30.4.23

A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO


Pode soar como implicância da minha parte ou mesmo a opinião de quem não tem lugar de fala. Acredito até que ambas as impressões podem estar certas, mas como sou implicante por natureza e não sou negro por circunstâncias, vou arriscar assim mesmo.

Falo da belíssima canção gravada por Elza Soares: “A Carne” composta por Marcelo Yuka e Seu Jorge e que tem o poderoso refrão: “A Carne Mais Barata do Mercado é a Carne Negra”. Essa música passou a ser executada recentemente por cantoras como Larissa Luz com o refrão alterado para: A Carne Mais Barata do Mercado ERA a Carne Negra. 

Essa mudança não é uma mera alteração gramatical. Ela afeta mortalmente o sentido da canção original e remete à ideia de que o empoderamento dos negros modificou a realidade desigual do país. Assim, pela nova versão, a carne mais barata do mercado NÃO é mais a carne negra.

Pergunto então o que teria tomado o lugar da carne negra no mercado da “carne”. Qual seria hoje aquela carne que, seguindo o restante da letra original da canção,  vai de graça pra o presídio, pra debaixo do plástico, de graça pra o subemprego e pra os hospitais psiquiátricos?

Sim, porque a alteração para a nova versão empoderada não ficou só no refrão, mas foi além ao cantar que a carne negra IA de graça pra o presídio/E para debaixo do plástico/Que IA de graça pra o subemprego/E para hospitais psiquiátricos”.

A mudança afeta o poder de denúncia da canção uma vez que se a carne negra não é mais a mais barata, tudo seria coisa do passado e já não é mais tão vergonhoso o que o nosso país faz (ou fez, como quer o intérprete) com seus negros. Ficou no passado.

Recentemente, no programa The Masked Singer Brasil na TV Globo, a cantora Larissa Luz cantou essa versão, como faz sempre em seus shows. Em um deles, disponível no YouTube em  https://www.youtube.com/watch?v=J4JsK7iazA8, ela faz um discurso proselitista em que justifica o porquê de a carne mais barata não ser mais a carne negra. Diz: “Agora não é mais assim porque a gente tem voz pra falar do que gosta e do que não gosta e como a gente quer que seja”. 

O fato de os negros, como diz Larissa Luz, terem (supostamente) apenas hoje voz para protestar contra o racismo, por si só não modifica a realidade do racismo. Foi exatamente o fato de que Elza Soares e os autores negros da canção tinham voz para falar sobre o tema que já cantavam que a “CARNE MAIS BARATA É A CARNE NEGRA”. Não é de agora que os negros têm voz para protestar. 

Assim, Larissa Luz se apropria, para si e para seus contemporâneos, da existência de tal voz atual, que seria tão poderosa ao ponto de modificar a realidade. De quebra ela ainda nega a existência das vozes dos que a precederam, incluindo as de quem cantou e de quem compôs a música original

Ao buscar importante e necessário empoderamento, a artista, infelizmente, erra ao fraudar uma obra de arte original, negando a existência de uma contínua marginalização. Se se pode fazer isso com uma canção, talvez os empoderados se achem no direito de fraudar outras obras de arte. O que será que pensariam disso Elza Soares e os autores Marcelo Yuka e Seu Jorge?

27.4.23

A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS

Este é o nono livro que eu leio da badalada autora italiana Elena Ferrante que, como sempre faz em suas obras, aborda com maestria histórias de protagonistas femininas. Ferrante fez isso na sua Tetralogia Napolitana e nos romances Dias de Abandono, Um Amor Incômodo e A Filha Pedida, a maioria deles adaptados para as telas, como é o caso do seu novo livro: A Vida Mentirosa dos Adultos, lançado em plena pandemia e que agora pode ser conferido em seis episódios na Netflix.

Aqui, acompanhamos o crescimento da pós-adolescente Giovanna, filha de intelectuais de esquerda na Nápoles dos anos 90. Já na primeira página do livro, a narradora relata uma frase entreouvida do pai que a marcará profundamente e determinará sua dificuldade de lidar com a dor do crescimento e a perda da inocência e da ingenuidade.

"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. [...] Tudo — os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro gélido, aquelas palavras — ficou parado. Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.”

