Pode soar como implicância da
minha parte ou mesmo a opinião de quem não tem lugar de fala. Acredito até que
ambas as impressões podem estar certas, mas como sou implicante por natureza e não
sou negro por circunstâncias, vou arriscar assim mesmo.
Falo da belíssima canção gravada por Elza Soares: “A Carne” composta por Marcelo Yuka e Seu Jorge e que tem o poderoso refrão: “A Carne Mais Barata do Mercado é a Carne Negra”. Essa música passou a ser executada recentemente por cantoras como Larissa Luz com o refrão alterado para: A Carne Mais Barata do Mercado ERA a Carne Negra.
Essa mudança não é uma mera alteração gramatical. Ela afeta mortalmente o
sentido da canção original e remete à ideia de que o empoderamento dos negros modificou
a realidade desigual do país. Assim, pela nova versão, a carne mais barata do
mercado NÃO é mais a carne negra.
Pergunto então o que teria tomado o lugar da carne negra no mercado da “carne”. Qual seria hoje aquela carne que,
seguindo o restante da letra original da canção, vai de graça pra o presídio, pra debaixo do
plástico, de graça pra o subemprego e pra os hospitais psiquiátricos?
Sim, porque a alteração para a nova versão empoderada não ficou
só no refrão, mas foi além ao cantar que a carne negra IA de graça pra o
presídio/E para debaixo do plástico/Que IA de graça pra o subemprego/E para hospitais
psiquiátricos”.
A mudança afeta o poder de
denúncia da canção uma vez que se a carne negra não é mais a mais barata,
tudo seria coisa do passado e já não é mais tão vergonhoso o que o nosso país
faz (ou fez, como quer o intérprete) com seus negros. Ficou no passado.
Recentemente, no programa The Masked Singer Brasil na TV Globo, a cantora Larissa Luz cantou essa versão, como faz sempre em seus shows. Em um deles, disponível no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=J4JsK7iazA8, ela faz um discurso proselitista em que justifica o porquê de a carne mais barata não ser mais a carne negra. Diz: “Agora não é mais assim porque a gente tem voz pra falar do que gosta e do que não gosta e como a gente quer que seja”.
O fato de os negros, como diz Larissa Luz, terem (supostamente) apenas hoje voz para protestar contra o racismo, por si só não modifica a realidade do racismo. Foi exatamente o fato de que Elza Soares e os autores negros da canção tinham voz para falar sobre o tema que já cantavam que a “CARNE MAIS BARATA É A CARNE NEGRA”. Não é de agora que os negros têm voz para protestar.
Assim, Larissa Luz se apropria, para si e para seus contemporâneos, da existência de tal voz atual, que seria tão poderosa ao ponto de modificar a realidade. De quebra ela ainda nega a existência das vozes dos que a precederam, incluindo as de quem cantou e de quem compôs a música original
Ao buscar importante e necessário
empoderamento, a artista, infelizmente, erra ao fraudar uma obra de arte original, negando a existência de uma contínua marginalização. Se se pode fazer isso com uma canção, talvez os empoderados se achem no direito de fraudar outras obras de arte. O que será que pensariam disso Elza Soares e os autores Marcelo Yuka e Seu Jorge?
16 comments:
Não sabia que a Larissa Luz tinha alterado a letra. Tbm não curti. Não concordo com essa alteração. Talve mudou pra ela, pq de fato ela ‘ascendeu’ tá num programa feminino de audiência. Mas a maioria das ‘irmãs pretas’ dela não. Concordo com sua opinião, bola fora da Larissa Luz sim. O fato de mudar a letra não acabou com o racismo. A carne negra segue sendo a mais barata sim!
Achei bastante coerente seu ponto de vista.
Também não tenho “lugar de fala”, mas concordo que a mudança no tempo verbal pode dar a impressão de que o fato de os negros terem mais voz hoje mudou radicalmente a realidade, o que não é verdade.
Os problemas não estão no passado, eles persistem, apesar de reconhecer o progresso da sociedade no particular
Concordo plenamente com o argumento desenvolvido. Mudar a realidade exige muito mais que uma alteração nas letras das canções. Infelizmente a situação do negro continua penosa e exigirá ainda muita luta. É lamentável que sua carne ainda seja a mais barata.... as estatísticas comprovam.
Muito bem colocado Luiz, infelizmente a carne preta ainda é a mais barata, triste realidade, a luta precisa não pode para!
A mudança perpetrada por Larissa na letra da música parece que tem alcançado o seu objetivo. Qual seria esse objetivo? Acho que é trazer à tona, mais uma vez, essa discussão. Não creio que a simples mudança do tempo verbal autoriza a interpretação de que os pretos alcançaram o paraíso. Não! Tal modificação,
nada sutil, diga-se, apenas nos remete à noção de marcha civilizatória, em que as vitórias obtidas, ainda que tímidas, devem, sim, ser celebradas. A mudança na letra da música deve ser entendida nesta perspectiva e não como uma superação do problema.
