversos personagens que retratam os diferentes conflitos espirituais e ideológicos do início do século XX.

Os críticos consideram A Montanha Mágica um dos grandes testamentos literários do século XX e uma obra atemporal da literatura de ficção que se insere talvez como o principal exemplo do chamado Bildungsroman,  palavra alemã para romance de formação, aquelas obras que descrevem o desenvolvimento integral (físico, moral, psicológico, estético, social ou político) de um personagem durante praticamente toda sua vida.

É irônico que justamente em Davos, na Suíça, hoje sede do Fórum Econômico Mundial, se desenrole a história que é anterior à 1ª Guerra Mundial de um grupo de muito ricos que se dedica ao repouso e a se tratar, com todo luxo, banquetes diários, os melhores vinhos e enormes gastos de dinheiro.

O elemento motor de todo o livro é o tempo em si, sua dilação, a ideia de que o tempo tem uma natureza extremamente relativa e como os personagens se entregam ao gasto despreocupado desse tempo enquanto se isolam do mundo e praticamente vivem uma realidade paralela, ociosa e até mesmo ingênua.

Hans Castorp tem a alma e a mente disputada por dois tutores antagônicos: o iluminista Settembrini e o obscurantista Naphta, metáfora perfeita do clima reinante na Europa que culminou na primeira guerra e no nazismo. São dezenas e mais dezenas de páginas em que acompanhamos os debates acalorados entre Settembrini e Naphta e há momentos em que até esquecemos de que tudo aquilo saiu da mente de Thomas Mann.  Nessa hora, ao lembrar quem está por trás daqueles vibrantes diálogos, dá um orgulho danado da elegância e do humor sutil da mente criadora de tantas páginas de puro deleite.

Encerro com um trecho quase do seu desfecho que considero um dos finais mais tocantes que já li: “Ah, toda essa juventude, com suas mochilas e baionetas, com as capas e as botas enlameadas! Sonhando de modo humanístico-estético, poderíamos imaginá-la num quadro diferente. Poderíamos ter a seguinte visão: esses jovens montando e banhando cavalos numa enseada do mar, caminhando pela praia em companhia da namorada, achegando os lábios à orelha da meiga noiva, ou talvez ensinando uns aos outros, numa amizade feliz, o tiro de arco. Em lugar disso, jazem ali, com o nariz no barro bombardeado. Que façam isso com alegria, ainda que transidos de medo e cheios de saudades da mãe, é assunto à parte, que nos orgulha e envergonha, mas nunca nos deveria induzir a colocá-los nesta situação”.