Esta semana acabei de ler dois livros excelentes,
ambos adaptados para o cinema por dois diretores brasileiros: Abril Despedaçado
— dirigido por Walter Salles e com Rodrigo Santoro como protagonista—, e
Lavoura Arcaica, do brasileiro Raduan Nassar, filmado por Luiz Fernando
Carvalho e com Selton Mello no papel principal. Os dois livros foram publicados
originalmente na década de 70 e giram em torno de profundas tradições
familiares.
ABRIL
DESPEDAÇADO
– Obra do escritor albanês Ismail Kadaré, foi adaptado no cinema para o sertão
brasileiro e aborda um círculo infinito de vinganças entre membros de duas
famílias rivais. Um dos temas mais caros da dramaturgia universal é o da
vingança e se o livro se passa nas montanhas da Albânia, a transposição da
trama para a aridez sertaneja, no cinema, não lhe fica nada a dever. É o mesmo
orgulho estéril. A mesma mesquinhez patriarcal.
Nas montanhas da Albânia, resiste por cinco
séculos até hoje o código de conduta conhecido como Kanum, costume arraigado na vida dos agricultores, que prevê regras
estritas sobre o direito das famílias de ter as mortes de seus entes vingadas à
bala. Trata-se de um romance, mas o Kanum
existe realmente e estima-se que mais de 20 mil pessoas se envolveram em lutas
entre famílias, com quase 10 mil mortos somente a partir de 1991 com o fim do
regime comunista na região, quando houve um ressurgimento das rixas.
Acompanhamos um mês na vida do jovem Gjorg desde
o momento em que ele se vê imerso na rede de vingança, obrigado a cobrar de uma
família rival a morte do irmão, matando também ele um membro do clã inimigo e
assim submetido ao circulo de vendetas. Ele morrerá após 30 dias, a trégua
chamada de bessa. Mas, na prática,
sua vida já acabou, ou acabará em algum dia do mês de abril. É impossível não
recordar do notável romance do Nobel colombiano Gabriel Garcia Márquez, Crônica de Uma Morte Anunciada, também
adaptada para o cinema.
No seu derradeiro mês de vida, Gjorg vislumbra, por uma única e breve oportunidade, a bela jovem Diana e entre os dois se instala uma urgente e súbita paixão silenciosa. Para Gjorg, será uma busca desesperada pela carruagem que transporta Diana pelas montanhas e para a jovem letrada, a estupefação diante de tradições que ceifam a vida de centenas de jovens numa sociedade em que o nascimento de um menino é saudado com o seguinte desejo: “Que ele viva muito. E morra de bala!”
No seu derradeiro mês de vida, Gjorg vislumbra, por uma única e breve oportunidade, a bela jovem Diana e entre os dois se instala uma urgente e súbita paixão silenciosa. Para Gjorg, será uma busca desesperada pela carruagem que transporta Diana pelas montanhas e para a jovem letrada, a estupefação diante de tradições que ceifam a vida de centenas de jovens numa sociedade em que o nascimento de um menino é saudado com o seguinte desejo: “Que ele viva muito. E morra de bala!”
LAVOURA
ARCAICA
- Também um livro duro, difícil, construído a partir de uma narrativa que se
assemelha a um mergulho em apneia ou a um caleidoscópio de cicatrizes abertas.
A história segue os caminhos — ou os
descaminhos — de André, filho do meio de uma família religiosa de agricultores imigrantes,
uma verdadeira metáfora invertida sobre a parábola bíblica do filho pródigo. Já
na primeira página, André é encontrado pelo irmão mais velho Pedro (não à toa,
nomes de dois irmãos apóstolos) em um quarto sujo de pensão após ter fugido da
opressiva família cristã sobre a qual o pai, libanês rígido, impunha uma
disciplina feroz, em contraste com a mãe, pura ternura e afeto.
O jovem André sofre sob essa pressão e se
sente cindir nas tensões desses polos em permanente disputa por sua alma. Em
torno dele, gravitam os demais irmãos, entre eles a meiga Ana (Simone Spoladore,
nas telas), que desperta em André convulsivos desejos incestuosos.
O livro tem uma construção não linear de
prosa poética como um jorro de fluxo de consciência, levando o leitor a mergulhar
nas suas páginas sem qualquer garantia. Um clássico obrigatório que precisa ser
lido sem pressa, com o devido tempo.
E sobre o tempo, sobre a virtude da paciência,
transcrevo trecho de um dos discursos do patriarca da família, belissimamente
interpretado no cinema por Raul Cortez: “... rico só é o homem que aprendeu,
piedoso e humilde, a conviver com o tempo, aproximando-se dele com ternura, não
contrariando suas disposições, não se rebelando contra o seu curso, não
irritando sua corrente, estando atento para o seu fluxo, brindando-o antes com
sabedoria para receber dele os favores e não a sua ira...”