O pai compara a falta de beleza da filha com a da sua própria irmã Vittoria, ovelha negra banida da família, e tal comparação faz com que a adolescente associe a sua falta de beleza à falta de caráter, marcando-a profundamente numa idade em que essas coisas são extremamente dolorosas. Essa tia misteriosa se torna uma obsessão e em busca dessa personagem enigmática (e assim em busca de si mesma), Giovanna, aos poucos, escapa do conforto do seu bairro chique de Nápoles para a periferia industrial e cinzenta da cidade. O livro a segue nessa jornada e, ao final, veremos como todos os percalços farão nossa jovem narradora se tornar uma mulher. Não é um final redondo, como é comum acontecer nos romances de Elena Ferrante mas é, indiscutivelmente, uma jornada de crescimento interior e que só acontece quando aprendemos a lidar com as inevitáveis dores do crescimento.

Impossível não tratar da excelente trilha sonora da série da Netflix. Um verdadeiro acompanhamento de luxo para a leitura do livro. Quer um conselho? leia o livro ouvindo a trilha disponível inteirinha no site https://soundtracki.com/pt-pt/televisao/a-vida-mentirosa-dos-adultos-temporada-1-trilha-sonora, ou em qualquer tocador de música online. 

Destaco a ótima abertura da série com a canção Nun te Scurdà (Não Vou Te Esquecer) e também a cena linda em que Vittoria e Giovanna dançam juntas ao som de Edith Piaf com Non, Je Ne Regrette Rien

Outra canção ícone dos anos 90, All That She Wants dos suecos do Ace of Base está na série, mas na minha opinião a abertura do episódio 4, intitulado Solitudine (Solidão), com imagens de trás para frente e em câmera lenta, é um escândalo de tão bela e merecia, por si só, um prêmio, sobretudo porque é acompanhada da canção  In a Broken Dream, na voz rouca de Rod Stewart. É um tiro no coração.

 Afinal, o que você está fazendo que não correu para ler o livro, assistir a série ou ouvir a trilha sonora? 

19.4.23

PARIS É PARA OS FORTES E CHIQUES

          Então o quê eu estou fazendo aqui?

Brigitte, você já soube a última do Voltaire?
Brigitte, você já soube
a última do Voltaire?

     Escrevo este texto no quinto dos sete dias que passarei aqui em Paris. Esta é   a minha quarta vez na cidade e estou me perguntando, desde que aqui cheguei, se estou mesmo no lugar certo. Pode parecer uma heresia dizer isso, até mesmo soar blasé ou boçal, mas vou arriscar assim mesmo. Não nasci pra Paris. Nem roupa pra Paris eu tenho!

      Talvez seja algum tipo de fadiga de material, mas talvez eu devesse ter escolhido outro destino. Acho que quatro vezes em Paris pode parecer demais quando não se conhecem ainda lugares como Praga, Viena, Budapeste, São Petersburgo, Milão... Por que Paris?

   Vamos por partes: 

CLIMA – Imaginava eu que vir na Primavera seria uma boa ideia já que nas outras vezes vim em outras estações, mas qual a minha surpresa ao me deparar com um frio indecente e uma tão grande explosão de pólen na atmosfera que, conjugados, me levaram a uma alergia dupla. E tome-lhe antialérgico e nariz escorrendo e garganta arranhando. Como disse, não tenho roupa para ser elegante e acho que mesmo que me vestisse de Gucci ou Hugo Boss da cabeça aos pés, não passaria de um soteropolitano disfarçado.

MODA - E por falar em grifes, uma coisa que chega a ser irritante em Paris é a chiqueza das pessoas. Não sei nem o nome dessas roupas, desses tecidos, dessas combinações e marcas, mas vá ser chique assim lá na Fashion Week! Mas confesso que dá sim um certo prazer culpado em ver essas mulheres desfilando como se estivessem numa propaganda de perfume e esses homens elegantes usando umas roupas que mesmo que eu as vestisse, não passaria de um espantalho. Paris, inegavelmente, não é minha praia. Minha deselegância não combina com os bulevares arborizados e perfumados daqui.

IMIGRANTES - Mas tenho uma ressalva. A cidade tem uma população estrangeira que salta aos olhos, seja pelo biotipo seja pela atitude e vestimentas. Paris tem números colossais de imigrantes, principalmente africanos, asiáticos, latinos e orientais de modo geral. Essas pessoas assumem quase todos os empregos que ou os franceses não têm interesse em ocupar ou são mal remunerados ou as duas coisas. Em praticamente todos os hotéis, quitandas, restaurantes, supermercados, metrôs, em todos os lugares é impossível não encontrar árabes, haitianos, marroquinos, argelinos, indianos, paquistaneses. É um mundo à parte. E roupas à parte também.