Não conhecia essa versão da música, concordo com sua argumentação, a realidade ainda é muito injusta, a discriminação racial continua imperando no Brasil.
Concordo no sentido de que hoje em dia os negros têm de fato mais voz e lugar na sociedade, contudo, o racismo ainda existe muito no Brasil e em outros países..
Concordo plenamente com vc!
Achei esse comentário muito interessante. Porque também parto da perspectiva de que é uma obra de arte, e assim posta ao mundo, ganha asas próprias, podendo outro artista dela se apropriar como a percebe segundo sua própria Estética (entendendo Estética em um conceito amplo, que vincula a experiência, o lugar de fala). Acredito que a mudança de tempo verbal foi objeto de reflexão sobre o que significa estar no mundo e ser negro. Sobre não querer estar subjugado a uma percepção branca do que é a negritude. É sobre resistência e empoderamento. A mudança do tempo verbal para “agora”, movimenta o tempo do “vir a ser ». Não será, já é! (Dani Valim)
Parabéns por fazer valer o "poder de voz". Esse tipo de atitude e falta de ética à luta proposta na letra. Essa Larissa se apropriou indevidamente de um conteúdo intelectual , banalizado uma obra artística,
Política e cultural em simplesmente uma cultura de massa.
A carne mais barata do mercado continua sendo, infelizmente, a carne negra.
Concordo totalmente com a sua reflexão.
Infelizmente ainda assistimos a situações q ratificam essa obra atemporal… ganhos foram conquistados, mas a realidade ainda é cruel.
Ademais, acho um desrespeito à obra.
Esse tempo verbal alterado rouba o que de mais importante é dito na canção.
Não conhecia essa nova versão…
Lendo o seu texto me lembrei muito da música da inesquecível Billie Holiday em sua “Strange Fruit”.
Justo e preciso seu comentário! Alterar a letra de uma música tão emblemática e que reverberava pela verve da musa Elza Soares, é mais que acintoso, é desnecessário e na contramão de tudo o que o próprio histórico da música e intérprete mostrava. Um desvario oportuno, essa mutilação equivocada na letra.
Lu, maravilha!!! Principalmente pela essência que nos promove questionar os acertos neste texto. Necessário pensar, reagir e nos inquietarmos. Larissa Luz se achou e "acha" que os desacertos que o racismo nos causa já tiveram consertos e ajustes. Ledo engano!
Excelente, achei meio polêmico o final último parágrafo, mas você foi no ponto certo, abordou o principal erro dela, em achar que uma mera visibilidade de uma porcentagem extremamente pequena dos pretos empoderados significa que todos tem esse poder ter uma opinião
A cantora Larissa Luz defende a alteração do tempo verbal da canção composta pela grande Elza Soares. argumentando que “Agora não é mais assim porque a gente tem voz pra falar do que gosta e do que não gosta e como a gente quer que seja”.
Certamente ela não conhece a vida sofrimento, discriminação, fome e violência social de Elza Soares para defender um absurdo desses.
Os negros tem voz para protestar... Ela que vá dizer isso para os milhões de negros favelados, sem emprego digno, educação, etc.
Tem como explicar aos negros que nunca ouviram nenhuma das duas versões que "agora as coisas são diferentes"? Diferentes para quem? Para ela?
Podemos considerar que agora os negros tem acesso à Universidade e a posições de destaque na sociedade porque algum negro/negra que tenha passado por essas experiências terão o condão de afastar três séculos e meio de escravidão e as consequências práticas desse legado no pouco mais de século posterior? Terá ela ouvido falar de irrelevância estatística?
Esse esforço para varrer para baixo do tapete nosso passado escravagista e nosso presente, pós escravagista é antigo. Começou em 14 de maio de 1988. Veja o texto seminal de Roberto Pompeo de Toledo - À sombra da Escravidão. Destaco:
"...O Hino à República, aquele que pede à liberdade para que "abra as asas sobre nós", diz a certa altura:
Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre país...
São versos espantosos. "Outrora" houve escravos. O hino é de 1890. fazia dois anos, portanto, ainda havia escravos, talvez dentro da casa, ou pelo menos na porta do autor da letra, o poeta pernambucano Medeiros e Albuquerque. Como "outrora"? Dois anos é outrora? E a letra diz que nós "nem cremos" que tenha havido escravo. Como não cremos? Era só olhar em volta, ou um pouquinho para trás. Já tinha começado o processo de esquecimento que dura até hoje..."
Ter voz é uma coisa. Ser escutado é outra.
Continua sem ser escutado e continua como a carne mais barata.
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