IDIOMA- Para uma pessoa como eu que só fala uma dúzia de palavras em Francês, convenhamos que é muita ingenuidade achar que vai se sair bem aqui. Todo mundo sabe que os franceses sabem falar Inglês, mas se recusam a fazê-lo por um tipo de nostalgia do tempo em que o Francês era a língua mais falada no mundo (mesmo que nem mesmo os avós deles viveram esse período), ou por pura implicância e mau humor mesmo. Se já é difícil falar com um deles sem falar Francês, é impossível falar com um imigrante sem falar o Francês. A não ser com os indianos das quitandas, que falam um Inglês incompreensível, o que resulta no mesmo.

DINHEIRO – Vir para Paris num período em que o valor do Euro está custando mais de R$ 5,60 é saber que vai se gastar mais de R$ 100,00 por prato de comida e uma simples coca cola custará R$ 25,00. Na verdade, pensando bem, não é o preço das coisas aqui que está alto, mas nosso real é que está muito desvalorizado.

CIGARRO E BOEMIA – Acho que eu estou cada vez mais velho e ranzinza, mas não entendo o prazer que tantos parisienses têm em ficar na beira de uma calçada, do lado de fora de um restaurante, bebendo o que quer que um parisiense beba e fumando como umas chaminés.
O ambiente é insalubre, frio, poluído e com uma tagarelice que incomoda até meus pensamentos quando passo perto na calçada, apenas pelo segundo de tempo suficiente para atravessar a aglomeração. Então fico pensando como é que as pessoas que se sentam nas mesas vizinhas fazem para conversar e se entender. Mas uma coisa eu tenho que reconhecer: aqui não pegou a praga da música ao vivo, que em Salvador se entende por aquela num volume proibitivo para a saúde humana.
Voltando à boemia parisiense, minha alma ranzinza fica se questionando se um cidadão que mora numa cidade linda como esta, cheia de história, museus e tanta beleza, como essa pessoa não fica em casa refletindo sobre como é privilegiada ou lendo um livro de Filosofia....mas não, esse povo vai tudo pra os cafés e restaurantes pra tagarelar e pitar cachimbo e os malditos cigarros eletrônicos que são uma febre. E a faixa etária é totalmente eclética: dos netos aos bisavós, tá tudo dominado por eles.

RESTAURANTES – Esse aqui se tornou o ponto mais crítico da minha viagem. Vou dizer uma heresia imensa, mas preciso fazer isso: NÃO SE PODE COMER BEM EM PARIS. Eu jamais imaginei dizer isso se tratando de um lugar internacionalmente reconhecido pela excelência da sua culinária. Mas meu estômago não sabe mentir, então eu não sei se estou na cidade errada ou então eu não sei o que é comer.
Mas convém explicar. O problema é de atitude. Não tenho a atitude de alguém que faz do ato de comer uma experiência social. Não é meu cérebro que está agindo quando eu como, mas meu aparelho digestivo. Em Paris, a pessoa quando vai comer, imbui-se de algum espírito que pelo jeito não bate com o meu.  
Para mim, comer é algo prático: uma comida a quilo, um bufê, um rodízio de pizza ou carne... Mas aqui é todo um processo. Tem-se que sentar à mesa, pedir o menu, traduzir o menu para sua língua, lutar para fazer o garçom te entender, lembrar que jamais se deve chamar o garçom de garçom (há um tipo de lei criminal para quem faz isso), esperar uma eternidade, respirar a fumaça do cigarro que inevitavelmente vem da rua quando abrem a porta  e no final comer um prato miniatura, em mesas bambas e minúsculas, com talheres tão pesados que se caírem no pé causam uma fratura, e pagar caríssimo,  saindo com a sensação de que ainda está com fome e não comeu o que achou que tinha pedido. Convenhamos que comer não é para ser estressante.
E quem diria que o que me salvou nessa terra foi a existência de lugares sagrados como Mc Donald’s, Burger King, KFC e Starbucks. Não sei o que seria de mim sem eles com menções honrosas para os Kebabs que os turcos fazem como ninguém.